“Dong. Dong. Dong.” Ouvimos um gongo chinês no meio de um dos 27 pavilhões do centro de exposições (Messe) de Berlim. Parece um som inesperado para uma feira ferroviária. Nada disso. Estamos ao pé da empresa alemã Griwecolor, que tem soluções para isolar dos passageiros os sons metálicos produzidos pelo comboio. Para provar que funciona, há um outro gongo chinês ao lado. Quando se toca nele…nem um barulho.

Estamos na capital alemã por causa da InnoTrans, a maior feira ferroviária do mundo, que acontece a cada dois anos na capital alemã. Em cerca de 200 mil metros quadrados de exposição – o recinto esgotou com vários meses de antecedência -, vemos peças, motores, parafusos, portas, máquinas de bilhetes, sensores, radares e martelos. A comitiva portuguesa contou com mais de duas dezenas de empresas.

O que salta mais à vista é que em Berlim é possível imaginar o comboio do futuro: há material movido a hidrogénio e com baterias, começam-se a ver comboios para alugar - e disponíveis em poucas semanas - e até já há veículos ferroviários completamente autónomos, em que o condutor nem precisa de estar a bordo. Viaje connosco à maior feira ferroviária do mundo.

Da estrela regional ao luxo a alta velocidade

Os comboios são o grande destaque e são expostos, sem barreiras, faça sol ou chuva: espalhados por mais de 3,5 quilómetros de carris, vemos locomotivas para rebocar carruagens de passageiros; máquinas de manobras de material circulante; automotoras para serviço suburbano, regional e de alta velocidade; elétricos e ainda veículos para metropolitano. Não há nenhuma outra feira de transportes em todo o mundo com tanta composição à vista, com a possibilidade de entrar, sentar, conhecer a cabine, tocar em todos os materiais e tirar muitas fotografias…até debaixo do comboio. Ninguém receia uma futura inspiração.

A principal estrela do certame foi a nova automotora dos suíços da Stadler para as linhas regionais com poucos passageiros. O RS Zero é o sucessor de um comboio a gasóleo criado há 25 anos e que soube atrair muitos passageiros graças ao conforto, qualidade e funcionalidade. O novo veículo tem até 165 lugares e conta com lugares para todos os gostos: há assentos individuais virados para a janela com uma mesa de trabalho e uma zona para viagens de grupo, mesmo junto à cabine do maquinista. O comboio gerou tanto interesse que, mesmo debaixo de chuva forte, dezenas de jornalistas e entusiastas da ferrovia acorreram à apresentação oficial. Daqui a um ano vão começar as viagens comerciais.

A fabricante suíça também quer convencer os autarcas europeus a apostarem neste comboio graças à capacidade de transportar facilmente bicicletas, de receber pessoas com menos mobilidade e ainda pela muito pouca poluição: haverá versões a hidrogénio e outras a baterias, podendo ser carregadas em estações terminais, para fazerem toda a viagem. As empresas que gerem as redes ferroviárias são particularmente fãs desta parte, pois deixa de haver motivo para eletrificar linhas. A despesa passa para os operadores. 

Se a linha for de bitola métrica, também há solução: os suíços mostraram uma automotora personalizada para a linha centenária Vigezzina Centovalli, que liga Domodossola (Itália) a Locarno (localidade suíça conhecida pelo festival de cinema). Com conforto, qualidade e frequência, é possível manter a linha ocupada e evitar as tentações de levantar os carris. Ainda nos comboios personalizados, a Stadler mostrou uma unidade de socorro para os caminhos-de-ferro da Áustria. O Servicejet tem um tanque com capacidade para 40 mil litros de água, dois extratores de fumo e ainda consegue resgatar mais de 300 pessoas dentro das três carruagens. É o comboio ideal para salvar passageiros em caso de incêndio num túnel.

Os franceses da Alstom mostraram o Coradia Max, uma automotora elétrica de seis carruagens que pode ter um ou dois andares conforme as necessidades do serviço regional. Há espaço para 660 passageiros sentados (não há um local em que não haja um assento, mesmo nos sítios mais inesperados) e não há portas entre as carruagens, facilitando as deslocações interiores. Será visto nas linhas alemãs a partir do próximo ano e pode ser reconfigurado ao longo da vida sem ser novamente certificado.

Da chinesa CRRC veio o Cinova H2, comboio regional a hidrogénio que destaca-se pelas janelas que se transformam em ecrãs e que podem ficar mais ou menos transparentes conforme as preferências. As mesas servem como carregador sem fios para telemóveis. Com apenas quatro carruagens, a CRRC garante que consegue transportar até 1000 passageiros. Só que apenas 236 terão direito a lugar sentado. Parece que a tecnologia ganha ao conforto.

Aceleramos o passo para conhecermos a versão mais recente do comboio de alta velocidade ETR1000, fabricado pelos japoneses da Hitachi Rail e com classe (verdadeiramente) executiva: uma das carruagens tem apenas 14 poltronas individuais, que podem reclinar as costas, ajustar as pernas e até chamar um funcionário ao lugar. Há espaço com fartura. No entanto, quando percorremos as composições e espreitamos as outras três categorias, os lugares vão encolhendo em espaço e em largura, tal como o preço do bilhete. É um elogio à economia de escala. Com velocidade máxima acima dos 300 km/h, a automotora circula nas linhas transalpinas, em Espanha e também em França. Não será surpresa se vierem igualmente para Portugal, quando houver alta velocidade, em qualquer bitola.

Antes de entrarmos nos pavilhões, nota para os alemães da Siemens, que estão prontos para alugar comboios completos – o que se vê muito na feira são empresas que apenas alugam locomotivas. Através da marca Smart Train Lease, os germânicos conseguem disponibilizar, em duas semanas, uma automotora de três carruagens para o serviço regional com 214 lugares. A opção serve para reforçar temporariamente a oferta, arrancar mais depressa o negócio enquanto não chega uma encomenda de compra de comboios ou então para empresas que procuram poucas unidades, que habitualmente não são encomendas prioritárias para fabricantes. A Siemens tem os comboios elétricos, a baterias ou mesmo a hidrogénio.

Os alemães também mostraram uma versão especial para o Egito do Velaro. Com velocidade máxima de 250 km/h, este comboio está preparado para as condições mais complicadas: as passagens entre carruagens estão completamente seladas e há uma espécie de exaustor para garantir que não há poeiras e bordo e o filtro de ar garante um ambiente o mais puro possível.

Inteligência a bordo

Dentro da feira, somos apenas um dos cerca de 170 mil visitantes, de 133 países. Mais de metade dos pavilhões serve sobretudo para fazer contactos e dos quais depois podem resultar negócios. O ambiente é muito corporativo: muito fato e gravata, blazer, casaco e salto alto. Pelo meio, encontram-se todas as peças necessárias para começar a construir um comboio, desde os rodados (as rodas na gíria ferroviária) aos bogies, passando por motores, assentos, sistemas de ventilação, botões, iluminação e sistemas de informação ao passageiro. Muito se anda dentro do recinto – nunca andámos menos de 20 mil passos por dia, qualquer coisa como 16 quilómetros.

A Plataforma Ferroviária Portuguesa trouxe 11 empresas: além da CP, vieram marcas como a Couro Azul (especialista em assentos), a Nomad Tech (soluções tecnológicas para equipamentos ferroviários) e a Efacec (que tem, por exemplo, sistemas de sinalização). Fora dessa zona, também foi possível encontrar, por exemplo, a Siscog (usa a inteligência artificial para melhorar as operações de empresas ferroviárias), a MCG (especialista em interiores) e a Critical Software (desenvolvimento de soluções de manutenção).

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CP créditos: 24

Apesar de parecer uma área apenas virada para as empresas, encontrámos várias soluções que servem perfeitamente para os peões – sobretudo nos atravessamentos – e para os passageiros. Exemplo disso são os finlandeses da Innotrafik, que criaram um sistema de alerta a pedestres e ciclistas que atravessam as linhas de elétrico. O sinal luminoso pode ser colocado em qualquer lado e instalado no próprio dia. Serve sobretudo para quem gosta muito de usar auscultadores.

Mais avançada é a solução dos italianos da Fincantieri NexTech, que conseguem detetar obstáculos próximos das passagens de nível e ligar esses avisos aos sistemas de sinalização na via. A informação chega ao maquinista antes de a passagem de nível estar à vista, permitindo antecipar a frenagem do comboio e evitando um possível choque.

Avançamos na feira e encontramos a Sigma, empresa italiana que fabricou as novas máquinas automáticas de bilhetes para o serviço suburbano da CP em Lisboa e também para o Metro do Porto. Estamos na zona da informação ao passageiro, onde um simples poste de paragem do elétrico consegue indicar quantos minutos faltam para os próximos destinos e é possível apresentar um mapa de serviço. Dentro do pavilhão também vemos grandes monitores, prontos a pôr nas grandes estações intermodais, com a indicação das próximas partidas do comboio, metropolitano e elétrico.

Portugal também mostrou cartas, neste segmento, com o sistema de informação ao passageiro instalado a bordo das renovadas carruagens do comboio Interregional na Linha do Minho, onde é (finalmente) possível conhecer qual é o percurso do comboio, ficar a par de possíveis informações e saber o número da composição. O sistema foi desenvolvido internamente pela CP e foi exibido no espaço da Plataforma Ferroviária Portuguesa, que trouxe mais de metade da representação nacional a Berlim.

A inteligência artificial foi um dos destaques da InnoTrans de 2024. Da Bélgica, a Televic mostrou um tradutor automático dos avisos aos passageiros para outros idiomas e o potencial do Auracast, nova ferramenta para os auriculares Bluetooth: se estiver num comboio a escutar uma música ou a ver um filme e não ouvir os avisos sonoros, o auricular pode ser configurado para interromper e ficar a par dos anúncios a bordo. 

A condução ferroviária também pode ser transformada com a inteligência artificial. Os belgas da Otiv mostraram uma tecnologia para ensinar os comboios a funcionarem de forma autónoma, permitindo consumir menos energia. Tem como parceiros os operadores ferroviários Deutsche Bahn e o grupo SNCF, além da fabricante basca de comboios CAF. A fabricante francesa Alstom demonstrou a condução de um comboio autónomo para o serviço regional, com o maquinista a comandar remotamente o veículo. Atualmente, apenas há condução autónoma de comboios em sistemas fechados, como a linha 9/10 do metropolitano de Barcelona e toda a rede do metropolitano de Copenhaga.

Soluções sentadas e deitadas

Os cerca de 170 mil visitantes da InnoTrans tiveram a possibilidade de ver um total de 2 940 expositores, de 59 países, durante quatro dias. Transformar o interior dos comboios é uma das principais missões de qualquer fabricante para captar mais passageiros tornar a viagem sobre carris mais agradável e espaçosa face ao carro privado, o autocarro ou mesmo o avião. Num dos pavilhões foi possível encontrar soluções para todos os gostos. 

Os alemães da Probatec mostraram um banco que muda de posição conforme se há passageiros sentados ou em pé, podendo aumentar a lotação de lugares em períodos de pico ou pôr as pessoas a olhar cara a cara quando for necessário. A mudança acontece quando se carrega no botão. Os italianos da Pianfei Compositi importaram dos aviões uma solução para a classe executiva e que serve sobretudo para quem viaja sozinho: o banco pode reclinar totalmente e permitir que o passageiro faça a viagem sentado. Neste lugar também um monitor.

Mas a maior preocupação tem mesmo a ver com os comboios nocturnos, que estão a gerar uma grande procura por toda a Europa – Portugal e Espanha estão de fora porque não há entendimento político. A oferta não é suficiente, sobretudo para quem viaja sozinho e não quer ficar num compartimento com outras cinco pessoas ou não tem dinheiro suficiente para um compartimento privativo.

Os checos do grupo Skoda apresentaram o conceito de mini-cabines: cada carruagem passa a ter dois andares, com uma mini-cabine por cima da outra. A fabricante diz que este conceito oferece mais privacidade do que um compartimento para seis passageiros e ocupa o mesmo espaço.

Mais adiante está a startup alemã Luna Rail, que quer transformar carruagens de comboios noturnos em lugares para serviços diurnos, maximizando a utilização do material circulante e baixando custos para os operadores. “Todos os lugares podem ser convertidos em camas, com reclinação a 180 graus. Também é possível ficar com o assento normal, com total privacidade, para viagens durante o dia”, explica Anton Dubau, o criador do conceito, a partir de uma tese de mestrado na Universidade Técnica de Berlim.

“Há muita gente que quer usar comboios noturnos em vez do avião. O problema é que andar de comboio fica muito caro e não é habitualmente rentável. Podemos reduzir os custos sem diminuir o conforto. O nosso produto é, sobretudo, acessível.” A Luna Rail arrancou há cerca de um ano e agora necessita de parceiros e de investimento para poder começar a transformar o protótipo numa carruagem pronta para o serviço ferroviário, que poderá contar com mais de 50 passageiros.

No pavilhão onde estiveram à vista os assentos, também encontrámos carrinhos para servir comidas e bebidas ao longo do comboio. Um deles tinha mesmo uma máquina de café escondida. Apenas apareceu depois de se carregar no botão.

Influenciadores ferroviários

A estabilidade proporcionada pelos carris é vista como uma metáfora para a ferrovia ser vista como uma indústria conservadora e, por vezes, resistente à mudança. A feira alemã quis pôr em causa essa imagem e organizou o primeiro festival para influenciadores, tendo reunido mais de três dezenas de criadores de conteúdos. Foram entregues três prémios, numa cerimónia que durou cerca de 15 minutos, e depois houve cerca de uma hora para conhecer alguns dos participantes. 

Primeiro, os portugueses: André Marques, nascido em Portugal mas há mais de 30 anos a morar em Espanha, apresenta-se como um divulgador ferroviário. É sobretudo no Instagram (mais de 25 mil seguidores) e no TikTok (mais de 13 mil), que mostra todos os comboios de Espanha e deixa vários críticas à questão dos caminhos-de-ferro no país vizinho, com o material circulante e com as estações. Fernando Liberato vive em Portugal e aproveita o YouTube (18,5 mil subscritores) para divulgar os vídeos das obras na ferrovia nacional (muitos deles feitos com um drone) e ainda ver vários comboios em marcha.

Mas o amor pela ferrovia também atrai os muito jovens. Adam El Rafey tem apenas 14 anos e já anda a mostrar o metro do Dubai. “Comecei com um pequeno canal no YouTube para mostrar a minha paixão. Estou muito entusiasmado para ver qual será o desenvolvimento da mobilidade sustentável”, conta-nos o estudante de ciência computacional, atualmente no terceiro ano da universidade (sim, tem mesmo 14 anos).

Enya Aßmann usa sobretudo o TikTok (mais de 57 mil seguidores) para dar uma visão otimista dos comboios da Alemanha, numa altura em que a empresa estatal (DB) tem andado debaixo de fogo por conta da falta de investimento nas infraestruturas ferroviárias ao mesmo tempo que criou um bilhete nacional de 49 euros para usar todos os comboios (menos os da alta velocidade). “Quero mostrar o quão entusiasmante e inspirador pode ser andar de comboio. Espero que a Alemanha dependa menos dos carros e encontre no comboio uma forma alternativa de viajar.” 

Alexander Tian também é alemão e assume-se como romântico. O canal doc7austin (mais de 87 mil subscritores) exibe viagens de comboio de mais de 70 países. China e Índia são alguns dos destaques: “são tão grandes que é possível andar de comboio, num compartimento, por três dias consecutivos. É uma verdadeira experiência de vida”. O berlinense assume-se como um “escritor de viagens de comboio dos tempos modernos”.  “Quero inspirar os meus seguidores”, assume, apesar de ter o tempo como maior desafio. “Tenho de trabalhar e de gerir muito bem a minha vida porque há empréstimos para pagar. Além disso, se me dedicasse ao canal, teria de começar a ter conteúdos pagos, algo que não quero. Não faço isto pelo dinheiro, sigo apenas a minha paixão.”

Paixão e razão são os dois principais ingredientes que atraem centenas de milhares à maior feira de transportes do mundo a cada dois anos. Paixão por poder ver tantos comboios num só sítio; razão porque estamos a falar do transporte que carrega mais pessoas no menor espaço possível e que ainda por cima é dos mais amigos do ambiente, numa altura em que o mundo trava a guerra contra o aquecimento global.