As cidades portuguesas ainda conservam uma grande diversidade de vida selvagem, ou seja, animais não domesticados e plantas que vivem sem a necessidade da intervenção ou ajuda humana. Dos pássaros que cruzam o nosso olhar, às lagartixas que se esgueiram pelos muros – há muito para observar, mas este mundo paralelo passa ao lado da maioria das pessoas.

Esta é a ideia defendida por três biólogos ouvidos pelo SAPO24. No Dia Internacional da Vida Selvagem, que se assinala a 3 de março, quisemos saber como as cidades portuguesas convivem com a fauna e a flora que fazem parte da história do nosso território e que se adaptaram com o crescimento e o desenvolvimento urbano.

“A vida selvagem tem de se adaptar às cidades continuamente”, defende António Castelo, biólogo e um dos membros da Aidnature, uma ONG ambiental que produz conteúdos multimédia sobre vida selvagem e natureza. “As cidades portuguesas não fizeram qualquer esforço para se adaptar à vida selvagem. Não temos tido esse tipo de planeamento, muito menos tivemos na altura em que a maioria das cidades foram projetadas”, explica o biólogo.

“As espécies selvagens tentam adaptar-se a todas as alterações que o homem provoca na natureza; as mais adaptáveis conseguem, as outras não. Esse é um dos grandes problemas da conservação, o Homem está a alterar a natureza a uma velocidade demasiado grande e as espécies não têm tempo para se irem adaptando, e extinguem-se”, defendem Maria Dias e Inês Teixeira do Rosário, biólogas e autoras do livro “Lá Fora – Guia para descobrir a natureza”.

Há, contudo, espécies que se conseguem adaptar muito bem à vida urbana e que até beneficiam da presença do homem. “É o caso de espécies como a ratazana ou as baratas. Há casos curiosos já provados de aves que cantam de forma distinta (mais alto, e em frequências mais elevadas) por viverem numa cidade”, exemplificam as biólogas.

"Espécies de plantas são muitas, se considerarmos árvores, arbustos e herbáceas, nativas e espécies exóticas cultivadas em jardins e quintais. Mas mesmo se considerarmos só as plantas espontâneas podemos encontrar por exemplo azedas, cimbalária-dos-muros ou mesmo um dente-de-leão. Nas árvores podemos ainda encontrar líquenes, musgos e cogumelos", contam as biólogas.

Zonas ribeirinhas e espaços verdes

As aves são presença assídua da vida selvagem nas duas principais cidades portuguesas. Lisboa e Porto contam com zonas ribeirinhas que são uma mais-valia para a presença de vida selvagem. “A fronteira entre a terra e a água congrega, geralmente, fauna típica destes dois habitats, sendo por isso mais rica”, notam Maria e Inês. Os grandes espaços verdes, como Monsanto, em Lisboa, ou o Parque da Cidade, no Porto, também são locais privilegiados para ir à procura de espécies selvagens.

“Pardais, pombos, melros, gaivotas, as várias espécies de lagartixas” são alguns dos animais que convivem connosco nas nossas cidades, mas há ainda aqueles que, menos conhecidos, também enriquecem a vida selvagem urbana. “Os gaios, os chapins-reais, os piscos, as rolas do mar, os corvos marinhos, as corujas-das-torres”, enumera António Castelo.

Um dos documentários realizados pela Aidnature centra-se na vida selvagem em Lisboa e no trabalho desenvolvido pelo Centro de Recuperação de Animais Silvestres, que está inserido na floresta de Monsanto.

Manter o olhar de criança

A vida selvagem pauta os nossos dias, mas, na maioria das vezes, já nem damos por ela. “A maioria das pessoas repara nas espécies mais óbvias, ou que de alguma forma lhes interfere com o dia a dia: as rolas que cantam nas primeiras horas da manhã mesmo em frente da nossa janela, os dormitórios de pardais ou estorninhos nas árvores, as barulhentas gaivotas, o rato que nos invadiu a cozinha, as lesmas que atacam as plantas, as árvores que fazem muito “lixo”. Mas a maioria das espécies, sobretudo as mais discretas, passa completamente despercebida”, realçam as biólogas Maria Dias e Inês Teixeira.

“Há uma pequena fatia das populações que é mais atenta à vida selvagem que existe nas cidades, mas a grande maioria não só não conhece muitas das espécies que as habitam, como não valoriza a sua presença”, acredita António Castelo, sublinhando que este desinteresse surge com a idade, já que “quando somos crianças, os animais que nos rodeiam fascinam-nos naturalmente”.

A recuperação deste olhar curioso sobre a vida selvagem foi o que motivou Maria e Inês a escreverem o livro “Lá Fora”. “Na correria do dia a dia, a maioria das pessoas nem se apercebe que partilha a sua cidade, vila ou aldeia com várias espécies animais e plantas. Com o “Lá Fora” tentámos contrariar um pouco isso, pôr as pessoas a reparar nas borboletas dos seus quintais, nos morcegos a esvoaçar em redor dos candeeiros, etc.”, partilham as biólogas.

O livro, editado pela Planeta Tangerina em 2014, é um guia para descobrir todo este mundo incrível que existe fora de portas, servindo também para “chamar a atenção das pessoas para a grande diversidade de vida selvagem que existe à nossa volta, onde quer que estejamos”, salientam Inês e Maria.

Conhecer e conservar

Conhecer a vida natural é um dos primeiros passos para a conservação e o trabalho desenvolvido pela Aidnature vai neste sentido. Desde 2011, a organização está a trabalhar na produção de “documentários dinâmicos e esteticamente apelativos que estimulem as pessoas a querer conhecer e a valorizar a natureza”. “Queremos que as pessoas conheçam primeiro o que há, para depois o poderem valorizar e, quem sabe, proteger”, diz António Castelo.

E todos podemos fazer a nossa parte para conservação da vida selvagem. "Os agentes que têm mais preponderância nesse campo são as autoridades municipais de gestão de espaços verdes, de zonas ribeirinhas e de tratamento de resíduos", considera António Castelo. "A manutenção de espaços verdes de grandes dimensões é fundamental, mas uma boa rede de pequenos jardins, espalhados um pouco por toda a malha urbana, é também importante, pois servem de conexão entre os espaços verdes maiores (funcionando como “corredores”)", completam as biólogas.

"Tanto quanto possível, estas áreas verdes urbanas devem ser constituídas por árvores e arbustos típicos da nossa flora, ao invés de optar por espécies trazidas de outras regiões do mundo. A presença de lagos nos jardins atrai também muitos animais, tal como os nossos quintais e hortas, por isso podemos dizer que a conservação dos espaços verdes nas cidades é responsabilidade de todos", destacam.

Apesar de as perspectivas para os próximos anos não serem as melhores – “muitas espécies selvagens, sobretudo de aves e mamíferos estão ainda em declínio e a caminho da extinção” – Inês Teixeira e Maria Dias acreditam que um pouco por todo o mundo há uma tendência da reaproximação do homem com a natureza. “O que é um passo fundamental para a preservação da vida selvagem”, concluem as biólogas.