Capítulo 1

O renascimento da corrida às armas

É o princípio da manhã de 23 de fevereiro de 2014 na resi- dência de Vladimir Putin em Novo-Ogaryovo, a oeste de Moscovo. Uma reunião que durou toda a noite para discutir a crise na vizinha Ucrânia, onde os protestos populares derrubaram o presidente Viktor Yanukovych, está agora a terminar. Putin volta-se para o seu chefe de segurança e diz-lhe que «temos de começar a trabalhar para devolver a Crimeia à Rússia». Russa até 1954, e ainda hoje a base da Frota do Mar Negro de Moscovo, a Península da Crimeia na Ucrânia tem tanto valor sentimental quanto estratégico.

Na Crimeia, as manifestações de apoio ao novo governo ucraniano pró-europeu não tardam a deparar com manifestações rivais. Juntamente com genuínos entusiastas pelo regresso ao controlo de Moscovo, há cossacos, membros do famigerado bando de motociclistas Lobos da Noite (com os quais Putin havia viajado) e «voluntários locais de autodefesa» que têm ar de bandidos. Muitos deles são afinal membros dos dois principais grupos do crime organizado na Crimeia, Salem e Basmaki. Foi necessária uma mistura cuidadosamente ponderada de ameaças e de promessas pelos agentes do Serviço Federal de Segurança da Rússia para fazer com que esses inimigos mortais trabalhassem juntos, mas por enquanto estão a fazê-lo. Uma campanha orquestrada de comícios amplifica e radicaliza o ressentimento genuíno contra um distante governo ucraniano que desprezou a Crimeia durante anos. Comentaristas cooperantes advertem que as gentes da Crimeia enfrentam a opressão de Kiev, e agentes provocadores incitam a multidão à cólera.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Em 27 de fevereiro, as forças especiais russas capturam os edifícios do governo local. Esses «homenzinhos verdes» não usam insígnias, e Moscovo nega ter relação com eles. O ardil é bastante transparente, mas leva Kiev e o Ocidente a uma certa pausa. Poderão ser mercenários? Poderia tratar-se de uma operação independente levada a cabo pela Frota do Mar Negro? Essa hesitação é suficiente para que os invasores estabeleçam posições de comando, prendendo as guarnições ucranianas e selando o istmo da península. Entretanto, Moscovo tem vindo a oferecer aos comandantes das forças ucranianas na península promoções e glória se eles trocarem de lado. O GRU, a inteligência militar russa, recorre a uma mistura de agentes, desinformação e ciberataques para interromper as comunicações com Kiev. As ações desses «voluntários» indisciplinados são de pouco valor tático, apesar das armas misteriosamente novas que eles usam, mas ajudam a proporcionar uma cortina de negação, enquanto as forças da Rússia fecham metodicamente a península.

Em 1 de março, impuseram o seu próprio primeiro-ministro da Crimeia — ligado aos tais «voluntários» — e forçaram os defensores que não cediam a renderem-se. Por avião e navio, chegam abertamente reforços russos para proteger a região. Quase não foi disparado um tiro (morreram apenas cinco pessoas: dois civis, dois soldados ucranianos e um «voluntário» que poderá ter-se atrapalhado com a sua própria arma), mas a Crimeia foi tomada, numa operação em que a subversão, a criminalidade e a desorientação importam pelo menos tanto quanto a força militar.

Para alguns, esta operação foi algo de novo, a primeira verdadeira conquista da «guerra híbrida». Embora o engano e a perfídia dificilmente fossem novidade, nasceu não obstante toda uma indústria de especialistas, analistas e autores dedicados a descobrir uma suposta «nova forma de guerra». Esta será apenas a extremidade mais musculada do espectro da diplomacia e da arte de governar, haverá algo diferente na natureza do conflito, ou é simplesmente o decorrer normal das coisas? Talvez o nosso próprio vocabulário não esteja à altura da tarefa.

O QUE HÁ NUM NOME?

Guerra Híbrida. Guerra de Zona Cinzenta. Guerra Assimétrica. Guerra de Tolerância. Guerra Irrestrita. Guerra Não-Linear. Surgiu uma superabundância de novos termos que são igual- mente imprestáveis. Na verdade, para alguns é a «Doutrina Gerasimov», uma ideia diabólica do chefe do Estado-Maior russo, general Valery Gerasimov. Tal doutrina não existe. Eu deveria sabê-lo, visto que fui eu que a inventei, incauta e despreocupadamente, como título de um artigo, sem jamais acreditar que viesse a ser tomada como verdade. A moral da história é que é preciso ter cuidado com os títulos feitos à pressa, pois podem acabar por ter mais impacto do que tudo o que se escreva por baixo. Mas, se a «Doutrina Gerasimov» não tivesse surgido, seria provavelmente outra coisa a cair nas graças dos comentadores. Afinal, todos parecem querer — ou precisar de — acreditar que algo de novo está a emergir. Em Helsínquia, até já existe um Centro Europeu de Excelência para Combate às Ameaças Híbridas, mesmo que não haja um consenso real sobre que ameaças podem ser essas. Aliás, Moscovo está igualmente determinada a acreditar que a NATO tem a sua própria forma de gibridnaya voina — guerra híbrida —, cujas artes místicas lhe permitem fomentar rebeliões contra os aliados russos no mundo árabe e na Eurásia pós-soviética.

O tema principal é de métodos mistos. A noção chinesa de Guerra Irrestrita, desenvolvida na década de 1990, argumenta que continua a ser possível vencer um inimigo tecnologicamente mais avançado e militarmente mais poderoso, se o conflito for deslocado para a economia, para o terrorismo, até mesmo para o campo legal. No Ocidente, o Centro de Excelência define uma «ameaça híbrida» como «uma ação conduzida por atores estatais ou não estatais, cujo objetivo é minar ou prejudicar um alvo combinando meios militares e não militares abertos e encobertos». Guerra híbrida — um termo que foi cunhado originalmente pelo pensador militar americano Frank Hoffman, especialmente para entender como uma força não estatal como o movimento militante Hezbollah no Líbano podia enfrentar uma força militar convencional como a de Israel — assumiu um significado ainda mais amplo, para denotar a combinação de combate no campo de batalha, subversão encoberta, desinformação, ciberataques e qualquer outra coisa que um ou outro lado possam adicionar a esta combinação.

Com isso veio a «vaga armamentista», quando a noção de artigos e de conceitos que geralmente não estão relacio- nados com o conflito — a calúnia, o clima, as fotografias de gatos bonitos — passaram de repente a fazer parte do fluxo mediático e, portanto, do discurso político. (Gatos bonitos? A ideia é que as mensagens tóxicas combinadas com publicações atraentes e partilháveis circulam mais amplamente nas redes sociais.) O termo «weaponisation» (usar como arma) — que surge no título deste livro meio a sério, meio a brincar — irrompeu no uso público. O sociólogo Greggor Mattson concluiu que, embora a palavra exista há décadas, ela passou realmente a ser do uso geral em 2017 — tendo presumivelmente alguma ligação às eleições presidenciais dos EUA em 2016 e às reivindicações de interferência russa —, de tal forma que não só pareceu corroer as fronteiras entre a vida civil e o conflito incivil, como também refletiu uma espécie de amnésia nostálgica por um mundo perdido que nunca existira realmente, onde esses dois lados se mantinham rigidamente separados.

De repente, tudo pode ser usado como arma e fazer parte do crescente paiol (arsenal, até) de metáforas militares que nos rodeiam. A ironia é que, enquanto a linguagem da guerra real se está a tornar brandamente eufemística (com «sistemas de entrega» que causam «danos colaterais»), o discurso civil torna-se mais marcial. Além da «Guerra às Drogas» e da «Batalha contra a COVID» (o primeiro-ministro britânico Boris Johnson saudou mesmo a notícia das vacinas como sendo uma prova de que a «cavalaria científica» estava a «chegar ao cume da colina»), tudo parece agora ser expresso em terminologia militar. Isso poderá refletir em parte a nova era em que a bomba de um terrorista ou as sanções de um rival podem atingir qualquer um, em qualquer momento, fazendo-nos sentir como recrutas relutantes num campo de batalha invisível. Mas toda esta noção de uma forma de guerra substantivamente «nova» é problemática. Sim, a interconectividade sem precedentes do mundo moderno cria oportunidades para os Estados lutarem sem combater. Sim, como se discutirá no próximo capítulo, a guerra declarada de Estado contra Estado à velha maneira da cutilada e do tiroteio tornou-se menos útil e menos acessível. Mas, a partir do momento em que um bando de homens das cavernas enfrentou outro para disputar a posse da caverna mais seca, todas as guerras foram «híbridas». Só nos videojogos é que se ganha uma guerra matando todos os inimigos. Em vez disso, as guerras são uma forma extrema de diplomacia coerciva, atos intrinsecamente políticos, maneiras de impor a sua vontade a outro degradando-lhe a capacidade de resistir. Trespassar os seus soldados e arrasar as suas cidades é apenas um meio para atingir um fim, e é provável que funcione apenas quando combinado com iniciativas para minar o seu moral.

Livro: "Quando Tudo É Uma Arma - Um manual de campo para a guerra do século XXI"

Autor: Mark Galeotti

Editora: Edições 70

Data de Lançamento: 21 de setembro de 2023

Preço: € 19,90

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Foi o que Basil Liddell Hart, soldado britânico que se tornou teórico, quis dizer quando escreveu que, «em todas as campanhas decisivas, o deslocamento do equilíbrio psicológico e físico do inimigo foi o prelúdio vital para a sua derrota». Ou aquilo a que o veterano académico e diplomata americano George Kennan chamou guerra política, «o emprego de todos os meios ao dispor de uma nação, exceto a guerra, para atingir os seus objetivos nacionais. Tais operações tanto são abertas como encobertas. E variam entre ações abertas como as alianças políticas, as medidas económicas [...] ou a propaganda “branca” e operações encobertas como o apoio clandestino a elementos estrangeiros “amigáveis”, guerra psicológica “negra” e mesmo o incentivo à resistência clandestina em Estados hostis.» Liddell Hart estava, porém, a escrever em 1954, e Kennan, em 1948.

Na verdade, hoje em dia, todos os cadetes que virão a ser futuros oficiais têm de ler Sun Tzu, o filósofo-general chinês que, há 2500 anos, escreveu aforismos como «toda a guerra se baseia no engano» e «a arte suprema da guerra é subjugar o inimigo sem combater». Ele não estava propriamente a dizer algo de novo, mas sim a codificar o que todo o general antes e desde então deve saber. Os chefes vikings soltavam os seus berserkers, a espumarem com a fúria da batalha e vestidos com peles de urso, não só como tropas de choque como para aterrorizar o inimigo. Os exércitos mongóis do século XIV enviavam grupos de cavaleiros que arrastavam galhos de árvores atrás dos seus cavalos para levantarem nuvens de poeira e fingirem ser o avanço principal. A deserção do duque da Borgonha em 1435, cuidadosamente cultivada por Carlos VII de França, marcou um ponto de viragem na Guerra dos Cem Anos com Inglaterra. E assim por diante: desmoralizar, desorientar, subverter. O mundo de hoje pode oferecer novas maneiras de interferir com o espírito e com o moral do inimigo, mas a essência continua a ser a mesma.