Documentos relevados este domingo, 24 de novembro, mostram, pela primeira vez, como a China gere os seus campos de "reeducação" em Xinjiang e faz uma "lavagem cerebral" às minorias étnicas, sobretudo uigures.

Os documentos, obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) e publicados por 17 meios de comunicação social, mostram os protocolos rígidos que administram a vida na rede de campos de detenção em Xinjiang, que de acordo com grupos de defesa dos direitos humanos e analistas independentes abrigam mais de um milhão de muçulmanos, a grande maioria uigures, detidos sem julgamento.

Quando os primeiros relatos sobre estes campos começaram a surgir, o governo chinês negou a sua existência. No entanto, depois de imagens por satélite e vários testemunhos de ex-detidos era impossível continuar a escondê-los. Pequim justificou a sua existência como campos de reeducação e treino voluntários, com o objetivo de combater o extremismo. No entanto, os documentos agora conhecidos — denominados "China Cables" — contrariam essa versão.

Nos documentos consta um memorando de nove páginas enviado em 2017 por Zhu Hailun, então vice-presidente do Partido Comunista de Xinjiang, para quem dirigia os campos. As instruções presentes no memorando tornam claro que estes deviam ser dirigidos como prisões de alta segurança, com regras de disciplina estritas.

"Nunca permitir fugas"; "incentivar a disciplina e castigar violações comportamentais"; "promover o arrependimento e a confissão"; "tornar o estudos de mandarim corretivos uma prioridade"; "encorajar os estudantes a mudar verdadeiramente"; "garantir cobertura de videovigilância nos dormitórios, salas de aulas, sem que existam ângulos cegos", lista a BBC, citando algumas das diretrizes do documento.

O The Guardian traz mais algum detalhe: os campos devem adotar um sistema de controlo físico e mental total, com múltiplas camadas de bloqueios em dormitórios, corredores e edifícios. Devem ser colocadas cercas em todos os edifícios e muros à volta do campo. Um posto de polícia dedicado deve estar no portão da frente, tudo monitorizado por guardas.

Escreve ainda o britânico que os detidos podem ser presos indefinidamente, mas devem estar pelo menos um ano nos campos antes de sequer poder ser considerada a sua libertação. Os campos são geridos por um sistema de pontos em que os detidos podem ganhar créditos pela "transformação ideológica", pelo "cumprimento das regras", pelo "estudo" e "treino".

Depois de completarem a sua "transformação educacional", os detidos não são libertados, são antes transportados para uma outra zona do campo onde terão mais três a seis meses de treino. (Escreve o The Guardian que há múltiplos relatos credíveis de trabalhos forçados nos campos, sendo que quem "completa" a reeducação pode ser forçado a trabalhar na segunda zona). Mesmo depois de libertados os "estudantes não devem sair de vista durante pelo menos um ano", pode ler-se.

Os telefonemas semanais e uma videochamada por mês com parentes são as únicas formas de os detidos contactarem com o exterior — e podem ser suspensos como punição.

E tudo é controlado nestes campos. "Os estudantes devem ter uma cama fixa, um lugar fixo na fila, um lugar fixo na sala, estações fixas de trabalho e as trocas sãos estritamente proibidas", cita a BBC. "[Devem ser] implementadas normas comportamentais e regras para acordar, responder à presença, lavar-se, ir à casa de banho, organizar, limpar, comer, estudar, dormir, fechar a porta e assim por diante", continua.

Os documentos instam ainda as autoridades a "promover o arrependimento e a confissão dos estudantes, para que estes entendam a natureza profundamente ilegal, criminosa e perigosa das suas atividades passadas", pode ler-se. "Para aqueles que demonstrem vago entendimento, atitudes negativas ou sentimentos de resistência, que continue a reeducação para garantir que os resultados são alcançados".

Os documentos revelados ontem dão ainda conta da escala de detenções: um dos quais informa que 15 mil pessoas de Xinjiang foram levadas para os campos em 2017, 706 foram detidas, 2096 foram colocadas sob vigilância e outras 5508 estavam livres temporariamente — dando a entender que seriam depois encaminhadas para os campos de reeducação.

A libertação dos detidos só tem lugar quando estes conseguem provar que transformaram o seu comportamento, as suas crenças e a sua linguagem. Esta libertação é decidida por uma comissão do Partido Comunista.

Para Ben Emmerson QC, advogado de direitos humanos e conselheiro do Congresso Mundial uigure, estes campos visam mudar a identidade das pessoas. "É muito difícil ver isto como qualquer outra coisa que não um esquema de lavagem cerebral desenhado e dirigido para uma comunidade étnica. É uma transformação total, desenhada especificamente para uigures muçulmanos de Xinjiang".

Adrian Zenz, que investiga estes campos, tem a mesma leitura: "o propósito [destes campos] é doutrinar e mudar uma população inteira, fazendo-os passar por um sistema dedicado". Estes documentos "são uma confirmação importante" da natureza dos sistema, já que provam "que o governo chinês foi desonesto, uma vez que as pessoas não estão lá voluntariamente, são forçadas a lá estar", sinalizou, citado pelo The Guardian.

"Os documentos confirmam que estamos perante genocídio cultural'', defendeu  ainda Adrian Zenz, citado pela agência Associated Press. "Isto mostra que realmente, desde o início, o Governo chinês tinha um plano", conclui.

Estes documentos revelam igualmente como é que o governo chinês faz uso de um sistema de segurança massivo. Este sistema sinalizou, por exemplo, 1,8 milhões de pessoas só porque tinham uma app de troca de documentos chamada Zapya instalada nos seus dispositivos móveis — tendo as autoridades ordenado a investigação de 40557 destes indivíduos. "Se não for possível eliminar suspeitas" estes devem ser enviados para "treino concentrado".

Nestes documentos constam ainda diretivas explicitas para deter uigures com cidadania estrangeira e identificar outros que vivam no estrangeiro, estando sugerido o envolvimento de embaixadas e consulados neste esforço.

Por fim, os documentos exigem "sigilo estrito", as câmaras estão banidas e é proibido fazer vídeos nos campos de reeducação. Os funcionários também não devem colecionar dados importantes, evitando que os que estão dentro do sistema tenham noção da sua real extensão. "A política de trabalho  dos centros de educação vocacional e de treino é extremamente sensível. É necessário fortalecer a consciencialização dos funcionários para o sigilo", pode ler-se.

Este segundo conjunto de documentos foi revelado uma semana depois de o The New York Times dar a conhecer 400 páginas de documentos internos chineses que mostram que a detenção em massa da minoria uigure e de outras minorias é resultado de uma diretiva do presidente chinês, Xi Jinping.

O líder chinês encorajou a repressão numa série de discursos privados a oficiais durante uma visita a Xinjiang em 2014. "Devemos ser duros com eles", disse Xi Jinping, e "não mostrar misericórdia".

Após os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos, as autoridades chinesas começaram a justificar duras medidas de segurança e restrições religiosas como necessárias para combater o terrorismo, argumentando que os jovens uigures eram suscetíveis à influência do extremismo islâmico.

Em 2009, a capital de Xinjiang, Urumqi, foi palco dos mais violentos conflitos étnicos registados nas últimas décadas na China, entre os uigures e os han, predominantes em cargos de poder político e empresarial regional.

Em 2014, o Presidente chinês, Xi Jinping, lançou o que designou de "Guerra Popular ao Terror", depois de bombas colocadas por militantes uigures explodirem numa estação de comboios em Urumqi, poucas horas depois de ele concluir uma visita à região.

A repressão intensificou-se a partir de 2016, quando o secretário do Partido Comunista Chinês Chen Quanguo foi transferido para a região, após vários anos no Tibete, outra região chinesa vulnerável ao separatismo.

A maioria dos documentos agora conhecidos foi emitida em 2017, quando a "Guerra ao Terror" em Xinjiang se transformou numa extraordinária campanha de detenção em massa recorrendo a tecnologia militar.

Fake News

A embaixada da China em Londres rejeitou os documentos agora conhecidos em declarações ao jornal britânico The Guardian, dizendo que são "fabricados", são "fake news".

"Esses documentos e ordens para os chamados 'campos de detenção' não existem. A educação vocacional e os centros de treino foram estabelecidos para prevenir o terrorismo". Acrescenta a nota da embaixada que "os estudantes podem ir regularmente a casa" e que a "liberdade religiosa é totalmente respeitada em Xinjiang".

Já à BBC, Liu Xiaoming, o embaixador chinês em Londres, disse que "a região [de Xinjiang] goza agora de estabilidade social e unidade entre os grupos étnicos. As pessoas [em Xinjiang] estão a viver uma vida feliz, com um maior sentido de realização e segurança", disse.

"Sem qualquer respeito pelos factos, algumas pessoas no Ocidente têm caluniado a China por Xinjiang, numa tentativa de criar uma desculpa para interferir nos assuntos internos chineses, criar disrupção nos esforços chineses para combater o terrorismo em Xinjiang e frustrar o desenvolvimento chinês", considerou.

O Governo chinês enfrenta crescente condenação internacional devido ao tratamento dos uigures e outros grupos minoritários, mas o governo dos Estados Unidos tem sido especialmente crítico, numa altura de renovadas tensões entre Pequim e Washington.

No mês passado, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, acusou a China de realizar uma campanha "altamente repressiva" contra os uigures e outros grupos minoritários muçulmanos, e revelou que o governo de Donald Trump vai impor restrições na emissão de vistos às autoridades do Governo chinês ligadas às detenções em massa. Pompeo apelou ainda aos países que rejeitem os pedidos do Governo chinês para repatriar pessoas de Xinjiang.