Já lá vão quase sete anos desde que Mounir Affaki se despediu de Alepo e dos seus pais. Chegou a Coimbra em outubro de 2014, apoiado pela plataforma criada pelo antigo Presidente da República Jorge Sampaio, com uma licenciatura em arquitetura concluída já durante plena guerra civil - o departamento de arquitetura onde estudava foi bombardeado.

Nunca mais voltou à Síria e nunca mais viu presencialmente os seus pais. Em Coimbra, fez mestrado em arquitetura e terminou agora o seu doutoramento, aprovado com distinção, contou à agência Lusa o estudante de 29 anos.

O tema da sua tese, intitulada “Arquitetura da Paz: Encenar a Reconciliação na Alepo Pós-Guerra”, começa de alguma forma a desenvolver-se ainda em Alepo, já que foi apresentado como projeto final de licenciatura um memorial e museu em torno da guerra.

Para o doutoramento, em vez de centrar-se em intervenções concretas, Mounir procurou apontar caminhos e soluções para uma reconstrução que possa promover a reconciliação de uma cidade que já antes do conflito estava dividida – a oeste, as classes altas e médias. A este, as classes baixas.

Durante a guerra naquela que era a maior cidade da Síria antes do conflito, essa divisão apenas ficou mais vincada – Alepo ocidental ficou sob controlo das forças lideradas por Bashar al-Assad e a zona oriental pelas forças de oposição, que aproveitaram uma malha urbana densa e mais difícil de penetrar.

Suportado por dados, Mounir Affaki retrata uma situação aflitiva para Alepo no presente: 209 mil edifícios com danos provocados pela guerra, dos quais mais de 16 mil completamente destruídos e outros 15 mil a necessitar de demolição, cinquenta milhões de metros cúbicos de detritos pela cidade e 20% da Cidade Antiga, classificada como Património Mundial, com elevados danos.

Para o refugiado sírio, Alepo é hoje “uma cidade ferida, a precisar de uma visão abrangente e de intervenções com vista a uma reconciliação de uma sociedade económica e culturalmente - e, nos últimos anos, politicamente - dividida”.

Até agora, os esforços do Governo para a reabilitação da cidade têm sido feitos de forma aleatória, não havendo “uma visão clara do processo de reconstrução”, constata.

No presente, os únicos dois monumentos instalados após o controlo da cidade nada dizem sobre as perdas humanas. Um diz “Believe in Aleppo” [Acredita em Alepo] e outro “I love Aleppo” [Eu amo Alepo].

Para Mounir, há o risco de a memorialização da guerra, a ser feita, focar-se na narrativa do vencedor, havendo também o risco de apenas se tentar esquecer o que aconteceu, como que limpando da memória os últimos dez anos de guerra.

“O povo sírio também tem uma mentalidade de querer esquecer e seguir em frente e não falar. Há essa ameaça real de se querer esquecer, de se apagar tudo o que seja marcas da guerra. E isso não é uma abordagem saudável sobre a história e a memória. Se negares o passado, não há futuro. Se estás convencido de que antes da guerra estava perfeito, não há espaço para progresso”, frisou.

Na sua tese, o investigador sírio considera que os memoriais que venham a ser construídos não devem ter viés político, defendendo monumentos que sejam “silenciosos e que encorajem a participação social e o diálogo e promovam uma cultura de paz e coexistência”, ao mesmo tempo que possam proporcionar “um espaço para cura e catarse, sem glorificar ou demonizar o outro”.

Já sobre a ideia de um museu, o autor argumenta que, ao invés de um conceito de museu sobre a guerra, deve ser adotado um museu sobre a paz, promovendo “a auto-reflexão” e com exposições que se focem na identidade e cultura comuns.

A reabilitação da cidade, defende, tem também de ter em atenção a divisão já existente, considerando que é necessário ligar os dois lados de Alepo, com a deslocalização de serviços para a zona leste, mais habitação a preços controlados, vias de comunicação circulares e muito mais espaços públicos que permitam às pessoas encontrarem-se.

Nesse sentido, Mounir Affaki propõe a criação de espaços públicos inclusivos que promovam a ligação entre as duas partes da cidade, transformando terras abandonadas, zonas que eram “terra de ninguém” ou que foram destruídas durante a guerra.

O doutoramento, admite, “foi um processo muito emocional”.

“Quando entreguei o projeto em julho de 2017, Alepo já estava sob o controlo do Governo [desde dezembro de 2016] e o conflito armado tinha terminado. Quando comecei a escrever tinha grandes expectativas, mas, especialmente perto do final, foi muito difícil para mim, por causa da componente económica, que foi ficando cada vez pior. Pensei: Como é que algo disto poderá ser concreto? É impossível. Às pessoas, falta-lhes o essencial para viver – água, eletricidade, pão, comida, tudo. Como é que eu posso estar a falar do bem-estar psicológico e social quando faltam direitos humanos básicos?”, desabafa.

Apesar de agora estar numa fase quase “catártica”, em que encontra formas de curar alguma dor, continua a ser difícil encontrar um horizonte para o futuro de Alepo e para poder colaborar na sua reconstrução.

“Temos várias coisas a puxar-nos para trás, até antes da guerra já as tínhamos”, notou.

Terminada a tese de doutoramento, não se vê a voltar para a sua terra natal.

“Não é seguro para mim. Não acho que irei viver lá. Para ser realista, eu adorava viver lá, mas não irei viver porque acho que as mudanças que gostaria de ver acontecer vão demorar muito tempo e acho que não as vou sequer ver durante a minha vida”, admite.

Apesar disso, Mounir Affaki quer acreditar que a sua tese possa servir como um ponto de partida para as pessoas pensarem de forma diferente a reconstrução de Alepo, salientando que a reconciliação, apesar de ser um conceito social, precisa da arquitetura e do urbanismo.

“Não se reconcilia sem haver um espaço onde se possa reconciliar”, notou.