"Recusar o seu nome é recusar a sua existência”

Há diretores de escolas que recusam a mudança de nome de crianças transgénero, indo contra a lei, denunciam pais cujos filhos se automutilaram ou tentaram suicidar-se.

Em alguns casos, os pais tiveram de recorrer a associações ou fazer queixa a serviços do Ministério da Educação para ver os direitos dos seus filhos garantidos.

Podem não ser muitas as crianças e jovens que sentem que nasceram no corpo errado, mas são vários os casos de estudantes marginalizados e escolas onde a lei não é cumprida por “preconceito” e “falta de empatia”, alerta a Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS).

“Temos boas e más experiências nas escolas”, conta à Lusa António Vale, presidente da AMPLOS, onde chegam pedidos de ajuda de todo o país de alunos trans que continuam a ver negados os seus direitos.

A Lusa falou com quatro famílias e ouviu duas histórias de integração, mas também dois casos de “discriminação e preconceito”, nas zonas de Lisboa e Leiria.

Manuel e Jorge (nomes fictícios) não se conhecem, mas viveram experiências semelhantes na luta contra o seu corpo e há episódios das suas vidas que quase se confundem: são transgénero, foram alvo de ‘bullying’, tiveram pensamentos suicidas e viram negada a mudança de nome na escola.

Manuel tem 14 anos e estuda na zona de Lisboa. Jorge tem 13 e vive em Leiria. Nas duas escolas, o pedido de mudança de nome foi rejeitado pelos diretores, contrariando a legislação portuguesa que garante este direito desde 2018.

“É uma falta de empatia, mas também de conhecimento sobre a vida das pessoas. Não podemos forçar as pessoas a ser o que não são. Recusar o seu nome é recusar a sua existência”, defende António Vale.

A psicóloga da associação, Ana Silva, vai mais longe e alerta que esta rejeição “é uma violência que pode pôr em causa a vida de uma pessoa”, lembrando que as tentativas de suicídio são 40% superiores entre a comunidade trans.

Manuel e Jorge poderiam entrar nestas estatísticas. Manuel estava numa aula quando subiu ao parapeito da janela e ameaçou atirar-se do 3.º andar. Cansado de ser gozado pelos colegas e ignorado pelos professores, o adolescente de 13 anos sentiu que não aguentava mais.

Naquele dia, Manuel recuou e o seu ato desesperado serviu de alerta para a comunidade escolar perceber que o caso era sério.

Os sucessivos pedidos de reunião feitos até então pelos pais e psicólogo foram finalmente aceites e o processo de mudança de nome começou finalmente a avançar.

O pai contou que o diretor justificou a recusa dizendo que a lei tinha sido chumbada e “ainda bem”, senão iriam “ter os miúdos todos a pedir para mudar de nome para Cristiano Ronaldo". No entanto, a lei já permitia essa alteração.

Manuel recordou os “quatro bilhetes anónimos” que recebeu quando tinha 13 anos: “Chamaram-me nomes, a dizer que sou uma pessoa nojenta e desagradável, que tinham asco e que tinham de me matar. Nunca soube quem mos tinha mandado”.

Apesar das dificuldades que atravessaram, a família nunca fez queixa. “A nossa prioridade tem sido fortalecer psicologicamente o Manuel, porque este é um processo muito delicado”, contou a mãe, que teme novas tentativas de suicídio.

Um estudo envolvendo mais de um milhão de jovens admitidos em hospitais norte-americanos em 2019 revelou que 55% das crianças e jovens internados com disforia de género tinham comportamentos de automutilação ou tentativas de suicídio, contra 4% entre os jovens cis (pessoas que se identificam com o género com que nasceram).

Aos 13 anos, Jorge já pensou em suicídio e já se automutilou. No ano passado, a mãe recebeu uma mensagem no telemóvel a avisar: “Se me encontrares morto, não estranhes”, recordou Teresa.

Jorge tinha 10 anos quando disse aos pais que “não se sentia bem no corpo que tinha”, que “se sentia sozinho e que não havia mais ninguém como ele”. Mas o sofrimento começou aos seis ou sete anos, quando começou a pedir aos colegas que o tratassem por um nome masculino, contou a mãe.

Num corpo que não via como seu, a tristeza e depressão agravaram-se. Aos 11 anos, quando começou a ter menstruação, a situação piorou e, este verão, já com 13 anos, “o corpo modificou-se totalmente e a situação tornou-se ainda mais complicada”, disse Teresa.

Neste processo de adaptação, o apoio da família é fundamental, mas há também a vida fora de portas. Nas escolas, o ‘bullying’ continua a ser um dos grandes problemas.

As dificuldades no processo de mudança de nome também não ajudaram e, perante a recusa do diretor, a família de Jorge apelou à intervenção da Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares.

“Mesmo assim, passei um mês na secretaria da escola e tive de imprimir e apresentar a legislação para que vissem que já é permitido por lei a mudança para o nome social, mesmo sem estar no cartão do cidadão”, recordou.

À Lusa, o Ministério da Educação confirmou receber queixas, mas sem avançar dados. Já à Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) chegaram duas queixas em 2022: uma relativa a discriminação com base na identidade e/ou expressão de género e outra com a utilização de casas de banho.

O ano letivo passado terminou com o processo de Jorge corrigido mas, este ano, apesar de frequentar a mesma escola, a família teve de reiniciar todo o processo. “Os professores novos não o conheciam nem foram informados e por isso trataram-no pelo nome feminino”, lamentou Teresa.

Jorge só foi às aulas no primeiro mês, depois começou a recusar sair de casa. As faltas acumularam-se e a diretora de turma teve de informar a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, “que viu aqui perigo de abandono escolar e disse que ia enviar o processo para o Ministério Público”, contou.

“A vida nas escolas é tão difícil que assim que podem saem de lá”, corroborou Ana Silva, sublinhando que entre a comunidade trans as taxas de absentismo e abandono escolar disparam.

A Lusa não confrontou as duas escolas a pedido das famílias que pediram anonimato para proteger os seus filhos.

Manuel decidiu “passar o dia sem beber líquidos”

Impedidos de usar as casas de banho da escola, alunos transgénero chegam a estar oito horas sem ir aos lavabos, havendo casos em que são agredidos quando tentam entrar, denunciam as famílias.

Nos dias em que tem aulas das 08:00 às 16:00, Manuel (nome fictício) passa oito horas sem ir à casa de banho. Não se sente bem na das raparigas e não arrisca ir à dos rapazes, contou à Lusa o rapaz trans de 14 anos, que frequenta uma escola da zona de Lisboa.

A história de Manuel é a de um rapaz que nasceu num corpo de menina e, há dois anos, iniciou o processo de mudança, tendo já descoberto que até os hábitos mais simples podem tornar-se verdadeiros desafios.

A casa dos banho dos professores está-lhe interdita e Manuel chegou a perguntar aos funcionários se podia usar a dos deficientes, mas também lhe foi negado.

Para contornar o problema, decidiu “passar o dia sem beber líquidos”, ignorando os alertas médicos sobre os perigos para a sua saúde.

A cerca de 100 quilómetros de distância, em Leiria, Jorge (nome fictício) também viveu uma história semelhante. A estudar na mesma escola há vários anos, toda a gente o conhecia quando, no ano passado, assumiu que tinha nascido no corpo errado. Nesse dia, o acesso à casa de banho das raparigas foi-lhe barrado.

“Uma vez tentou entrar, mas as raparigas trataram-no mal”, contou à Lusa a mãe, acrescentando que “nem arrisca entrar na dos rapazes”.

A direção escolar sugeriu que usasse a casa de banho dos funcionários, mas a família optou por outra solução: Todos os dias, à hora de almoço, a mãe leva o filho a casa.

Passar todo o dia na escola sem ir à casa de banho é recorrente, segundo a psicóloga Ana Silva, que trabalha na Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS), onde chegam pedidos de ajuda de todo o país.

Quanto à opção oferecida pelas escolas de criar um balneário ou casa de banho só para aquele aluno, a psicóloga lembra que "estão a discriminar na mesma e a acentuar que aquela pessoa é diferente”.

“Muitas vezes, já têm uma expressão de género que não corresponde ao seu sexo biológico e sabem que correm o risco de serem insultados ou mesmo agredidos”, contou a psicóloga, que não consegue compreender as recentes críticas ao diploma sobre o direito à autodeterminação de género nas escolas, aprovado este mês no parlamento.

O diploma, que o partido Chega chegou a classificar de “política de retrete”, prevê, entre outras medidas, que todos possam aceder "às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos, procedendo-se às adaptações que se considerem necessárias”.

Alguns deputados questionaram a segurança dos alunos e nas redes sociais multiplicaram-se os discursos de ódio e medo: “Não são as outras crianças e jovens que estão em risco, mas sim estas, que querem passar despercebidas. Mas sabe-se que são muitas vezes vítimas de ‘bullying’, de agressões verbais e até físicas”, disse Ana Silva.

Quando têm amigos, pode ser mais fácil, mas nem por isso menos humilhante: “Os amigos entram primeiro e veem se está alguém, depois ficam à porta a ver se aparece alguém e só saem quando lhes dizem que podem sair. Não podem entrar em sair livremente como qualquer outra pessoa”, explicou a psicóloga, com base em depoimentos de crianças e famílias.

Mas há casos de sucesso, como uma escola em Vila do Conde, que criou uma “casa de banho sem género”, à semelhança do que acontece nos aviões ou em alguns restaurantes.

Amanda, hoje com 18 anos, também ia a casa, porque ficava perto, mas desde sempre a escola de Beja, onde estudou, lhe abriu as portas das casas de banho dos professores.

Numa terra pequena, de interior, em que toda a gente se conhece, o processo de transformação social foi “super tranquilo”, contou a mãe, e a aluna acabou por usar o wc das raparigas.

O tema motivou pelo menos uma queixa em 2022 à Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), além de dois pedidos de informação sobre a utilização de casas de banho e outro sobre a utilização de balneários.

Pais pedem audiência ao Presidente da República

A Associação de Pais e Mães pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS) pediu uma audiência ao Presidente da República para demonstrar a importância de promulgar o novo diploma sobre regras a adotar nas escolas.

Em causa está o projeto de lei aprovado no dia 15 no parlamento e que define as medidas a adotar pelas escolas para garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género e a proteção das suas características sexuais.

Em declarações à Lusa, o presidente da AMPLOS, António Vale, revelou que a associação foi recebida esta semana na Presidência da República, onde teve a oportunidade de falar sobre o assunto.

“Nem todos os diretores escolares respeitam a lei que está em vigor desde 2018 e recusam-se, por exemplo, a reconhecer a mudança de nome dos alunos”, alertou António Vale.

O novo diploma prevê que as escolas devem definir “canais de comunicação e deteção”, identificando um responsável ou responsáveis “a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde ao sexo atribuído à nascença”.

A escola deve ainda, em articulação com os pais, encarregados de educação ou representantes legais, promover a avaliação da situação, assegurar o apoio e acompanhamento e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação.

O diploma pretende também garantir que todos os alunos têm acesso às casas de banho, ponto que tem gerado polémica, com críticas da Associação de Famílias Numerosas e de associações representativas dos pais e diretores escolares, entre outros.

Em resposta às críticas, o presidente da AMPLOS e a psicóloga da associação que acompanha e apoia várias famílias, Ana Silva, recordam histórias de crianças e jovens trans e intersexo que são agredidas verbalmente ou fisicamente quando tentam usar as casas de banho ou os balneários.

“As escolas têm de ser lugares seguros e de formação de cidadãos. Atos de intolerância são agressões que só servem para afastar as crianças e jovens das escolas”, alertou o presidente da AMPLOS.

A psicóloga da associação, Ana Silva, reitera que o absentismo e abandono escolar é maior entre estas crianças, explicando que saindo da escola precocemente, acabam por comprometer todo o seu percurso escolar e futura vida profissional.

Para as crianças, adolescentes e famílias com quem a Lusa falou é essencial a promulgação do diploma que define as regras de como devem agir as escolas e que foi aprovado este mês no parlamento.

Mesmo as famílias que sentiram o apoio da escola, como a de Amanda, apelam a Marcelo Rebelo de Sousa para que aprove a lei “que vai ajudar muitos miúdos que infelizmente frequentam escolas onde se continua a dizer ‘se’ e ‘mas’ para colocar entraves, quando se está só a falar de direitos humanos, nada mais”.

*Por Sílvia Maia, da agência Lusa