Ao entrar-se nesse concelho do distrito de Aveiro após a revogação do estado de calamidade pública motivado pela covid-19, identificavam-se na avenida dos corsos de Carnaval apenas algumas pessoas em passo de caminhada acelerada, mas, logo depois, à porta da Caixa Geral de Depósitos, eram já três os homens que fumavam e conversavam sem máscara, com um metro de distância entre si.
No Pingo Doce havia uma fila ainda a começar, na Rua Cândido dos Reis reverberava música cigana emitida em alto volume a partir de um dos prédios, na farmácia do Instituto Pereira Zagalo um cliente era atendido pelo postigo e na da Praça da República os fregueses aguardavam de forma mais espaçada na rua, alguns dos quais já em t-shirt para aproveitarem o sol ameno.
Ovar está longe de ter recuperado a sua freima habitual, mas, após os foguetes lançados durante a madrugada em várias localidades do concelho, em poucas horas o centro da cidade mostrava-se mais vivo e diversas equipas de jornalistas reforçavam a dinâmica pedonal da chamada Capital do Azulejo.
Essa tónica subtil e contida de uma certa alegria foi-se acentuando à medida que se aproximavam da Câmara vários grupos de agentes policiais e da Proteção Civil. Todos eles antecipavam a chegada do ministro da Administração Interna, que, mais tarde, liderou sob a respetiva viseira a comitiva de autarcas e outros responsáveis que, entre a esquadra da PSP e o Gabinete de Crise da autarquia, desfilaram pelo alcatrão num certo aconchego físico.
José Cruz estava com três amigos junto a um banco de jardim ao lado de tribunal e, quando esses fugiram das objetivas de fotógrafos e operadores de câmara, ficou com a Lusa a partilhar a sua revolta quanto ao Estado e "outros que tais".
Tem 83 anos, é alto e está chateado: diz que anda a pagar impostos para as autoridades garantirem equipamentos de proteção e testes a quem precisa, mas sente-se negligenciado. "A mim ninguém me perguntou nada", reclama. Mas tem sintomas? "Não". Só se queixa "do catarro" do costume.
O que José queria mesmo é que o chamassem para a consulta de oftalmologia pela qual vem aguardando há vários meses. Como já perdeu a visão do seu olho esquerdo, teme que o mesmo lhe aconteça ao do lado direito e fala até em não viver muito mais tempo.
Do novo coronavírus, contudo, o octogenário não reclama. "Eu sempre andei na rua [durante o cerco], sem máscara", afirma. Diz que nunca se deu bem com essa proteção respiratória, mesmo durante os seus 17 anos de serviço como bombeiro, e ainda tem viva a memória das polémicas envolvendo equipamento de proteção no contexto dos grandes incêndios de 2017. "Lembra-se dos problemas por causa das máscaras? Posso ser maluco, mas não as uso", insiste.
É precisamente por atitudes como essa que Susana Pires, gerente da Casa Reis, vem procurando conferir ao diálogo com os seus clientes seniores um tom mais pedagógico. Já tinha fregueses idosos "que procuravam mais proximidade e conversar um bocadinho" nesse quiosque do Largo do Neptuno e reconhece que em período de confinamento "isso não deixa de ser igual", mas conta: "Nós procuramos é reeducá-los e aconselhar a que fiquem em casa, o que é um bocadinho difícil".
Se durante as primeiras semanas do cerco sanitário em Ovar o estabelecimento esteve fechado, depois foi autorizado a reabrir e, entretanto, o negócio não tem corrido mal, mesmo considerando o investimento extra na divisória de vidro que agora separa clientes de funcionários. "Nota-se uma quebrazinha, como é óbvio", mas aumentou a procura de tabaco e de jornais, sendo que a compra de jogos de azar ou sorte continua com adeptos fiéis.
Mais gente na rua há certamente. Susana já o notou a 13 de abril, quando a população começou a demorar-se mais nas suas compras de bens de primeira-necessidade, tanta era a saturação do isolamento domiciliário e a vontade de espairecer, e hoje, no primeiro dia de relativa liberdade no concelho, ficou ainda mais evidente que agora "o fluxo é um bocadinho maior".
Maria José Malaquias era uma das pessoas que caminhava sozinha pela cidade, artilhada com gorro, máscara e um kispo, que pelos passeios à sombra ainda não se sentia tanto a Primavera. Confessa que, logo ao início da manhã, saiu para a rua com uma "sensação igual" à de outros dias, mas aprecia o levantamento do cerco porque o achou "algo exagerado nos seus termos e restrições, sobretudo por implicar o encerramento do comércio.
"Se as pessoas se mantivessem em segurança, não havia necessidade de se ter mexido tanto e de ficarmos desta forma, isolados. Talvez por isso é que se tenha tomado esta medida mais drástica, digamos... Mas não é só aqui que não se respeita - é no país inteiro. Há muita gente que não cumpre a distância [social] e todas as regras que lhe são impostas", argumenta.
Embora não note "diferença nenhuma" de comportamento na passagem do estado de calamidade municipal para o de emergência nacional, equilibra otimismo e lucidez na sua análise: "As filas são as mesmas na farmácia e as máscaras ainda não tivemos tempo de ver se as pessoas estão protegidas [com elas] ou não, mas creio que toda a gente de Ovar vai continuar a seguir as regras. Toda a gente menos aqueles que nunca as seguiram até agora! Esses, é para esquecer!".
Numa das tais filas de farmácia, já com a pele dos braços a bronzear, Mariana Cardeira partilha com a Lusa outra perspetiva sobre o relacionamento humano durante a pandemia que inibe beijos e abraços.
Funcionária de uma distribuidora de aços que obteve autorização do Estado para laborar a título excecional em Ovar durante a vigência do respetivo cerco sanitário, já exerceu funções em regime de teletrabalho, mas voltou há dias à empresa, onde nunca faltaram máscaras, viseiras e luvas para realização segura do trabalho habitual.
Entre o receio de quebrar o isolamento e a satisfação de manter o emprego, diz que tudo "é uma questão de consciência e adaptação". Defende que, "desde que as regras sejam cumpridas, não haverá qualquer problema e o risco de contágio será muito inferior", pelo que o melhor é ter-se consciência de que "as pessoas vão ter que viver com isto muito tempo".
Se em momentos de crise a sociedade revela o pior de si, o contrário também se verifica e Mariana nota-o até em contexto laboral. "As pessoas que vão regressando ao trabalho estão com outra disponibilidade, estão mais unidas até?". Mais humanas? "Também!".
O novo coronavírus responsável pela presente pandemia de covid-19 foi detetado na China em dezembro de 2019 e já infetou mais de 2,2 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais mais de 150.000 morreram. Ainda nesse universo de doentes, mais de 483.000 foram já dados como recuperados.
Em Portugal, onde os primeiros casos confirmados se registaram a 02 de março, o último balanço da DGS indicava 687 óbitos entre 19.685 infeções confirmadas. Desses doentes, 1.284 estão internados em hospitais, 519 já recuperaram e os restantes convalescem em casa ou noutras instituições.
No caso concreto de Ovar, a Câmara Municipal contabilizava esta sexta-feira à noite 25 óbitos e 604 casos de infeção por covid-19 entre os seus 55.400 habitantes. Hoje ao início da tarde, a estatística da Direção-Geral de Saúde ainda atribuía ao concelho apenas 504 contaminados.
Portugal está desde 19 de março em estado de emergência, o que vigorará pelo menos até ao final do dia 02 de maio.
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