Em entrevista à agência Lusa, o subprocurador-geral Hindemburgo Chateaubriand, defensor do fim dos grupos de trabalho da Lava Jato através de uma unificação nacional dos mesmos, assegurou que existe uma forte polarização dentro do órgão, motivada pela divergências sobre a partilha de dados sigilosos da operação.

Em causa está uma tentativa da Procuradoria-Geral da República (PGR) de aceder a dados confidenciais da Lava Jato, e que foi vista como uma intromissão por parte do grupo de Curitiba, gerando queixas à corregedoria do órgão e pedidos de demissão.

Apesar de Chateaubriand concordar que há limites para esse tipo de acesso, frisou que ninguém “tenta bisbilhotar sem ter suspeitas”.

“É claro que eu, como procurador da república aqui, não posso pedir para entrar no sistema de um colega que tem uma informação sigilosa sem uma justificação plausível. Assim como nem mesmo um funcionário que opera uma quebra de sigilo, tem o direito de bisbilhotar nada por interesse pessoal. Toda a vez que alguém acede a informações sigilosas, fá-lo por algum motivo ou suspeita”, afirmou o subprocurador à Lusa.

A pivô da polémica em questão é a procuradora Lindôra Araújo, coordenadora da Lava Jato na PGR, que no mês passado viajou para Curitiba para uma reunião com membros daquele grupo e para pedir acesso a documentos sigilosos recolhidos nas investigações.

As reações dividiram-se: os procuradores da Lava Jato em Curitiba apresentaram uma reclamação e afirmaram que a partilha de informações com a PGR poderia ferir a autonomia do Ministério Público.

Já a PGR argumentou, num recurso deferido posteriormente pelo presidente do Supremo brasileiro, que tem o direito de obter as informações, frisando que pediu os dados para subsidiar a atuação do procurador-geral da república, Augusto Aras, e, portanto, de todo o Ministério Público Federal (MPF) brasileiro.

Levanta-se assim a questão sobre quem tem o direito de aceder aos dados secretos da Lava Jato, cujos principais núcleos estão em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo.

Segundo a visão de Hindemburgo Chateaubriand, que atualmente atua como secretário de Cooperação Internacional do MPF, “não faz sentido” o procurador-geral da república ter de recorrer judicialmente para poder aceder a conteúdo sigiloso que necessite.

“Por lei, o PGR é quem coordena as atividades da instituição, por lei é o promotor natural de todos os colegas que atuam na casa. Portanto, qualquer irregularidade praticada por um colega, quem apura fá-lo em nome do PGR, porque é o MPF que apura. O PGR tem de ter acesso a qualquer ação feita por um membro. Ele é quem designa quem pode ver tudo. (…) Que sentido faz (não ter acesso)?”, questionou o subprocurador, em entrevista à Lusa na sede da PGR, em Brasília.

“Aqui interessa saber se há motivos para olhar alguma coisa. Ninguém discorda da ideia de que ninguém poderia bisbilhotar ninguém, muito menos o PGR pode sair atrás de informações sigilosas. Agora, havendo justificação para um PGR investigar alguma coisa, ele tem de pedir autorização judicial, internamente na instituição? Pessoalmente, acho que não”, avaliou.

Para Chateaubriand, em causa está a possibilidade de se estar a criar um “super procurador, indevassável e inviolável nas suas atitudes”, caso o acesso seja negado até ao corregedor geral do MPF, responsável por fiscalizar a atuação de todos os membros do órgão.

Porém, a Lava Jato discorda dessa visão, com o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da operação em Curitiba, a afirmar à Lusa que o PGR não tem direito a aceder a dados que estão sob sigilo, a não ser que recorra a uma autorização judicial.

“Concordo que a Corregedoria tem direito a aceder a todos os dados, inclusive sigilosos, e esse acesso nunca foi negado. A situação é diferente quando se trata do Procurador-Geral, que não é um Corregedor. No modelo de Ministério Público brasileiro, ele é chefe do MPF no sentido administrativo apenas”, disse Dallagnol, numa entrevista cedida à Lusa através de e-mail.

“Não há hierarquia funcional. Além disso, as estruturas administrativas são descentralizadas. Quando há bancos de dados nessa estrutura administrativa descentralizada, é claro que ele não pertence a um procurador, mas sim à Instituição. Contudo, mais uma vez, o acesso depende de autorização judicial porque os dados estão vinculados a casos judiciais”, frisou o coordenador da Lava Jato de Curitiba.

Dallagnol argumentou ainda que caso a PGR queira obter material que foi alcançado mediante decisão judicial, a partilha “depende do mesmo modo de decisão judicial, ou do cumprimento dos termos das decisões proferidas”.

Este mês, o Supremo brasileiro determinou que os procuradores da Lava Jato partilhem todo o material recolhido nas investigações com a PGR. O argumento é de que há uma resistência à partilha destas informações por parte dos procuradores.

Questionado sobre qual o motivo dessa resistência, Dallagnol indicou que em causa estão centenas de relatórios de inteligência financeira, envolvendo cerca de 38 mil pessoas, acrescentando que não vê motivos que interessem à PGR para aceder a esse conteúdo.

“O material tem dados privados de investigados, testemunhas e vítimas e deve ser compartilhado segundo a lei.(…)A decisão do Supremo será cumprida, mas não é possível vislumbrar para que a PGR quer todo esse material que não diz respeito, na sua maior parte, às investigações que lá tramitam”, justificou o procurador.

Já Hindemburgo Chateaubriand assegurou à Lusa que Deltam Dallagnol “não tem direito de ter um sistema próprio de administração de dados”, discordando da postura do procurador face à polémica.

“Os exemplos dados pelo Dallagnol não me parecem adequados, por exemplo, em relação ao acesso a informações fiscais. Porque o próprio Dallagnol está ali (na coordenação da Lava Jato), e amanhã pode sair, entrar outro colega, que posteriormente terá o mesmo acesso. Estamos a falar da mesma instituição. Acho que a premissa dele está errada nesse ponto”, disse.

“Contudo, não tenho dúvida nenhuma de que ele não tem direito de ter um sistema próprio de administração de dados, isso ele não tem. Ele pode até querer que seja regulamentada. Acho que talvez falte na casa uma disciplina mais precisa de quem pode aceder ao quê e em que circunstâncias, para que isso fique bem claro”, concluiu o subprocurador.

Lançada em 2014, a operação Lava Jato trouxe a público um enorme esquema de corrupção de empresas públicas, como a Petrobras, implicando dezenas de altos responsáveis políticos e económicos, e levando à prisão de muitos deles, como o antigo Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que foi condenado pelo antigo juiz e ex-ministro Sergio Moro, e que se encontra atualmente em liberdade condicional.