Tem uma memória prodigiosa para datas, mas esta é inesquecível: a 19 de Maio de 2011, véspera de eleições legislativas, irritou de sobremaneira o então primeiro-ministro José Sócrates quando, depois de uma intervenção pública, lhe disse da assistência: "Eu tenho um problema essencial consigo: os seus actos não reflectem as suas palavras". Foi um alvoroço.
O CEO da Hovione Capital gosta de lembrar este acontecimento, mas tem outros, mais ou menos públicos, com membros de diversos governos. Não é para menos: a Hovione, uma empresa familiar especializada na área da ciência e da saúde, emprega cerca de mil pessoas só em Portugal, tem quatro fábricas (três fora do país - EUA, Macau e Irlanda) e uma facturação que há muito ultrapassou os 100 milhões de euros.
A conversa gira em torno da mudança, em Portugal, na Europa e no mundo. A começar pelo grupo que o pai fundou em 1959. "Nasci numa startup", diz a sorrir, "tinha um laboratório na cave e 40 extintores em casa". Agora a Hovione Ventures é a holding e o objectivo é criar novas Hoviones. E elas vêm aí, com novidades importantes na área do processamento de dados e do modelo de investigação clínica, os ensaios clínicos de medicamentos, que tem 50 anos e é arcaico.
Meio estrangeiro, como gosta de dizer, conta que o avô foi obrigado a fugir da Hungria e veio para Portugal com a autorização de Salazar, pela mão do seu secretário de Estado da Agricultura. Sabe que a migração é um problema "bicudo", mas não tem dúvidas de que é também uma questão de coragem: "Ninguém deve morrer no Mediterrâneo", mas é em África que está a solução, acredita.
"Num país como os Estados Unidos, o Engº Sócrates poderia invocar a nulidade do seu julgamento alegando que não tem hipóteses de um julgamento justo"
Começo por lhe perguntar como olha para o processo José Sócrates, que já vai longo...
O nosso sistema de justiça procura crucificar na comunicação social aquilo que não consegue provar ou sancionar em tribunal. Isso deve-se ao excesso de garantias, característico da nossa cultura, por um lado, e a um código de procedimentos judiciais extraordinariamente complicado, moroso, aberto a todo o tipo de requerimentos da defesa, por outro. Se o arguido acaba por se safar devido a prescrições, sobra no nosso sistema o castigo pela via da comunicação social. Isto é profundamente errado. A justiça tem de ser célere, e o melhor exemplo é o de Bernie [Bernard] Madoff [declarou-se culpado de ter lesado investidores em milhões de dólares]: os seus crimes foram detectados em Novembro de 2008 e foi condenado em Junho de 2009.
A justiça tem de ser justa, esclarecida, mas também tem de ser rápida. Casos como o que mencionou, e muitos outros que existem neste momento, enfraquecem, minam a confiança do povo nas instituições do Estado, e a justiça é das mais importantes. Num país como os Estados Unidos, o Engº Sócrates poderia invocar a nulidade do seu julgamento devido a todos os factos que já foram divulgados, alegando que não tem hipóteses de um julgamento justo. Isto é frequente. Todas as pessoas têm direito a um julgamento justo, imparcial, e é só em tribunal que todos os factos devem aparecer, não por fugas de informação.
Voltando à data em que irritou José Sócrates, como o via então?
Havia um primeiro-ministro que fez um excelente primeiro mandato: Simplex, aposta na investigação e desenvolvimento, reforma da Segurança Social. Fez coisas muito bem feitas. Antes disso, enquanto ministro do Ambiente, a sua determinação já tinha sido notada por todos. Sobre a minha intervenção, em Maio de 2011, foi mesmo antes das eleições, estávamos em pré-campanha eleitoral, e tratei-o por senhor engenheiro, não o tratei por senhor primeiro-ministro. Foi num encontro que reuniu diversas pessoas no Hotel Sheraton e onde iriam discursar o Engº José Sócrates, o Dr. Pedro Passos Coelho e o Dr. Paulo Portas. Ele foi o primeiro a falar e fez uma grande intervenção; 40 minutos, sem papel, estruturada, a dizer tudo o que tinha feito bem. Depois manifestou enorme vontade em receber perguntas da assistência e eu fui dos primeiros a falar. Mencionei tudo o que ele tinha feito bem, tudo. E no fim, lembro-me lindamente, disse - e cito textualmente: "Eu tenho um problema essencial consigo: os seus actos não reflectem as suas palavras", e mencionei tudo aquilo que achava que estava incorrecto. E acabei com uma pergunta: "O que é que vai fazer para recuperar a competitividade do nosso país?". Pergunta actual em 2011 e que continua actual hoje, em 2018. A minha intervenção acabou por provocar uma enorme controvérsia, não pelo que eu disse, mas por causa da reacção do Engº José Sócrates, que foi violentíssima. Ficou furioso. Três amigos, todos antigos secretários de Estado, disseram-me que eu tinha de mudar de país. Fiquei um bocadinho preocupado.
"A sociedade civil não tem tradição nem hábito de fazer em público perguntas difíceis ou comentários críticos a figuras do poder"
Somos um povo subserviente, de alguma maneira, incapaz de criticar quem está no poder, de argumentar?
A sociedade civil não tem tradição nem hábito de fazer em público perguntas difíceis ou comentários críticos a figuras do poder. A minha pergunta era perfeitamente legítima. Esta subserviência tem a ver com uma história de profunda ligação do poder económico ao poder político, já desde o século XIX. O século XIX era corporizado por monopólios - do tabaco, do sabão, etc. O capitalista recebia o monopólio do fornecimento de um produto, fazia imenso dinheiro e depois servia de banco ao Estado. Esta não é uma relação saudável, primeiro porque não envolve concorrência, depois porque envolve ligações indesejáveis. Temos de ter independência entre os agentes económicos e os agentes políticos e a única coisa que nos devia ligar é a lei. Acontece que no nosso país os políticos muitas vezes procuram o conselho das pessoas que estão do lado económico e muitas vezes quem está do lado económico procura favores ou autorizações do lado político. Faz parte da nossa cultura. Isso levou, efectivamente, a esta subserviência, em que na sociedade civil há muito poucas pessoas a falar abertamente dos problemas. Do lado empresarial, falo eu, embora muito pontualmente, Alexandre Soares dos Santos, que fala e bem, e Bruno Bobone [presidente da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa], que é muito diplomático, mas diz coisas que não estamos à espera de ouvir do lado económico. Penso que tem de haver mais gente a fazê-lo.
Somos um povo traumatizado?
Não diria que somos um povo traumatizado, mas, como todos os povos, precisamos de tempo para mudar. Estamos numa mudança muito positiva em Portugal; o nosso século XIX foi um perda completa para o país, não conseguimos industrializar, não conseguimos modernizar as instituições políticas, e culminou com a República, em 1910, que, com tudo o que trouxe de positivo, varreu setecentos anos de história de um dia para o outro. Seguiu-se um período extraordinariamente conturbado até 1928, quando a ordem foi reposta por um regime autocrático, antidemocrático, que preferiu dar uma paz sossegada ao povo a dar-lhe visão, ambição, educação ou progresso. Dito isso: é no Estado Novo que temos o período de maior crescimento desde D. Manuel; entre 1960 e 1973 o produto interno bruto cresce 6% ao ano. Nunca em democracia tivemos um crescimento assim. Obviamente depende de imensos factores externos, mas custa-me que em democracia não tivessemos conseguido atingir os resultados do Estado Novo e isso é uma coisa pela qual temos de continuar a lutar. Precisamos de objectivos ambiciosos.
Nas reuniões que foi tendo com sucessivos governantes, alguma vez lhes disse isso?
Lembro-me de uma reunião no Ministério da Economia, não digo de que governo, em que estavam 30 empresários à volta da mesa e eu disse: "Temos de ter um objectivo que é pôr o PIB a crescer 4% ao ano. Tem de ser o nosso objectivo declarado". Mesmo se não conseguíssemos crescer os 4%, se conseguíssemos 3% já era muito melhor do que aquilo que tínhamos. Não temos de ter medo. Esta é uma das frases de Bruno Bobone: "Não temos de ter medo". E também do Papa João Paulo II. Temos de ousar, de querer. E para isso é preciso capacidade de execução, aprender a trabalhar mais em equipa. A indústria de capital de risco, onde estou agora, é fascinante porque é extraordinariamente colaborativa. Cada vez que temos uma oportunidade de investimento numa startup queremos partilhá-la com outra empresa de capital de risco, partilhar o risco.
Antes disso, quando falou nos 4% qual foi a resposta que obteve?
Silêncio absoluto. Silêncio absoluto na sala.
Ninguém, eu incluído, acreditava que este governo conseguisse fazer o seu mandato de quatro anos, e tudo indica que vai fazê-lo.
Devolvo-lhe a pergunta que fez a Sócrates em 2011 e que, diz, se mantém actual: O que fazer para recuperar a competitividade do país, das empresas?
A primeira parte já está meia feita, é a narrativa política. Este governo tem uma narrativa positiva, de confiança e de crescimento, muitíssimo importante, porque inspira as pessoas a investir, a consumir e a querer andar para a frente. A nível macroeconómico subsistem imensos problemas: a dívida, a baixa produtividade e os baixos níveis de investimento. Ter uma narrativa positiva ajuda imenso, mas não chega. Temos um governo que inspira alguma incerteza nos investidores, porque assenta numa maioria parlamentar, subscrita por quatro partidos, três dos quais não advogam uma economia de mercado. Ainda assim o governo tem conseguido sobreviver e com imensa pujança. Ninguém, eu incluído, acreditava que este governo conseguisse fazer o seu mandato de quatro anos, e tudo indica que vai fazê-lo.
E as palavras correspondem aos actos ou há erros?
Erros todos cometemos, o que importa é minimizá-los. Temos de ver o que o governo está a fazer: imagine um malabarista com dez bolas no ar. Neste momento o governo está a articular o movimento de todas estas bolas, que são a pressão da função pública para aumentar ordenados e para diminuir o horário semanal de trabalho - o que tem um impacto directo nas contas do Estado -, uma dívida que continua difícil de gerir...
E será mais ainda, segundo os avisos do Banco Central Europeu.
Vai ser mais ainda e o BCE tem de parar o programa de recompra de obrigações, porque a banca, que é um sector vital para a nossa economia e para a economia europeia, não consegue sobreviver com as taxas de juro que tem, não é possível. O programa de recompra de acções do BCE tem-se eternizado porque os políticos – o senhor Mario Draghi, enfim, independente dos poderes políticos -, teve até agora a maior das apreensões em suspendê-lo. Esse dinheiro ficou todo nos balanços dos países e dos bancos, razão pela qual não há inflação. Temos uma quantidade de liquidez gigantesca, que anda à procura de projecto rentáveis.
O desafio do governo, e é o único desafio que o governo tem, é aumentar o PIB
Antes de avançar por aí, qual é o maior desafio deste governo?
O desafio do governo, e é o único desafio que o governo tem, é aumentar o PIB. Só aumentando o PIB consegue fazer o resto: aumentar a receita fiscal sem alienar os contribuintes, diminuir a dívida – que mesmo que fique na mesma em termos absolutos, baixa em relação ao PIB. É a via mais importante para se aumentar o rating da República.
Mesmo que tenha de falhar promessas eleitorais?
Sabe, o governo tem de ser pragmático acima de tudo. Tem de ser pragmático nas promessas que faz e tem de ser pragmático durante o seu mandato. E mais não digo.
Pragmático, para si, quer dizer exactamente o quê?
Tem de ser prudente nas promessas que faz para não deixar de cumprir com a maioria.
E a mim surpreende-me que o PSD e outros partidos da oposição não relembrem continuamente que o partido que já nos levou à pré-bancarrota três vezes - em 1977, em 1983 e em 2011 - foi o Partido Socialista
Sobre a narrativa positiva, não foi ela que nos levou à crise e à austeridade?
É verdade. E a mim surpreende-me que o PSD e outros partidos da oposição não relembrem continuamente que o partido que já nos levou à pré-bancarrota três vezes - em 1977, em 1983 e em 2011 - foi o Partido Socialista, embora a crise de 1983 tenha começado com o governo AD. Foi sempre o Partido Socialista que gastou e depois foi o PSD, ou o PSD em coligação com o CDS ou o Bloco Central, que salvou a situação e ficou com reputação de partido da crise. Na última vez, o governo de 2011 a 2015, foi o partido que nos administrou um medicamento extraordinariamente amargo, e que ficou associado à crise e não à cura. E isso é injusto. O Dr. Pedro Passos Coelho foi um homem de uma coragem enorme e os portugueses devem estar-lhe agradecidos. Mas falha na narrativa, na comunicação.
A única coisa que eu e muitos outros criticamos no governo de Passos Coelho é não ter sabido gerir a comunicação, porque em tudo o resto administrou uma dose muito grande de óleo de fígado de bacalhau, mas criou uma almofada de liquidez importante e que este governo aproveitou e bem.
Devia ser mais pragmático, para usar uma palavra sua?
Mais competente na comunicação. Vou contar-lhe isto: a seguir a apresentações bastante privadas e em quatro ocasiões diferentes - ministro das Finanças, ministro da Economia, secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro e presidente do IGCP, [Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública] - disse a cada um deles: "Acabam de me explicar lindamente o que se está a passar. Agora vão ter de explicar isso ao povo, é fundamental que expliquem isso às pessoas". E todos me responderam da mesma maneira, utilizando as mesmas palavras: "Desculpe, mas esta situação é demasiadamente complexa para explicar ao povo". Portanto, esta é a mensagem que vinha de cima: para Vítor Gaspar, para Álvaro Santos Pereira, para Carlos Moedas e para Moreira Rato, para todos, era difícil explicar ao povo. Manifestei o meu desacordo; o principal papel de um governo numa situação difícil é explicar o que se está a passar. E quem o fez melhor e sem rodeios, sem papas na língua, foi Winston Churchill, que num momento dramático da vida da Grã-Bretanha conseguiu reunir o povo e foi fantástico nos resultados. Não nos podemos comparar a esse estadista, mas podemos aprender com o seu exemplo. No fundo, a única coisa que eu e muitos outros criticamos no governo de Passos Coelho é não ter sabido gerir a comunicação, porque em tudo o resto administrou uma dose muito grande de óleo de fígado de bacalhau, mas criou uma almofada de liquidez importante e que este governo aproveitou e bem.
Bruno Bobone, de quem já falou, dizia numa entrevista que estava feliz por ter trazido Paulo Portas para a sociedade civil. Hoje fala-se muito nas portas giratórias, a propósito de casos como este ou de Durão Barroso/Goldman Sachs, Jorge Coelho/Mota-Engil, entre muitos.
Isto tem de acontecer mais vezes e de uma forma transparente, porque aqueles que deram décadas da sua vida à causa pública e à administração do Estado podem ter uma experiência muitíssimo importante para o sector privado. Não vejo problema absolutamente nenhum em que isso aconteça. Agora, no respeito da lei, dos valores e com transparência. Não é obrigatório tratar-se do pagamento de favores ou, por isso, devemos excluir pessoas competentes? Entramos noutro problema característico de Portugal: em vez de termos tribunais eficazes, que castigam comportamentos errados, desenvolvemos um sistema de garantias, de obstáculos, de incompatibilidades e de inibições prévias para impedir que haja qualquer possibilidade de vir a acontece um delito, um crime. Preferimos isso a deixar às pessoas, e sobretudo às instituições que fiscalizam essas pessoas, a possibilidade de haver colaborações éticas e correctas. Quanto aos casos que mencionou, sempre houve uma enorme proximidade entre a construção pública e o Estado. Mas o Engº Jorge Coelho já tem essa ligação há 18 anos, on e off, já deve ter esgotado todo o capital que acumulou no tempo do Engº António Guterres. O Goldman Sachs é um banco com um sucesso extraordinário, o que provoca alguma inveja, e tem feito dinheiro quando todos os outros têm perdido, pelo que não é uma instituição querida da opinião pública, daí que as pessoas ligadas a ele passem por um período difícil na comunicação social. Eu acredito em instituições fortes e competentes. Fora isso, deixem-nos trabalhar.
A comunicação social é culpada de todos os males?
A comunicação social portuguesa é formada por dois eventos de 1974, que a marcaram profundamente até hoje. O primeiro, foi o fim da Comissão de Exame Prévio e a liberdade de expressão ao cabo de décadas de censura. O segundo, foi a demissão de Richard Nixon, a 8 de Agosto. De repente, a imprensa realiza que tem um papel importante na democracia e na fiscalização do seu funcionamento. Desde então os jornalistas assumem essas duas funções com enorme vigor; estão aqui para escreverem o que quiserem e para fiscalizarem o poder político. Chegou a um ponto em que o poder político já não governa para governar, mas governa para ficar bem nas sondagens, essencialmente influenciadas pelo que vem escrito na comunicação social. Como sabe, o político tem uma linguagem em privado e outra em público. Que bom seria se a linguagem fosse a mesma.
É a favor do lobbying? Porque não se legisla esta actividade, dando-lhe transparência?
Todos os comportamentos têm de ser transparentes. E sim, devia haver uma lei para o lobbying. O lobbying tem uma função muitíssimo útil, que é explicar aos legisladores duas coisas: oportunidades que eles ainda não viram e ajudar nas áreas mais técnicas e mais complicadas das situações sobre as quais se pretende intervir.
"O Serviço Nacional de Saúde é a melhor instituição que temos em Portugal"
Isso leva-me à questão das farmacêuticas, um sector poderosíssimo. A actividade visa o lucro, mas, como está na área da saúde, é sensível. Como se gere esta trilogia que é o preço dos medicamentos, os gastos em investigação e o Serviço Nacional de Saúde?
O Serviço Nacional de Saúde é a melhor instituição que temos em Portugal. Conseguimos oferecer níveis de cuidados de saúde a todos com um serviço de excelência. Tenho muita admiração pelo SNS e tenho muito orgulho em que o meu país consiga tratar toda a gente. O sistema é imperfeito, ainda não conseguimos chegar a todos, às vezes há erros... Não me importo, o sistema existe e funciona. Tem problemas de financiamento, tem grandes problemas de desperdício, mas funciona e funciona muito melhor do que nos Estados Unidos. Segundo ponto: quem faz a inovação são as empresas privadas. E fazem-no porque existe a possibilidade de um grande retorno sobre os medicamentos que não falham nos ensaios clínicos. Há perdas enormes em investigação no desenvolvimento de fármacos que não conseguem passar o crivo dos ensaios clínicos e isso resulta em preços cada vez mais elevados.
é interessante verificar que 100% dos medicamentos foram sempre concebidos nas economias capitalistas - a União Soviética nunca contribuiu para a indústria farmacêutica, as suas grandes marcas são a Kalashnikov e a Sputnik
E como é que isso se pode alterar?
Por isso inventámos um mecanismo de genéricos, que faz com que os medicamentos sejam caríssimos quando são lançados, e não só paguem o investimento, como remuneram o accionista de forma muito confortável – e depois ele paga impostos -, mas ao cabo de xis anos um medicamento genérico custa cêntimos. É um sistema extraordinariamente positivo. Depois é interessante verificar que 100% dos medicamentos foram sempre concebidos nas economias capitalistas - a União Soviética nunca contribuiu para a indústria farmacêutica, as suas grandes marcas são a Kalashnikov e a Sputnik. Mas este sistema, com estes preços, produz níveis de inovação extraodinários, estamos sempre a descobrir novas fórmulas. Havia uma doença que matava, a Hepatite C, e que já resolvemos, e outra, a Sida, o HIV, que transformámos numa doença crónica, perfeitamente gerível. Em Portugal temos acesso aos medicamentos para a Hepatite C e para a Sida.
chegamos a ter medicamentos inovadores que demoram dez anos a ser investigados para saber se as autoridades de saúde os aprovam. É este custo elevadíssimo que, perversamente, serve de racional à indústria farmacêutica. (...) temos de olhar para o modelo de investigação clínica para ver como o podemos transformar e racionalizar
Para a Hepatite C graças aos jornalistas, esses obstinados.
Tem toda a razão. E porque é que os produtos são tão caros? Temos um modelo de investigação clínica, que são os ensaios clínicos para saber a eficácia e a segurança de um fármaco, que tem 70 anos, foi desenvolvido nos anos 50. Custa fortunas, centenas de milhões de euros no caso de um ensaio com milhares de pacientes, e dura anos, tantos que chegamos a ter medicamentos inovadores que demoram dez anos a ser investigados para saber se as autoridades de saúde os aprovam. É este custo elevadíssimo que, perversamente, serve de racional à indústria farmacêutica. Portanto, nós sociedade, nós indústria, nós reguladores, nós decisores temos de olhar para o modelo de investigação clínica para ver como o podemos transformar e racionalizar. E a Hovione tem a solução.
Dentro dos computadores do SNS e dos hospitais está a chave para se descobrir uma quantidade de conhecimento científico num valor gigantesco sobre a melhor forma de tratar as pessoas. Portugal tem a dimensão ideal para ser um país pioneiro à escala mundial
Qual é a solução?
Estou a trabalhar na solução e foi para isso que criei uma empresa de processamento de dados de saúde. Percebi que a prestação de cuidados de saúde, seja dos hospitais ou dos laboratórios farmacêuticos, não é compatível com o processamento de dados de saúde, porque há sempre um viés: quem está a investigar um novo produto não quer descobrir a verdade toda sobre esse produto, quer descobrir o mínimo de informação que lhe permita uma aprovação. Porque o processo é longo e dispendioso, falhar nos ensaios clínico é péssimo para a carreira do gestor do projecto, que desenha os ensaios clínicos de forma a maximizar a probabilidade de aprovação. Quem faz os ensaios clínicos, e isto é discutido há bastantes anos, tem de ser uma entidade distinta dos laboratórios e dos hospitais. Já se falou do Estado, mas o Estado não tem nem vocação nem dinheiro. Neste momento temos 20 anos de dados de saúde armazenados em computador em Portugal e em todos os países da Europa. Esses dados não são trabalhados. Através das novas técnicas de software e de big data vamos conseguir estabelecer uma relação entre os fármacos que tomamos e o verdadeiro impacto que têm na nossa saúde e poder aconselhar o médico sobre aqueles que, estatisticamente, mais se adequam a cada paciente. Depois o médico escolhe. Dentro dos computadores do SNS e dos hospitais está a chave para se descobrir uma quantidade de conhecimento científico num valor gigantesco sobre a melhor forma de tratar as pessoas. E este sistema vai utilizar informação, dados de saúde completamente anonimizados, não precisamos e nem queremos saber os nomes das pessoas. Portugal tem a dimensão ideal para ser um país pioneiro à escala mundial e é isso que queremos fazer para depois levar o modelo e o sistema para o resto da Europa.
Quando pensa ter o novo modelo pronto?
Este ano estamos a fazer o estudo prova de conceito em parceria com uma universidade portuguesa: vamos olhar para os dados de saúde de uma população com determinada doença, não posso dizer qual a que estamos a investigar. Queremos saber de todos os fármacos prescritos nos últimos cinco anos para tratar essa doença quais foram os que tiveram maior efectividade. Depois vamos publicar essa informação e provar que a ideia é fantástica, que o conhecimento científico, médico, enterrado nos computadores é precioso.
não nos podemos esquecer que Portugal é o país dos portugueses, além de que temos de pensar nos que não têm meio milhão de euros para comprar uma casa.
Estamos a falar de um projecto. Há pouco disse que há liquidez, mas não há projectos. Falta capital intelectual em Portugal?
Há liquidez disponível em certas instituições, fundos de investimento, sobretudo, que andam desesperadamente à procura de qualquer projecto que lhes dê mais do que os 0,02% que os bancos lhes dão. É nos fundos de capital de risco, sobretudo nos de private equity, que está o dinheiro. Portugal tem um problema de dimensão e tem um problema tradicional de baixo retorno. Está a atrair investimento para o imobiliário, porque o sol é gratuito e está presente 300 dias por ano. E somos um povo de uma enorme simpatia, os estrangeiros apreciam-nos por isso e porque temos valores, em todos os níveis sociais, queremos dar uma educação equilibrada aos nossos filhos. E não falo em educação escolar, falo no "não mintas", "não batas", "porta-te bem à mesa". E temos níveis de segurança elevadíssimos. Encantam-nos os estrangeiros – eu sei, sou meio estrangeiro. Depois vieram os vistos gold, que atraíram o pior que há em nós, que é tentar explorar o sistema para ganho pessoal. Dito isto, não podemos continuar com esta escalada de preços no imobiliário, porque está a desestabilizar a sociedade. E não nos podemos esquecer que Portugal é o país dos portugueses, além de que temos de pensar nos que não têm meio milhão de euros para comprar uma casa.
Temos de ter na startup gestores que estão cem por cento dentro da empresa e cuja sobrevivência económica depende da sobrevivência da startup.
Há startups que não conseguem desenvolver os seus projectos por falta de capital e vendem as patentes a multinacionais, que depois fazem dinheiro.
Na Hovione Capital já avaliámos cerca de 700 projectos de investimento, desde os primeiros cinco minutos, em que se percebe logo se um projecto tem pernas para andar - ou porque a propriedade intelectual não é boa, ou porque não tem mercado -, aos que demoram semanas ou meses. E investimos em quatro empresas. Há uma série enorme de factores que determinam se investimos ou não. O principal é qual o problema que o produto vem resolver, porque o tamanho do problema determina a dimensão do mercado e o seu valor económico. Muitos académicos vêm ter connosco com uma solução fantástica para um problema que não existe. Antes de mais, é preciso pensar nisto: o seu produto resolve um problema? Só quem tem um problema na sua vida vai gastar dinheiro para ter esse problema resolvido. Depois, olho para o produto e vejo se é industrializável e se isso acontece a um preço razoável e económico, se não tem potenciais problemas ambientais na sua industrialização, se existem entidades na economia nacional ou internacional para fabricar o produto. E vejo se existe uma patente de invenção; provisória, pedida ou conseguida. Sou eu que leio as patentes, é uma competência muito forte da Hovione. E depois há os planos de negócio e de marketing e, em última análise, o potencial da pessoa que está à minha frente. Para começar, não aceitamos pessoas que queiram ficar com um pé na empresa e outro na universidade. Temos de ter na startup gestores que estão cem por cento dentro da empresa e cuja sobrevivência económica depende da sobrevivência da startup.
Porquê?
Porque de outra maneira não dão o litro. Têm sempre o ordenado de professor na retaguarda, não precisam de se esforçar muito. Temos casos de professores que são accionistas e que continuam a ser professores, mas nessa equipa tem de haver pelo menos um que está na empresa a tempo inteiro.
Portugal tem um problema de gestão, há um défice de bons gestores?
Portugal deve imenso a uma pessoa que a sociedade ainda não reconhece como um dos mais importantes portugueses desde 1974: José Mariano Gago, ministro da Ciência e da Tecnologia durante 14 anos [dois governos liderados por Guterres e dois liderados por Sócrates]. Conseguiu fazer da ciência portuguesa uma ciência e qualidade e conseguiu que se formassem dez vezes mais, cem vezes mais doutorados, que fossem estudar para o estrangeiro. Fez uma classe de cientistas cosmopolita, competente, visionária, ao nível do melhor que há no mundo. A Hovione é o maior empregador nacional privado de doutorados e tem muito a agradecer a José Mariano Gago. Sempre fomos uma empresa de ponta, mas o nosso sucesso deve-se ao facto de termos recrutado sempre portugueses com níveis elevadíssimos de formação – aliás, António Costa diz, e com razão, que temos a geração mais bem formada da nossa história. Infelizmente, não tivemos na pasta da Economia um ministro durante 14 anos. Talvez António Pires de Lima ou Álvaro Santos Pereira pudessem ter feito a mesma coisa se lá tivessem ficado 14 anos, porque o que Mariano Gago fez foi um trabalho de formiguinha. Hoje a nossa capacidade de desenvolver ciência é mais elevada do que a nossa capacidade de desenvolver gestão. Mas estamos a fazer a coisa certa: já temos escolas de gestão ao nível das melhores do mundo, como a Nova SBE em Carcavelos, que daqui a dez anos vai ser uma das top ten business schools do mundo.
A Hovione é um dos financiadores do projecto?
Pergunte à Nova SBE. Têm um campus maravilhoso e outro grande visionário, Pedro Santa-Clara, professor da Universidade Nova de Lisboa, que foi quem pegou no projecto, convenceu toda a gente e foi em frente com uma determinação extraordinária. O facto de ter vivido na Califórnia durante muitos anos permitiu-lhe pensar que talvez fosse possível. Em Portugal falta-nos muitas vezes esta cultura e é isso que me motiva no projecto de processamento de dados de saúde e foi isso que motivou Pedro Santa-Clara no projecto da Nova SBE. E viver no estangeiro dá-nos essa confiança. De resto, a equipa é o mais importante, se investimos o nosso dinheiro temos de saber que do outro lado há gente que pensa como nós. Um académico procura conhecimento, não procura fazer produtos, gerir um negócio ou chegar ao fim do ano e ter lucro – que é uma função importantíssima, não podemos ter professores e académicos para um lado, empresários e gestores para outro. Eu disse há pouco que somos uma sociedade inclusiva, mas ao mesmo tempo que criamos em cada um a vontade de vencer, de trabalhar por qualquer coisa melhor, é aí que a sociedade mais falha, no dar o sentimento de ambição a todos. É uma contradição, mas com a crise de 2011 todas as nossas energias foram canalizadas não no sentido de subirmos todos, mas no dos que estão mais alto esborracharem os que estão mais baixo. Defendo um salário digno e isso quer dizer salários mais elevados para toda a gente. Não podemos continuar com salários tão baixos, porque são um convite à mediocridade da gestão nas empresas. Se os gestores e empresários têm de pagar salários tão baixos, não vão ter nenhuma pressão para inovar ou para vender produtos e serviços de maior valor acrescentado.
Uma empresa familiar tem de se reinventar e de se transformar continuamente.
Qual é a diferença salarial entre a administração e gestores de topo da Hovione e os empregados que ocupam postos mais baixos?
Ah, isso não faço ideia. Digo-lhe que pagamos 20% acima da indústria e somos uma empresa muito generosa nos salários e nas remunerações variáveis e regalias. Mas não sou executivo da Hovione, sou da Hovione Capital - Sociedade de Capital de Risco, SA. Isto está tudo muito bem dividido. A família decidiu fazer uma nova holding, que é a Hovione Ventures, e o papel da empresa é pegar no capital dos accionistas e fazer Hoviones novas, coisas novas. Transformação. Uma empresa familiar tem de se reinventar e de se transformar continuamente.
Uma mudança recente?
Três anos.
Nestes três anos quantas novas Hovione foram criadas?
Neste momento são startups, todas na área da tecnologia e da saúde digital, que é aquilo de que nós percebemos.
É meio estrangeiro, como diz, o seu pai chegou a Portugal em 1951. Hoje o mundo vive em sobressalto por causa das migrações, um tema sensível que, para si, tem também uma dimensão pessoal. Como é que esta questão se pode resolver?
O meu pai foi recebido em Portugal de braços abertos. Adquiriu a nacionalidade portuguesa e não se considerava português porque falava português com sotaque, porque chegou a Portugal já tinha 25 ou 26 anos, mas sempre manifestou um reconhecimento enorme pela forma como foi acolhido e como conseguiu formar a sua família, fazer o seu negócio...
Por que motivo veio para Portugal?
Há detalhes que só fiquei a saber nestes últimos dias. O meu avô, pai do meu pai, era um professor universitário, especialista em genética de plantas. Por causa de um discurso que fez, os comunistas declararam-no inimigo do povo em 1948 e a família foi obrigada a fugir à noite, debaixo dos holofotes, e a atravessar o rio num bote. O meu avô era conhecido do professor Vitória Pires, secretário de Estado da Agricultura de Salazar, por causa do circuito das conferências e dos congressos internacionais. E um dia o professor Vitória Pires mencionou o meu avô a Salazar e pediu autorização para trazer para Portugal o professor Edmond Villax, para trabalhar em investigação agrícola. Foi assim que veio trabalhar para a Estação de Melhoramento de Plantas como investigador e fiquei a saber isto há dois fins-de-semana, pela neta do professor Vitória Pires. O meu pai, Ivan Villax, que tinha saído da Hungria com diploma de engenheiro Químico e feito uma pós-gradução em França logo a seguir, veio passar férias a Portugal no Verão de 1951 e cá ficou. Em pouco tempo, com 30 anos, era director técnico do Instituto Pasteur, na altura o maior laboratório farmacêutico português, e é aí que começa a inventar processos químicos e a fazer patentes de dimensão. E negoceia com os donos do Instituto Pasteur ficar com os direitos internacionais das patentes e passa a ser licenciador de patentes em grande multinacionais. É então que começa a transformar o seu capital puramente intelectual em capital económico.
Eu nasci numa startup. Tenho o privilégio de ter nascido numa startup e de ter um laboratório na cave e de aos seis anos saber usar um extintor
E funda a Hovione?
No dia 8 de Abril de 1959, seis meses depois de eu nascer, nasce uma empresa em casa. As minhas mais longínquas memórias, ainda bebé, são de pessoas todas vestidas de branco a trabalhar lá em casa. Eu nasci numa startup. Tenho o privilégio de ter nascido numa startup e de ter um laboratório na cave e de aos seis anos saber usar um extintor; tínhamos 40 extintores em casa. E o laboratório ia pelo jardim fora – a casa era boa – até que o meu pai chega àquele ponto de transformação de capital intelectual em capital económico e consegue fazer a fábrica em Loures.
Lembra-se das experiências, dos processos químicos?
Lembro-me. Havia uma filtração que acabava à meia-noite, a filtração de um antibiotico, tetraciclina. Já não havia pessoas no laboratório e então ia o pai, a mãe e eu de pijama e roupão lá para baixo, onde estavam uns filtros de porcelana grandes, para, com uma espécie de espátula de vidro, mexer o produto para esvaziar todo o solvente. Eu tinha onze anos e eram necessários todos os braços que havia.
o Google dá-me um poder e uma informação que só o KGB e a CIA tinham há 15 anos e dá a todos os cidadãos do mundo um poder gigantesco de acesso a informação
Fez sucesso nas aulas de Química?
Eu era muito bom em Química, péssimo a Matemática, razão pela qual não consegui tirar uma licenciatura em Ciências. Mal saí da universidade aprendi a programar e fui programador nove anos, autodidacta. Adorava. Hoje tenho um conhecimento profundo de tecnologia e não há nada mais importante do que os sistemas criptográficos, que vão transformar por completo os registos de propriedade das conservatórias, desmaterializar as conservatórias: os nossos títulos de propriedade vão estar na cloud e ser geridos por blockchain. Há um ano e meio que estou agarrado ao Regulamento Geral de Protecção de Dados, o diploma mais inovador dos últimos 50 anos. O RGPD, de quem toda a gente diz mal, é um diploma libertador, que diz aos agentes económicos e aos cidadãos titulares dos dados quais são exactamente as regras do jogo para uns cederem os seus dados em condições de protecção e para os outros processarem esses dados. Com elevados benefícios. Vou dar-lhe um exemplo: o Google dá-me um poder e uma informação que só o KGB e a CIA tinham há 15 anos e dá a todos os cidadãos do mundo um poder gigantesco de acesso a informação. Isto tem um valor social importantíssimo. Para mim, Sergey Brin e Larry Page deviam receber o prémio Nobel da Paz.
Ou não.
Bom, mas isso é o que o RGPD vem resolver. E dizem que os Estados Unidos e a China vão passar à frente da Europa porque não têm RGPD. Essas pessoas estão enganadas, o RGPD vai ser o maior motor de inovação e é a base da criação de um mercado digital único. Vamos ser os primeiros e vamos fazê-lo no respeito dos direitos do cidadão.
Hoje é preciso dar ouvidos a todos, a todo o eleitorado, mesmo àquele que consideramos menos moral ou ético
Voltando ao problema das migrações...
O problema das migrações é absolutamente central para o futuro da Europa e da União Europeia. Estamos com pressões políticas populistas perigosas para o futuro e o êxito de partidos ou de candidatos populistas, seja num referendo no Reino Unido ou em eleições presidenciais na França, acontece porque a esquerda não percebeu nada dos medos e das preocupações do eleitorado. A extrema direita é extraordinariamente perigosa porque tem um discurso sedutor - e temos um exemplo fantástico em 1933, quando Hitler identifica o culpado da crise e devolve o orgulho aos alemães depois da humilhação do Tratado de Versalhes [1919] e diz: "Para a nossa raça ser vencedora temos de aniquilar todas as outras e eles são culpados". Quando temos um influxo, a entrada de um milhão de migrantes - que não são políticos, são económicos - que vêm ocupar um milhão de postos de trabalho, que têm costumes diferentes dos nossos, é normal que o eleitorado reaja com preocupação. Fui injusto ao dizer a esquerda, devia ter dito os políticos do establishment europeu. Os não populistas não perceberam que Trump ia ganhar porque durante décadas não demos ouvidos às camadas populares. O melhor exemplo é Barack Obama, que como político admirava e admiro, mas que fez uma política de esquerda elitista, só para alguns. E Hillary Clinton assinou a sua sentença de morte eleitoral quando falou do potencial eleitorado de Trump como "deplorable". Hoje é preciso dar ouvidos a todos, a todo o eleitorado, mesmo àquele que consideramos menos moral ou ético.
Em vez de estarmos a gastar dinheiro a repopular, a dar emprego, habitação, educação, saúde a um milhão de migrantes, devíamos estar a gastar esse dinheiro em África.
Mas vê uma solução para o problema concreto?
Em vez de estarmos a gastar dinheiro a repopular, a dar emprego, habitação, educação, saúde a um milhão de migrantes, devíamos estar a gastar esse dinheiro em África. A única pessoa que disse isto até agora foi João Lourenço, presidente da República de Angola. África e a Europa têm de arranjar uma solução em África para evitar as migrações, porque, obviamente, África também não quer perder um milhão dos seus jovens, da sua população activa para outro continente, também precisa deles. Temos de criar esquemas produtivos e investir em África para fixar lá os africanos. Claro que se está um barco a afundar-se no Mediterrâneo não posso mandá-lo embora, tenho de o acolher. Esta é uma situação extraordinariamente difícil de se resolver, porque cada barco que acolho é um convite ao próximo. Temos de ter coragem. Ninguém deve morrer no Mediterrâneo, mas temos de criar as condições para fixar as pessoas em África, porque as pessoas que trazemos de África para a Europa estão indirectamente a criar tensões políticas no eleitorado tradicional para escolher governos que são muito sedutores a encontrar culpados. E isso é perigoso. Trump já ganhou e, infelizmente, vai ganhar outra vez. Isto é dramático: ter um presidente do mundo livre como Donald J. Trump. Nem tenho palavras para descrevê-lo. Isto preocupa-me, mas ao memo tempo há aqui uma oportunidade.
Uma oportunidade?
Para a Europa definir a sua estratégia como nação federal, definir a sua política de defesa, para orçamentar convenientemente e financiar as suas forças militares para não ter de ficar sob o guarda-chuva americano. A política externa americana tem uma hora precisa: começa no dia 7 de Dezembro de 1941, quando Roosevelt anuncia perante as duas câmaras do Congresso que os Estados Unidos estão em guerra com o Império do Japão, depois do ataque a Pearl Harbour. Desde então até ao presente, a política externa dos EUA nunca tinha se desviado um milímetro do comércio livre. "The Economist" traz um artigo que diz que os Estados Unidos defenderam o comércio livre durante 70 anos porque estiveram à frente do comércio livre durante 70 anos. No momento em que a China passou à frente, deixaram de defender o comércio livre. Temos de continuar a não estar em guerra, porque a história da Europa é uma história bélica, temos de fortalecer a União Europeia.
Como se evita a guerra?
Através de uma interdependência económica e ela é muito forte na Europa. A Alemanha não consegue estar em guerra com mais do que um país da Europa, de quem tanto dependem as suas exportações. Temos um continente extraordinariamente saudável do ponto de vista da interdependência económica. A interdependência é tão forte e tão salutar que o Reino Unido está a ter dificuldade em sair da União Europeia. E vou mais longe: ainda existe a possibilidade de voltar tudo atrás e de o Reino Unido ficar na UE. Isto é pegar na crise e transformá-la numa oportunidade.
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