A irmandade de vozes

Num capítulo anterior (Deixar-se Levar) falei do impacto emocional da «entrega» ou da rendição a uma força superior — o alívio após a tormenta.

Quando David Bowie se referiu à importância da espiritualidade — ou quando, em Provérbios 17:17, se lê: «O amigo ama em todos os momentos; é um irmão na adversidade» —, estava a apontar para o mesmo processo, mas do ponto de vista da forma. A que tipo de espiritualidade se referia Bowie, e que «irmão na adversidade» é este de que nos fala a Bíblia?

Pensemos na religião. Enquanto forma de ordenamento social, avolumou-se nas trevas, ou seja, no tempo em que ao Homem não restava outro remédio senão voltar-se para Deus — a vida era tão brutal, tão miserável, e o seu valor tão escasso, que o medo da Morte (abrupta e final, absoluta) suplantava tudo o resto. Ora, embora a religião e a espiritualidade se sobreponham em alguns momentos, não são a mesma coisa. Ambas se manifestam de muitas maneiras e, no seu pior, assumem contornos tirânicos, nefastos (ver capítulo Espiritual). Creio que David Bowie, porém, ao afirmar que a espiritualidade é para aqueles que já passaram pelo Inferno, se referia à ideia de comunhão; frequentador dos grupos de Doze Passos que tiveram origem nas ideias de Bill Wilson, Bowie conheceu, porventura, o poder terapêutico da amizade e do amor na adversidade.

A antropóloga cultural Margaret Mead escreveu: «Nunca duvidem de que um pequeno grupo de cidadãos ponderados e comprometidos pode mudar o mundo. Na verdade, é a única coisa que algum dia o mudou.» Ou, nas palavras bem mais recentes de Yuval Harari: «É preciso uma tribo para educar um ser humano.» Poder-se-ia pensar que Mead e Harari falam de gabinetes de políticos ou de magistrados, mas, na verdade, julgo que estão a falar de grupos bem mais prosaicos. A política e os tribunais não «mudam o mundo», simplesmente proporcionam melhores ou piores condições nas quais essa mudança acontece. E essa mudança, embora pessoal e íntima, transforma o nosso mundo.

Já falámos da ideia de tribo, mas gostava de invocar agora o conceito de irmandade: o encontro ou a aliança de pessoas com o mesmo propósito, finalidade ou objectivo espiritual (acrescento o epíteto espiritual, porque a palavra carece de maior definição; um encontro de barões da droga para dividir os lucros do cartel, ou o encontro de banqueiros num jacto privado não é propriamente aquilo em que estou a pensar). Estes «cidadãos ponderados e comprometidos», quando se juntam para o bem dos outros e o seu próprio, e de inúmeras maneiras — já lá iremos —, formam irmandades que, um pouco por todo o mundo, são a melhor maneira que eu conheço de aqueles que sofrem encontrarem alguma saúde mental, paz de espírito, e um coração mais ou menos compassivo.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Quando se ouve dizer que a Arte é transformadora, é porque tem o poder de sossegar a inquietação natural do ser humano — inquietação essa que deriva da sua posição patológica no mundo, a de um ser finito perante a inclemência da Morte —, dando-lhe sentido através da beleza. Se compararmos este processo com a alquimia, em que o metal é transformado em ouro, obtendo-se o elixir da longa vida (que disputa todas as doenças, incluindo a Morte!), compreenderemos mais facilmente que a Arte representa a imortalidade (1).

A música, no seu processo «alquímico», transforma pathos (ou sofrimento) em emoção e beleza. Não há ninguém, nem mesmo o frequentador mais assíduo dos festivais de trance (ver capítulo Hipnose), que, perante uma belíssima peça de Mozart ou de Brahms, não se sinta, de certa maneira, tocado. É interessante observar como a Arte, talvez a expressão mais íntima do ser humano, não tem como objectivo a felicidade, o bem-estar ou o optimismo — que parecem ser as metas do Homem pós-moderno —, mas o Belo. Acontece que o Belo nos toca de maneiras insuspeitas e pode deixar-nos profundamente tristes ou melancólicos. Se é certo que um homem inquieto se sente revoltado, um homem triste sente-se, de certa maneira, perdoado, como se essa tristeza fosse a consequência inevitável da sua condição humana.

A Sinfonia n.º 3, Opus 36, de Górecki — que aborda os temas da maternidade e do sofrimento —, é um bom exemplo desta expansão de consciência que a beleza produz. O primeiro andamento é o lamento de Maria, mãe de Jesus (Meu filho, escolhido e amado/partilha as tuas dores com a tua mãe/e porque, querido filho, sempre te guardei no coração (…) embora já me comeces a deixar, minha esperança); o segundo, uma oração escrita na parede da cela número 3 do quartel-general da Gestapo, em Zadopane, por Helena Wanda Blazusiakówna, uma rapariga de dezoito anos, encarcerada no dia 26 de Setembro de 1944: Não, Mãe, não chores/Mais casta Rainha do Céu/Estás sempre comigo/Ave, Maria.

A tonalidade desse segundo andamento, em si bemol menor, e a voz da soprano são uma espécie de gume que corta através dessa ira primordial do humano, encontrando no coração uma câmara de ressonância. De repente, já não estamos inquietos nem insatisfeitos, largamos a zanga e o desejo. E perguntamo-nos: por que razão estas notas em particular, tocadas e cantadas desta maneira, mexem tanto comigo?

Bom — é alquimia! Tendo em conta que grande parte da vida nos encontra numa posição de resistência (quero isto, não quero aquilo), o que a música faz pelo ser humano é magia. Se os sentimentos fossem cubos de gelo, a música seria o «sol» que os liquefaria: o vil metal seria transformado em ouro, e um Novo Homem surgiria dos destroços do antigo. Ganharíamos a certeza de que a Arte é a expressão da eternidade. Peço-lhe que faça a experiência de, num dia ou numa altura particularmente difícil da sua vida, escutar o segundo andamento da Sinfonia n.º 3 de Górecki, e observe o que acontece ao corpo, à mente e ao espírito. Assemelha-se muito ao que sucede durante a comunhão. Os arrepios, a rendição, a suave aceitação da tristeza — o fim da guerra que travamos com um mundo no qual não estamos destinados ao êxito.

Lembra-se das palavras de Robert Louis Stevenson no capítulo Deixar-se Levar? «O fracasso é a nossa sina.»

Perto dos quarenta anos, durante uma fase particularmente dura, descobri na música clássica um bálsamo para as minhas feridas. Não apenas pela sua complexidade harmónica e melódica, ou pelo interesse no papel que vários instrumentos desempenham no contexto do todo, nem pelo meu fascínio pelas partes corais. O que verdadeiramente me tocou, creio, foi o facto de os compositores terem escrito aquelas peças há duzentos, trezentos ou quatrocentos anos, sabendo que a Morte os levaria e que a única coisa que restaria deles seriam aquelas partituras repletas de colcheias e de semínimas e de fusas e de semibreves, rabiscos que não permitem antecipar a beleza da sua interpretação.

Ora, a beleza — muitas vezes confundida com a simetria, o agradável ou o bonito — é o destino da obra de arte: da música, da literatura; e é também o destino humano, pois representa, em última análise, a experiência emocional da perda. Por vezes, pensamos que ela só acontece quando perdemos alguém de quem gostamos, por exemplo, mas, na verdade, ela acompanha-nos sempre, desde o momento em que nascemos. Perdemos o conforto do ventre; a conveniência de quem nos vista, nos dê de comer, cuide de nós; a inocência da infância; a jovial liberdade de sermos irresponsáveis. O primeiro fulgor da paixão. A experiência da maternidade e paternidade; a proximidade e distanciamento dos nossos filhos. Perdemos o cabelo, a massa muscular, a mobilidade. Perdemos a saúde. Por vezes, perdemos o juízo. Finalmente, perdemos a Razão, talvez a mais benéfica de todas as perdas — o estado de animação suspensa em que os muito idosos se encontram, adormecidos durante grande parte do dia, o sol beijando-lhes a pele encarquilhada, flutuando numa semiconsciência que lhes traz passados longínquos, sem saberem que dia é, nem o que aconteceu ontem, ou no mês passado, ou até no ano anterior…

O Buda descobriu tudo isto aos vinte e nove anos, de supetão. Nós sabemo-lo desde que nascemos, e vamos assistindo ao processo de ascensão e declínio do ser humano, com a inevitável melancolia que o acompanha. «Então, uma mulher disse: ‘Fala-nos da alegria e da tristeza.’», escreveu o poeta libanês Khalil Gibran. «E ele respondeu: ‘A vossa alegria é a vossa tristeza desmascarada (…) Quando estiverdes alegres, olhai no fundo do vosso coração, e achareis que o que vos deu tristeza é aquilo mesmo que vos está dando alegria. E, quando estiverdes tristes, olhai novamente no vosso coração e vereis que, na verdade, estais chorando por aquilo mesmo que constitui o vosso deleite.» A alegria e a tristeza são inseparáveis, diz Gibran; quando uma está sentada à mesa, «lembrai-vos de que a outra dorme em vossa cama». Esta consciência, trazida de maneira mais aguda pela experiência da Arte, é também o garante da sobrevivência espiritual do ser humano.

Conheço muitas pessoas que, em fases negras das suas vidas — e até à beira do colapso ou do suicídio —, encontraram na música, na literatura, na poesia, a maneira de se manterem à tona; não regeneradas, mas, pelo menos, aqui. Não conheço ninguém que, na mesma situação, tenha encontrado na bolsa de valores a sua salvação.

Não se esqueçam: somos optimistas selvagens. A nossa versão da realidade não é a realidade. Necessitamos de ser trazidos, uma e outra vez, diariamente, por vezes de hora a hora, ao doloroso lugar de aceitação das coisas tais como elas são. A Arte pode ser um caminho, se a entendermos como uma experiência de comunhão. E, regressando aonde começámos, podemos então dizer que essa comunhão é o lugar onde acontece esta regeneração do Homem — a sua conversão, por assim dizer; o território inexplorado da sua lysis.

Porquê?

Lembremo-nos, por exemplo, daquilo que ouvimos na nossa adolescência. As canções pop e rock são simplificações de um sentimento, encapsulado em três ou quatro minutos, e servem assim o seu propósito. Yesterday ou Something dos Beatles; With or Without You dos U2; Pictures of You dos The Cure — momentos de comunhão de todos os adolescentes com corações desfeitos, para os quais a experiência da paixão é uma novidade avassaladora. Ou Highway 61 Revisited de Bob Dylan, Nevermind dos Nirvana, The Bends dos Radiohead, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars de David Bowie, ou Rain Dogs de Tom Waits, ou Blue de Joni Mitchell… É infindável a lista de álbuns que, em certa altura das nossas vidas, em momentos difíceis, nos ampararam e nos ajudaram a suportar a dor, por sabermos que não estamos sós, que o nosso pathos é partilhado.

Aquilo que McCartney canta em Yesterday ou Eleanor Rigby, ou que John Lennon canta em Strawberry Fields Forever ou In My Life, é a expressão musical do nosso sentimento indecifrável de perplexidade diante desta experiência tão estranha que é a vida. A identificação com a perplexidade dos outros é um bálsamo. No mundo pós-Revolução Industrial, e sobretudo nos séculos XX e XXI, em que a experiência humana se tornou mais individual e solitária do que nunca (veja-se o exemplo da tribo em Socorro!), o alcance das bandas e das canções foi essencial para que a conexão humana não desaparecesse. Podemos não nos conhecer, mas sabemos cantar juntos What a Wonderful World ou Bridge Over Troubled Water — ou, pelo menos, trautear ou assobiar umas quantas notas.

A magia desta comunhão não deve ser desprezada. Se é preciso uma tribo para educar um ser humano, são necessárias umas quantas canções, obras literárias e heróis comuns para o manter ligado à Humanidade. A identificação é uma das armas mais poderosas que existem, e um revolucionário dos anos 1960 poderia passar sem nunca ouvir The Times They Are A-Changin’, mas não seria a mesma coisa; ao mesmo tempo, figuras como Ghandi ou Martin Luther King ou Einstein ou Pablo Picasso ajudam-nos a recordar que, ao mesmo tempo que somos imensamente frágeis, fazemos parte de algo maior do que nós. Os deuses gregos e o monoteísmo cristão foram sendo lentamente substituídos por aquilo que dentro de nós é universal e que se manifesta em muitas áreas da criatividade humana — a Arte é uma delas, mas o desporto também.

Maradona, por exemplo, pode ter sido um homem destrutivo (sobretudo para si próprio), mas a manifestação do sublime em campo ficará para sempre. Talvez até se possa dizer que, dentro de campo — mergulhado na irmandade que também é uma equipa de futebol —, Diego Armando foi mais humano que na sua atribulada e terrível vida pessoal, captada por Kusturica num documentário de 2008; ou que Michael Jordan se imortalizou no ar, prestes a afundar a bola de básquete; ou Serena Williams, a executar um serviço de 130 quilómetros por hora, ou Nadia Comaneci a fazer incríveis acrobacias nas paralelas assimétricas. A expressão do sublime é a permanência do belo em nós, e a beleza é capturada nesses instantes fugazes, como a fuga de um andamento de Bach, ou o ámen final no Geistliches Lied de Brahms.

São momentos que não perduram, porque o natural declinar da beleza é condição sine qua non da sua existência. A experiência de Deus é fugaz, é preciso estar atento e ser paciente.

Como também já escrevi aqui, a captura e preservação desse instante pode transformar-se numa obsessão. Aqueles que têm a experiência directa, prolongada e incessante do sofrimento são também aqueles que mais desejam escapar-lhe de uma vez por todas, e essa fuga pode levar a lugares inóspitos e solitários de negação da realidade (ver capítulo Espiritual).

A única maneira que encontrei de viver «como se Deus existisse» — e isto só serve para mim, pois não pretendo que nada do que digo sejam verdades absolutas, mas apenas experiências que talvez sirvam a alguém — foi através dos outros. Isto ainda me causa ressentimento, claro; toda a vida quis ser auto-suficiente, bastar-me a mim próprio. Necessitar dos outros, mesmo que em doses homeopáticas, é contra a minha construção social de marginal, excluído, diferente, rebelde.

Talvez esta última palavra seja a mais adequada ao jovem confuso de dezasseis anos e ao adulto de trinta, desamparado e caótico, que fui — a rebeldia, ao contrário de um acto de coragem (que pode ser significativo e importante num regime ditatorial, por exemplo, ou como oposição a uma injustiça), nasce também do medo. Este capricho do sistema nervoso, que me leva a comparar-me com os outros, a entrar em conflito, a menosprezar as opiniões alheias, a olhar para as outras pessoas como potenciais adversários, é o contrário da comunhão. A ligação aos outros e, por conseguinte, à realidade acontece quando me permito ser uma peça de um infinito puzzle, quando a voz incessante da Razão — que quer «ter razão» em todos os momentos (ver capítulo A Partir dos Quarenta) — se aquieta, abrindo espaço dentro de nós.

Livro: "Uma valsa com a Morte"

Autor: João Tordo

Editora: Companhia das Letras

Data de Lançamento: 29 de maio

Preço: € 16,65

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

No meu caso, esta experiência de comunhão aconteceu quando olhei de frente as minhas dificuldades, assumi que não podia enfrentá-las sozinho, encontrei outras pessoas com os mesmos problemas e, sobretudo, quando as ouvi. Identifiquei-me com as experiências partilhadas nesta irmandade, sentindo que os outros, sempre que falavam de si próprios, falavam também de mim.

A minha crença já antiga num poder superior não foi determinante, mas ajudou. Mais tarde, tornou-se fundamental, e agora vejo O em todo o lado; não necessariamente Deus (embora possa chamar-se assim), mas uma espécie de serenidade que se esconde por trás da maluquice da vida quotidiana e que existe no interior daquele que comunga. Nada disto tem a ver com hóstias e o corpo de Cristo, mas com a regeneração do indivíduo.

Dia após dia, a vida desgasta-nos. O vazio adensa-se. A necessidade de consolo, impossível de satisfazer, torna-se mais aguda. A raiva acumula-se. A impotência morde-nos os calcanhares. O sistema nervoso ameaça entrar em colapso. Julgar que existe uma única solução para a complexidade desta questão humana equivale a dizer que um só número de sapatos serve a toda a gente; reduzi-la à questão religiosa é fanatismo.

Novamente, Margaret Mead: um pequeno grupo de cidadãos ponderados e comprometidos… Por vezes, são os grupos de auto-ajuda. Noutras, o serviço voluntário. Noutras ainda, pertencer a um clube desportivo, servir numa cantina para pessoas sem abrigo, praticar yoga em conjunto, fazer meditação em grupo, caminhadas, clubes de leitura, aprender a dançar, tocar numa orquestra ou cantar num coro; seja o que for, não vale fazer apenas uma vez. O segredo para combater o vazio com coisas saudáveis é a repetição. Da primeira vez que participei numa reunião de Doze Passos, a minha boa-vontade era nula, o meu desespero, enorme, a minha esperança, diminuta. Com tempo e persistência, fui saindo do negrume, a flor-de-lótus despontou, deu-se a conversão, surgiu um Novo Homem, um golem feito de matéria inorgânica.

A irmandade de vozes a que me refiro é esta. Encontrar pessoas que, tal como nós, se sentem desamparadas num mundo demasiado grande e ameaçador. No meu caso, um dia de cada vez (uma hora de cada vez!), fui encontrando a solução para os problemas que me assolavam, e dos quais era incapaz de me libertar sozinho; ao mesmo tempo, tornei-me cada vez mais próximo de quem sou, e tenho vindo a aceitar essa pessoa, a dar-me razoavelmente bem com ela. Não é perfeita, nem nada que se pareça.

É um indivíduo chato, picuinhas e facilmente irritável, a quem a vida provoca ondas repetidas de exasperação e alegria, uma criatura que finalmente é capaz de amar, porque desesperou com aquilo que perdeu, para quem a constante busca por outra coisa qualquer chegou ao fim; alguém que vive como se Deus existisse, para talvez, no fim, quando a Morte chegar, descobrir que, afinal, Ele não existe.

Mas nessa altura já não terá muita importância, pois não?

(1) A alquimia consistiu basicamente numa tentativa de sermos «deuses» — o famoso homúnculo, ou, na tradição judaica, o golem, era vida humana gerada a partir de materiais inanimados, por exemplo. Precursora da química moderna, e apesar de disparatada, a alquimia teve três objectivos que são apanágio da ciência e tecnologia de hoje: a riqueza material, a prosperidade do corpo e a criação de um Novo Homem (nem que seja a partir da ovelha Dolly).