PRÓLOGO

O bebé, quando acabou finalmente por nascer, deslizou para fora do corpo dela como Santa Margarida da barriga do dragão. O gemido da mãe fez lembrar a própria morte. E aquela migalha de gente, que mais parecia um coelho esfolado, ficou ali inanimada sobre os lençóis entre as pernas dela.

Estávamos em 1650, e esta é a memória mais antiga que tenho.

— Abre as portadas, Leah — disse-me Isabel, e os meus dedos minúsculos atrapalharam-se com o trinco e as dobradiças, a empurrar os painéis de madeira, a abrir as janelas.

Senti um fio de ar nas bochechas e perguntei-me se seria o novo dia a começar ou o espírito do meu irmão a partir; e, se fosse o espírito dele, porque tinha tanta pressa em ir-se embora.

Eu queria ir ter com a mãe, mas a alcova estava repleta de agitação e não consegui ver um caminho por onde pudesse chegar até junto dela.

— Pela Vossa divina providência… — murmurava ela. — Pela Vossa infinita graça… um milagre… a minha alma…

À primeira vista, era um anjo, beatífica e a rezar. Logo de seguida, era um animal, húmida e lamentosa. De qualquer maneira, era inalcançável.

Isabel estendeu-me um feixe de ervas.

— Põe isto a arder — disse-me.

Eu ergui-as à chama de uma vela, enquanto o meu olhar saltava das ervas para a mãe, da mãe para Isabel, e depois voltava às ervas. Pus-me ao lado de Isabel.

— Faz assim — disse-me ela, agarrando-me no pulso e agitando suavemente as ervas em brasa sobre o corpo do bebé.

Repeti o movimento, enquanto a via a enfiar um fio de lã pelo centro de uma pedra de serpente e a passá-lo à volta do peito sem vida da criança.

— Osso com osso, tendão com tendão, veia com…

Foi então que senti o pai atrás de nós. Tinha entrado na alcova de parto sem ser convidado, e eu percebi, sem sequer olhar, que dele só iria jorrar fúria.

CAPÍTULO 1

Fins do verão de 1665

Mae enfia a mão por baixo dos travesseiros e das almofadas à procura da faixa de linho feita num rolo, e depois deixa-a desdobrar-se entre as coxas. Passa-a à volta do peito despido — uma, duas vezes —, enfaixando a carne macia como um ratinho, ignorando as pontadas que sente nos seios imberbes, e aconchega o nó debaixo da axila. Por cima, veste uma camisa e ainda um corpete, e olha para si mesma para ver se aquilo funcionará mais um dia: a sua condição de quase mulher disfarçada sob camadas de linho.

Entretanto, veste as meias, os saiotes e o avental, e olha em volta à procura dos chinelos. Foram atirados para debaixo da cama e ela agacha-se para os ir buscar.

Depois de lavar as mãos e a cara na bacia, escova o cabelo, apanha-o em cima com ganchos, cobre-o com a coifa e prende os atilhos por baixo do queixo.

Ainda agora se levantou e já transpira.

De bacio na mão, detém-se junto à porta e tenta ouvir os sons do pai a rezar no seu quarto. Ele anda de um lado para o outro quando está a falar com Deus, nu como um recém-nascido, como se nada tivesse a esconder. No inverno, quando sai do quarto, tem os lábios azulados e as faces encovadas cheias de manchas, como se os santos o tivessem estado a esbofetear.

Uma corrente de ar quente passa por baixo da porta e pelos pés de Mae. E ela sustém a respiração para ouvir o pai, tentando calcular em que sítio da casa estará. Prefere começar o dia cedinho antes de ele se levantar, para lhe agradar com essa antecipação. Mas, por vezes, ele mal chega a dormir e ela vem encontrá-lo na cozinha à alvorada, curvado junto a uma vela a derreter, mais irascível do que nunca. Nesses dias, não é só a irritação do pai que ela tem de suportar, mas também a amargura; é Deus quem concede uma boa noite de sono, e o pai tem de fazer malabarismos com a sua consciência quando o descanso lhe é negado.

No entanto, quando ela chega à cozinha, não há indícios de uma noite insone, nada que sugira que o pai passou a noite a ler atentamente o Malleus Maleficarum: O Martelo das Bruxas. Aquele livro puído nunca lhe está longe do pensamento, e as páginas tantas vezes manuseadas começam a rasgar pela costura.

Junto à janela da cozinha, veem-se traças a esvoaçar, e os ratos vasculham sem pressas o chão da despensa em busca da migalha mais ínfima.

É Desta Que Leio Isto: Ela tinha o dever de deslumbrar. Em maio, Filipa Martins traz-nos a biografia de Natália Correia

Filipa Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de maio, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia", que chegou às livrarias a 16 de março, dia em que se cumpriram 30 anos sobre a morte da poetisa.

Esta obra mostra Natália Correia como símbolo das inquietações do século XX português e uma mulher "precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada".

Finalista dos Prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, Filipa Martins dedicou-se – nos últimos seis anos – a estudar a vida e a obra de Natália Correia, tendo sido coautora de um documentário e coargumentista de uma série de televisão sobre esta escritora açoriana.

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Na lareira, no meio das cinzas, Mae descobre uma brasa minúscula a tremeluzir. Um monte de erva seca e solta, uma ou duas assopradelas, e o fogo pega. Ela acrescenta alguns gravetos, um molho de ramos secos, e depois levanta-se, embalada por momentos pela visão das chamas: é reconfortante, mesmo numa manhã de verão. Sente relutância em virar costas e entregar-se às suas tarefas matinais de fazer pão, alimentar as galinhas e cortar legumes. Mas acaba por se decidir com a promessa de ervas e alquimia para mais tarde. O trabalho propriamente dito começará depois do pequeno-almoço e das orações: moer casca de quina vermelha, centopeias ou sene, comprimir pílulas, demolhar bichos-de-conta em óleo fervido. Mae vai ser as mãos sem as quais o seu pai não pode passar. E, com cada volta do pilão dentro do almofariz, vai afadigar-se com a tarefa de o convencer de que daria uma boa aprendiza.

*
A massa já está a levedar quando o pai desce as escadas. Tem de baixar a cabeça para entrar na cozinha e o cabelo grisalho cai-lhe para a frente da cara ao fazer isso. Ele põe-no para trás das orelhas e esfrega cuidadosamente as mãos. Mae vai buscar-lhe uma caneca de cerveja à despensa e depois duas fatias de pão com manteiga, uma para cada um. Sentam-se juntos à mesa e comem, e quando acabam o pai vai à despensa buscar um láudano e aplica-lhe algumas gotas debaixo da língua. Nos últimos tempos, nunca lhe diz o que escolheu dar-lhe, os ajustes que considera necessário fazer aos humores dela. Limita-se a aproximar-se de Mae com o frasco de barro numa mão e uma colher de osso na outra. E ela tem o cuidado de não se desviar dele.

O gosto espalha-se-lhe pela boca, todo bordeaux e vermelho-sangue.

— Cidreira e urtiga — diz ela num fio de voz, só o suficiente para ele ouvir.

Percorrem a rua calcetada em silêncio, passando por Little Edge, Fiddler’s Bridge e Hawk Hill, até chegarem à igreja. As grandes portas do edifício estão fechadas, mas sem tranca, pois os paroquianos são encorajados a oferecerem as suas preces a Deus a qualquer hora do dia ou da noite. A igreja está vazia, como é comum tão de manhãzinha, e Mae deixa-se ficar junto ao cotovelo do pai enquanto ele acende uma vela fina de sebo.

— Glória a Vós, Senhor — entoa ele —, que me destes sono para retemperar as forças e compensar as labutas desta débil carne. Concedei-me paz, saúde, e livrai-me dos pecados, hoje e todos os dias.

É uma pena que ela seja tão parecida com ele. Eu fui feita a partir do mesmo molde da mãe, redonda em todas as arestas e loura. Mae tem o rosto angular do pai e ossos protuberantes, o cabelo escuro da juventude dele. De vez em quando, vejo-a contemplar-se ao espelho da casa do relojoeiro, com os lábios finos apertados para não tremerem, perturbada por serem os olhos do pai que lhe devolvem o olhar. Se tivesse os olhos azuis da mãe — os meus olhos azuis —, talvez não fosse tanto o receio que tem de nos
esquecer.

É feita à imagem do pai, mas era a ratinha da mãe, e a tentação sempre foi grande demais para mim: garras de fora, pronta a atacar. Havia qualquer coisa nas sensibilidades de Mae, naqueles estranhos dons, que me enfurecia. E aquele cabelo ridículo — um ninho de cobras soltas e trocistas — sempre foi uma provocação a que me era difícil resistir. Arrepanhava-lhe uma mão-cheia de cabelo e arrastava-a atrás de mim pela cozinha até ela gritar por socorro. A mãe mandava-nos para o jardim até a fúria nos passar e, num dia de calor, até podia vir atrás de nós com um alguidar cheio de água imunda, determinada a sujar-nos às duas.

Na frescura da igreja, ajoelham-se e rezam, e Mae percebe, não pela primeira vez, que as suas preces se dirigem não a Deus, mas à mãe: «…na Vossa sapiência, guiai-me. Sou cega, embora a Vossa luz esteja à minha volta. Concedei graça ao meu coração, propósito ao meu carácter, vigor às minhas ações.»

Hesita em «a Vossa luz esteja à minha volta» e repete a frase baixinho. Tenta fazer com que seja real — tenta sentir o que está a dizer, como se assim conseguisse resgatar a mãe à morte. Tudo mudou quando ela morreu: a temperatura da casa, as sombras no jardim, o timbre das nossas vozes. Mas o que mais mudou foi o pai. A aldeia fala disso às vezes, de como o desgosto transtorna algumas pessoas e desconjunta outras.

Param junto ao nosso túmulo no regresso a casa. Os atilhos da coifa de Mae estão encharcados de suor e irritam-lhe a pele por baixo do queixo. Ela aconchega o xaile à volta dos ombros e ajoelha-se: limpa a pedra simples com a mão que tem livre, afastando algumas folhas secas, um pouco de musgo mirrado. Passa as pontas dos dedos pelas letras do nome da mãe e depois, de trás para a frente, da última letra do meu nome até à primeira. Quando aqui está sozinha, os túmulos parecem-lhe mais serenos do que tristes — nós agitamos-lhe a alma quando ela se ajoelha na erva e suja as meias e invoca a nossa memória: um salpico de sardas, a curva de uma pestana, o aroma do leite quente.

Mae diz o meu nome baixinho: Leah, como um suspiro, num tom que o pai não consegue ouvir. Mas talvez ele lhe pressinta a saudade, pois agarra-lhe no cotovelo e põe-na de pé.

Marshall Howe apoia a pá na sepultura que já lhe dá pelo joelho e observa-os. Tem o rosto molhado de suor, sente comichão por baixo das suíças e os lábios parecem-lhe salgados quando passa a língua por eles. Pressiona a manga da camisa contra a testa e limpa as mãos húmidas à parte de trás dos calções. Observa o pai e Mae, mas pensa em Joan porque ela nunca está longe dos seus pensamentos, e lembra-se do sabor dela naquela manhã e da forma como ela o observava quando ele abriu os olhos. Depois mordeu-lhe o lábio de maneira brincalhona, dolorosa, e enfiou-lhe a língua na boca. Então, o bebé William acordou e, embora Marshall tivesse fechado os olhos desapontado, pouco tempo depois já a criança o fazia rir.

Mae esfrega a mesa com sal e alecrim esmagado. Vai buscar os frascos que o pai lhe pede às prateleiras que revestem as paredes da cozinha. Pele de cobra moída, agárico, salsaparrilha. Ele senta-se junto à lareira e aconchega uma mão na outra, massajando os altos que tem nos nós dos dedos.

— Posso pôr-lhe umas ligaduras — oferece ela, pensando em água quente com sal, uma decocção de tamarindo, chá de sene, cremor de tártaro. Mas ele não reage. Mae pega no pilão e no almofariz, em facas e colheres.

— Traz vinagre — diz ele. — E terebentina.

Ela desloca-se com passo ligeiro, sem alarde, demonstrando assim a sua utilidade. O pai precisa de mim, tenta ela lembrar-lhe. Espera que assim seja. Olha para a bondade que existe nele, mas é para uma memória que está a olhar, uma memória esbatida e falível. E por isso olha para outra coisa: o facto de só restarem eles os dois e de haver sempre tanto que fazer, e de a cada inverno que passa os ossos do pai darem cada vez mais problemas. Ele precisa de mim, diz a si própria.

Mae arrasta o escadote pelo chão da cozinha, encosta-o à parede e sobe os degraus para chegar ao alcaçuz e à semente de anis. À mesa, aguarda que o pai lhe diga para picar o bocado de raiz cinzenta de valeriana. Para a moer e passá-la depois para um caldeirão de cobre. Imagina um jarro de água, umas quantas passas e uma pitada de pó de alcaçuz. Seria tudo muito mais rápido se não tivesse de aguardar pelas instruções do pai; se não tivesse de se fingir ignorante para não se denunciar.

Quando por fim pendura o caldeirão sobre o fogo, tem de se inclinar em frente do pai e percebe que as mãos dele quase lhe tocam no tecido do saiote. Ouve-o a respirar pelo nariz — um assobio semelhante ao que o vento faz nas juntas da casa, como o som fraco e fininho de uma ratazana acabada de nascer — e os pelos eriçam-se-lhe nos braços ao mesmo tempo que sente um arrepio no pescoço.

Mae levanta a pesada aldraba de ferro — uma serpente enrolada — da grande porta de Bradshaw Hall e deixa-a cair três vezes. Depois inclina a cabeça para trás, a fim de contemplar o relevo austero de um veado majestoso acima da entrada. Vira-se na direção do olhar do animal, fixo no horizonte distante — para os lados da charneca de Bleak Low e dos montes de Longstone Edge —, como se pudessem ambos observar algo por lá.

Um guincho diz-lhe que os dois filhos mais novos de Isabel estão a brincar nos cabeços de arenito que ficam nas traseiras da casa, a correrem um atrás do outro à volta dos montes de barrotes e vigas que por ali apodrecem, a brincar às escondidas nas alas espectrais que estavam a ser construídas há alguns anos quando o marido de Elizabeth Bradshaw ainda era vivo. Agora, estão em ruínas, imaginadas mas nunca terminadas, com escuridão onde devia haver janelas, e flores silvestres a crescerem da alvenaria abandonada. Há quem diga que é o que acontece quando uma grande casa fica a cargo de uma mulher. A casa é pertença dos filhos de Elizabeth, mas aqueles rapazes ainda fazem chichi na cama e precisam que lhes cortem a carne à hora da refeição.

Mae é conduzida pelo interior do salão, com as tapeçarias que lhe são familiares e a imensa mesa que dá para vinte e quatro pessoas. Conhece melhor a governanta por trás do que de frente: o traseiro largo como a garupa de uma égua, o cabelo entrançado cor de caramelo, o ritmo rápido das suas botas na pedra. Sempre o mesmo gesto quando chegam ao corredor que dá para a cozinha: a mão desenha uma curva ampla, como se Mae se pudesse esquecer do sítio para onde vai e continuasse a segui-la para a tarefa seguinte que a ocupará algures naquela casa. Por muito rotineiro que seja aquele pequeno gesto, por muito que não haja conversa, estão unidas como se fossem aliadas; a presença de Mae em Bradshaw Hall, todas as segundas-feiras ao fim da tarde, não deve ser referida fora daquelas paredes. Elizabeth Bradshaw deu ao seu pessoal instruções rígidas nesse sentido.

O dia está a terminar e a cozinha já foi esfregada, o chão está varrido e o avental da cozinheira, imundo. A divisão parece em paz, qual criatura que se prepara para ir dormir. A cozinheira está a acabar uma empada para o dia seguinte e desliza uma faca por baixo da cobertura de massa — fazendo o vapor precipitar-se do interior —, e Mae abranda para a ver acrescentar com uma concha natas e ovos sobre a carne e a fruta seca condimentada.

Livro: "A Cura da Cicuta"

Autor: Joanne Burn

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 18 de maio

Preço: € 17,70

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Depois de passar por uma porta, deixando para trás a tranquilidade da cozinha, ela entra no celário, que se encontra impregnado do perfume de rosas. As janelas altas banham o chão axadrezado com a luz do fim do dia e os raios de sol cor de âmbar são refletidos pelos alambiques de cobre. Mae olha para os objetos de vidro pousados nas longas prateleiras a todo o comprimento da divisão: garrafas e frascos alinhados que lembram soldados bem proporcionados. Algo nela se acalma ao ver tudo no seu devido lugar. Os seus olhos perscrutam os pilões e os almofarizes, as balanças e os pesos, os boiões e os raladores, peneiras e coadores, as duas dúzias de recipientes de latão, de diversos tamanhos e com uma imensa variedade de bicos. Mae passa pelos fornos e braseiros frios, e depois pelo calor de um que borbulha suavemente.

Por fim, vê as duas mulheres embrenhadas numa conversa no extremo oposto da divisão. Isabel está a apertar o braço de Elizabeth como se estivessem a debater algum assunto com seriedade, algum assunto grave. Mas então desatam as duas às gargalhadas e agarram-se uma à outra para se acalmarem.

Isabel olha para Mae quando ela se aproxima. Abre bem um braço de modo que Mae possa encostar-se a ela por um breve momento. O braço é todo ele suavidade, todo ele calor, e o corpo de Isabel lembra uma almofada nova, cheia de uma penugem levíssima. As ondas densas de cabelo prateado (ela ainda não completou as trinta e oito primaveras) fazem cócegas no rosto de Mae. Cheira-lhe a alfazema e a pastéis de canela. Mas, de repente, o momento já passou e Isabel aperta-lhe o braço com uma força acusatória por cima do xaile e da camisa, como se o braço não tivesse o direito de ali estar.

— Só pele e osso — diz ela, de sobrolho franzido.

Observa-a de cima a baixo, avaliando-a, como se conseguisse ver através das camadas de linho até ao conjunto de ossos de Mae: as ondulações das suas costelas e ancas.

— A tua mãe nunca foi tão magra — diz ela, como se acreditasse que Mae fosse culpada de alguma conspiração.

Se quisesse, Isabel podia continuar: «A tua mãe nunca foi tão franzina, não tinha o cabelo tão escuro nem os olhos tão juntos.»

— A nossa querida Florence — diz então Elizabeth, ajeitando uma madeixa de cabelo ruivo atrás da orelha.

E a atenção das duas mulheres entrega-se a recordar Florence daquela forma que é simples quando uma pessoa já está morta: falando apenas de virtudes. Mae escuta avidamente as amigas da mãe, atenta a alguma gotícula de informação que desconheça. «Contem-me mais coisas», costumava ela dizer. «Contem-me mais coisas.» Se pudesse, rapava aquele frasco de memórias, lambia as que se lhe colassem aos dedos, saboreando-as durante muitos dias.

Por vezes, as mulheres falam de mim, mas não muito. Coitadas, esforçam-se por falar de mim de modo caloroso.

No entanto, não lhes é difícil falar de unguentos e águas, bálsamos e cordiais. E Mae vai brincando com um pequeno alambique de latão que se encontra pousado na comprida mesa de madeira à espera de ser utilizado — vira-lhe o bico ao contrário, toca-lhe no reservatório de vidro. Por vezes, dá a impressão de não estar a ouvir, mas não perde uma única palavra. Os fins de tarde que
passa em Bradshaw Hall — com aquelas mulheres que se lembram da mãe e gostam de falar dela, aquelas mulheres que não acham que a educação de Mae seja uma tolice — são extremamente terapêuticos.

Isabel abre o seu livro de receitas: receitas de todo o género acumuladas num volume de folhas soltas, manchadas e bastante usadas, que foram reunidas, procuradas e legadas por alguém. Por vezes, as mulheres mais pobres da paróquia, que não podem pagar em dinheiro pelos serviços de parteira, oferecem a Isabel uma receita inestimável em vez do pagamento, um qualquer remédio secreto passado de mãe para filha na família da mulher em questão.

Do armário aquecido, encostado à parede por trás delas, Elizabeth traz minhocas secas.

— Curti-as em vinagre antes de as secar.

Vai buscar amêndoas-amargas, pó de aço espanhol e vinho branco, enquanto vai falando do mal verde e de como se deve diagnosticá-lo. Tanto as virgens como as mulheres casadas e as viúvas são suscetíveis de sofrer dele.

— Quando a mulher tem este mal, fica tão pálida que parece verde — diz Isabel. — Sente fadiga, tem falta de apetite, suores frios, e anda abatida. Se lhe faltarem as regras, é mesmo sinal de que sofre deste mal, e não de qualquer outro achaque. Um físico talvez diga que uma mulher neste estado tem falta de um homem, que é lasciva e que um exercício vigoroso na alcova é a única cura possível. — Faz uma pausa. — Mas não há provas de que esse remédio seja de confiança.

Este último aparte é dirigido a Elizabeth, que se ri baixinho, e Mae não consegue evitar sorrir, olhando para cada uma das mulheres e perguntando-se se irão partilhar a piada com ela. Umas vezes, partilham, outras vezes, não.

— Alguma de vocês já teve o mal verde? — pergunta, com a esperança de que falem sobre o assunto.

Elizabeth passa um almofariz a Mae e depois empurra para perto dela o monte de minhocas secas. Têm a cor de uma nódoa negra, e Mae despeja-as dentro do almofariz e esmaga-as sob o rangido seco do pilão.

— Eu conheço mulheres que já tiveram — responde Isabel.

— Muitas vezes, o mal vem depois de um filho, sobretudo se o parto foi particularmente difícil. O exercício ajuda. Assim como o calor do verão, muita carne e perseverança no remédio prescrito.

Interrompe-se, à espera de que Mae acabe de esmagar bem aqueles cadáveres quebradiços. Depois empurra o livro de receitas de Mae para junto dela, juntamente com uma pena e tinta, e diz:

— Anota tudo.

Mae sente os olhos de Isabel cravados nela enquanto se concentra em escrever com uma letra perfeita. Aprender a ler nunca foi um problema, mas a sua letra — como lhe advertem constantemente as mulheres — faz lembrar uma aranha que caiu num tinteiro e depois se arrastou pela folha fora. «Tens de conseguir ler isso no futuro, senão que sentido há em tomar apontamentos?»

Elas esmagam as amêndoas-amargas e acrescentam-nas às minhocas desfeitas e ao pó de aço espanhol. Elizabeth adiciona alguns salpicos de vinho para formar uma pasta.

— Aconselha-se uma colher pequena de manhã e outra ao fim do dia, dissolvida em vinho aquecido, ou então em cerveja.

Mae escreve e aplica o mata-borrão.

— É claro que, conhecendo o mercador certo, e se a mulher for abastada, então uma única dose de pó de chifre de unicórnio cura por completo o mal — diz Elizabeth.

— Anoto isso?

— Bem, a quarenta libras a onça… — diz Isabel.

Elizabeth diz que não com a cabeça.

— Não gastes tinta com isso. Há ingredientes tão raros, que são uma cura para todos os males que nos afligem. Não é difícil memorizá-los.

Mae tenta sempre chegar a casa bastante tempo antes do pai, para poder sentar-se junto à lareira e costurar alguma coisa. Com tempo suficiente para refazer o laço dos atilhos da coifa, para alisar os saiotes. Com tempo que chegue para entorpecer a carne contra a cadeira dura que está a um canto da cozinha. Para se lembrar de que aquilo é ali e isto é aqui. Um dia, espera impressioná-lo com tudo o que aprendeu secretamente. Mas, por enquanto, tem de se lembrar da sua ignorância: do comprimento, da largura e do peso da sua ignorância.

Ela e o pai funcionam como um relógio, ao regressarem dos seus compromissos secretos. Mas, ainda assim, apressa-se a voltar para casa como se pudesse ter feito mal as contas às horas. Como se o relógio de bolso de Elizabeth não fosse de confiança e, naquela semana, o pai fosse mesmo apanhá-la. Não é de o pai a apanhar na rua ou a tentar abrir a porta que ela tem receio, pois podia arranjar uma desculpa qualquer se tivesse mesmo necessidade disso. É da ideia de trair o arranjo que tem com Elizabeth e Isabel. De alguma maneira trazer consigo o celário — o perfume de rosas e o aroma dos pastéis de canela agarrados ao cabelo.

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