A embaixada da China pediu à Universidade de Lisboa a identificação dos alunos chineses que frequentavam a instituição, em 1989, na sequência dos acontecimentos de Tiananmen, o que foi recusado pelo reitor, disse o próprio à agência Lusa.

“Estava numa reunião com muita gente e fui interrompido a meio, quando vieram dizer-me que estava um senhor da embaixada chinesa a pedir a identificação dos estudantes”, recordou o então reitor, Virgílio Meira Soares, por ocasião do 30.º aniversário do massacre de Tiananmen, que se assinala a 04 de junho.

Meira Soares não esperava a solicitação, mas não teve dúvidas: “Obviamente que aquilo cheirava a perseguição ou pelo menos a uma tentativa de encontrar indivíduos para perseguir”.

A funcionária que questionou o reitor já tinha intenção de não fornecer os nomes dos alunos, mas não tinha poder de decisão. “Obviamente que a resposta foi - Não se dá absolutamente nada!”, confirmou Meira Soares.

Na época, apenas algumas dezenas de estudantes chineses frequentavam a Universidade de Lisboa. Meira Soares não voltou a ser questionado sobre a identidade dos alunos e desconhece se foram feitos pedidos semelhantes a outras instituições de ensino.

“Possivelmente… agora não sei se fizeram a mesma coisa para outras áreas ou se foi só na universidade. Normalmente também é o sítio onde as ideias ditas subversivas se desenvolvem mais”, admitiu. “Se assim foi na Universidade de Lisboa, não me admirava nada que tivessem feito o mesmo em outras áreas”.

O governo chinês culpava os pensadores ocidentais pela sublevação dos estudantes que exigiam reformas democráticas no país de partido único.

Meira Soares confessou que não esperava que o governo chinês se atrevesse a “meter-se com uma instituição pública portuguesa” para pedir a identificação de pessoas.

“Isso não cabe na cabeça de ninguém. Só cabe na cabeça de uma ditadura como aquela que existia na altura, agora não sei como aquilo está”, afirmou.

Não deu nomes à China, "como não daria aos EUA, à Alemanha ou ao Estado português, a menos que houvesse uma ordem judicial", frisou.

“Era como se agora um dos ditadores que andam por aí - a gente sabe quem são, não vale a pena dizer nomes – viesse aqui fazer o mesmo pedido em relação aos cidadãos do seu país”, indignou-se.

“E olhe que houve momentos difíceis, por exemplo em Angola, e nunca a embaixada angolana se atreveu sequer a pedir qualquer informação sobre alunos angolanos. E aí sim, tínhamos cá muitos”, declarou, sublinhando a guerra civil vivida no país africano após a Independência (1975 – 2002).

A posição da China na época, defendeu, só é explicável por “algum desespero antidemocrático” e anti direitos humanos. “Realmente foi um atropelar de direitos humanos em condições desnecessárias”, lamentou.

Meira Soares estava na altura embrenhado na adaptação dos estatutos da universidade à lei da autonomia das universidades, que havia saído no ano anterior.

As memórias que guarda são de uma reunião do Senado em que estaria a trabalhar nesse processo quando foi surpreendido pela requisição da China. Não havia nada escrito, apenas um recado.

Se fosse hoje, tomaria a mesma decisão: “Não daria sequer à nossa polícia. Há uma espécie de contrato de confidencialidade entre a instituição e o aluno”.

Nunca foi possível apurar o número exato de vítimas da intervenção militar contra os estudantes e outros civis concentrados na Praça da Paz Celestial (Tiananmen) a 04 de junho de 1989. Os manifestantes falaram em 7.000 mortes, a Cruz Vermelha chinesa em 2.600.

As mesmas dúvidas permaneceram face ao número de feridos e desaparecidos, igualmente na ordem dos milhares.

Universidade de Lisboa reagiu ao massacre de Tiananmen com moção

O massacre de Tiananmen em 1989 foi recebido com choque na Universidade de Lisboa, onde os alunos, com o apoio dos professores, levaram ao Senado uma moção de solidariedade com os estudantes chineses, repudiando a ação do governo de Pequim.

“As pessoas ficaram chocadas, tanto os alunos, como professores e outros funcionários, com aquilo que tinha sucedido”, disse à agência Lusa Armando Malveira, que há 30 anos coordenou a ação dos estudantes.

Pouco tempo depois do massacre de estudantes e outros civis que se manifestavam na praça de Tiananmen, no centro de Pequim, para exigir reformas democráticas, estava marcada uma reunião do Senado da Universidade, que os alunos aproveitaram para uma tomada de posição pública.

A ideia foi discutida entre representantes das várias faculdades. “Naturalmente estivemos todos de acordo em apresentar algum documento que manifestasse a nossa oposição àquilo que tinha acontecido”, contou Armando Malveira, que na época frequentava a faculdade de Letras.

“Da parte dos docentes não terá havido nenhuma posição antagónica, porque tinha sido um facto que tinha chocado as pessoas na generalidade, logo mesmo da parte do próprio corpo docente não houve propriamente obstáculo a que a moção tivesse sido aprovada”, relatou, evocando “os alunos sacrificados na praça”.

Um dos professores da universidade, o especialista em alterações climáticas Filipe Duarte Santos, tem na memória “a grande emoção” com que se viveu na academia o que estava a acontecer do outro lado do mundo, “os movimentos de solidariedade com os estudantes chineses”, mas também “as pessoas conscientes de uma certa impotência perante o poder na China nessa época”.

“A imagem de um estudante frente a uma fila de tanques, fazendo parar essa fila, ficou para sempre gravada na nossa memória coletiva, aquela imagem de desafio à prepotência e simbólica daquilo que em todos nós é o desejo de liberdade e de valorizar os direitos humanos”, sintetizou.

Filipe Duarte Santos fez questão de frisar que nos 30 anos que decorreram desde o massacre, a China “deu um salto brutal” do ponto de vista económico, competindo atualmente com os EUA.

“Do ponto de vista político eles não têm uma democracia, mas penso que nós no ocidente fazemos bem em pensar como é que estão a evoluir as democracias, porque estão francamente em declínio”, considerou, apontando os Estados Unidos como um exemplo “muito preocupante”.

Massacre de Tiananmen foi noticiado em Portugal como "um banho de sangue"

A imprensa portuguesa noticiou, há 30 anos, o massacre de Tiananmen como “um banho de sangue”, com multidões a defenderem-se com paus e pedras dos tanques e balas com que o governo chinês tentava aniquilar o movimento pró-democracia.

Havia seis semanas que os estudantes ocupavam a praça de Tiananmen, no centro de Pequim, para exigir reformas democráticas, num movimento a que se juntaram muitos cidadãos e que começava a ter eco em outras cidades chinesas.

Na noite 03 para 04 de junho, os confrontos com o exército intensificaram-se e tropas forçaram a entrada no reduto ocupado pelos estudantes.

Um telex emitido pela Lusa reportava: “Pequim entrou hoje no caos, com os soldados a dispararem indiscriminadamente sobre multidões exasperadas de cidadãos desarmados, enfrentando a morte para protestarem contra o que descrevem como os seus dirigentes fascistas”.

As embaixadas estrangeiras preparavam planos de retirada dos seus cidadãos e aconselhavam os residentes a não saírem de casa.

Os jornais davam conta de milhares de vítimas, com base em testemunhos, manifestantes e fontes diplomáticas. A China apenas reconheceu algumas centenas, entre soldados e manifestantes, invocando razões de segurança nacional para justificar o massacre.

As imagens que chegavam de Pequim chocavam o mundo. À comunidade internacional exigiam-se medidas e criticava-se a falta de ação.

Os jornalistas debatiam-se com apreensões de material, censura e uma lei marcial que duraria um ano, como noticiava a Capital em 1990: “Tiananmen limpa de tropas. Levantada Lei Marcial em Pequim em oito meses”.

O movimento ganhara força nas universidades meses antes do massacre, onde os estudantes decretaram uma greve geral.

Em maio, a demissão de Deng Xiaoping e dos principais líderes chineses, como o primeiro-ministro, Li Peng, era exigida nas ruas de Pequim por um milhão de pessoas, numa manifestação de apoio a “centenas de estudantes em greve de fome”, conforme noticiou o Europeu.

O Independente, à época dirigido por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, revelava o plano da diplomacia portuguesa para lidar com o problema, dias depois do massacre.

“Portugal manda Roberto Carneiro avisar a China” foi a manchete de 09 de junho do semanário, para noticiar a viagem do então ministro da Educação a Macau, a pretexto do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

A ideia colhia o apoio do Presidente da República, Mário Soares, e do primeiro-ministro, Cavaco Silva, evitando-se assim envolver diretamente o ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, o que daria “um caráter internacional” à viagem.

De acordo com o jornal, Roberto Carneiro levava no bolso uma mensagem de Soares e recados de Cavaco.

Na mensagem, citada pelo jornal, Soares transmitia “grande preocupação” pela situação na China, afirmando esperar que não ameaçasse “a liberdade e segurança” do território de Macau, então sob administração portuguesa.

O chefe de Estado português falava ainda da “necessidade de restabelecimento dos equilíbrios sociais e políticos na China” como única forma possível de "cumprir em absoluto” a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau, a que Portugal se afirmava “inteiramente fiel”.

Durante a deslocação, Roberto Carneiro deveria também manter contactos com políticos e empresários, para aferir “sentimentos e intenções”, e proferir duas declarações, a primeira, à chegada, para manifestar a “solidariedade de Lisboa” com a população portuguesa de Macau, e uma segunda com alusão aos acontecimentos de Pequim, “condenando o uso arbitrário de violência sobre civis desarmados”.

A perseguição contra os líderes do movimento estudantil continuou muito para além de junho de 1989, com alguns a procurarem asilo nos Estados Unidos e na Europa.

Agora, a Amnistia assinala massacre de Tiananmen e pede libertação de ativista

A Amnistia Internacional (AI) Portugal vai assinalar os 30 anos do massacre de Tiananmen com uma manifestação em Lisboa, um abaixo-assinado em defesa de um ativista preso na China e o envio de mil postais ao Presidente chinês.

A manifestação está marcada para 03 de junho, data que marca o início da “invasão da Praça de Tiananmen” pelo exército chinês, disse à agência Lusa Teresa Nogueira, coordenadora da AI Portugal para as questões da China, recordando “as imensas mortes” civis que nunca foram reconhecidas pelas autoridades chinesas.

“Temos também postais já editados, dirigidos a Xi Jinping, dizendo que as famílias das vítimas ainda esperam que seja feita justiça, 30 anos depois”, indicou, alertando que continuam a ser detidos cidadãos por lembrarem os acontecimentos que culminaram no massacre de estudantes e outros civis reunidos na principal praça do centro de Pequim em defesa de reformas democráticas.

Mais uma vez será pedido às autoridades que reconheçam publicamente as vítimas, que levem a tribunal “os culpados pelas violações de direitos humanos” e que “acabem com a perseguição a todos aqueles que querem relembrar” os acontecimentos de há 30 anos.

Os postais serão enviados por todos os grupos da Amnistia em Portugal, de norte a sul do país.

Paralelamente, decorrerá uma recolha de assinaturas pela libertação de Chen Bing, “um ativista que está preso por querer relembrar” o massacre, frisou.

Em entrevista à Lusa, Teresa Nogueira recordou que pouco depois dos acontecimentos, a China reconheceu a existência de cerca de 300 feridos e 30 mortos, entre soldados e estudantes, mas afirma que “foram muito mais, foram milhares de pessoas mortas e pensa-se que centenas de estudantes”.

Três décadas depois, as famílias continuam a pedir justiça, quer em coletivo, como as “Mães de Tiananmen”, quer individualmente, como é o caso de Chen Bing, tentando que seja feita uma reapreciação dos acontecimentos em que, diz Teresa Nogueira, as vítimas “ainda são consideradas culpadas pela tal revolta que visaria acabar com a estabilidade social”, na versão das autoridades chinesas.

“Logo a seguir, os próprios familiares das vítimas começaram a ser perseguidos, de tal maneira que as pessoas tinham medo de dizer que familiares seus tinham sido mortos nos acontecimentos”, lembrou a ativista.

Ainda hoje, segundo a responsável da AI Portugal, grupos de familiares diretos das vítimas continuam a ser perseguidos e a ver as movimentações “muitíssimo restringidas”.

São pessoas que “de vez em quando estão em prisão domiciliária, são constantemente vigiadas, por vezes cortam-lhes a Internet, as comunicações”, relatou.

Teresa Nogueira citou o caso de uma professora universitária em Pequim, cujo filho de 17 anos foi baleado no coração no dia 03 de junho de 1989. “O marido já morreu, sem ter visto a justiça ser feita”, lamentou.

“Além disso, ainda atualmente aqueles que querem relembrar o que aconteceu e evitar que caia no esquecimento - tal como as autoridades chinesas tudo têm feito para que aconteça – continuam a ser perseguidos”, reiterou, evocando um caso recente.

“Em 2016, quatro ativistas foram detidos porque produziram um vinho branco chamado Baijiu - um vinho típico chinês – e que engarrafaram, cuja marca registaram e que, depois de colocados os rótulos, puseram à venda”, contou. Mediante um jogo de palavras, os rótulos diziam “Lembrem-se de 89 – 04 de junho”.

As garrafas estiveram à venda cerca de três semanas, até que as autoridades chinesas descobriram o que estava a passar-se e prenderam os quatro”, afirmou Teresa Nogueira.

“Apenas foram julgados no princípio de abril deste ano, depois de terem estado desde 2016 até agora presos sem julgamento”, acrescentou. Três elementos deste grupo foram condenados a três anos de prisão, com pena suspensa.

Chen Bing foi condenado a três anos e meio e continua preso. “É em relação a ele que vamos recolher assinaturas, durante a manifestação e também vamos por uma petição online”, avançou, indicando que está a decorrer, a nível mundial, uma ação urgente neste sentido.

Nos postais a enviar ao Presidente da República Popular da China constará a foto que celebrizou um dos manifestantes, sozinho frente a uma fila de tanques, e cujo nome e paradeiro permaneceram desconhecidos até hoje.

Macau, Taiwan, Hong Kong, Estados Unidos e Reino Unido são alguns dos territórios onde a data será lembrada, com vigílias, debates e outros eventos públicos, à semelhança da manifestação de Lisboa, que decorrerá na avenida 24 de julho, frente à sede da EDP.

Algumas secções da Amnistia Internacional decidiram também pedir aos parlamentos dos respetivos países que leiam um de três textos enviados pelo secretariado internacional: a declaração escrita em cativeiro pelo falecido ativista Liu Xiaobo, quando da atribuição do Prémio Nobel da Paz, a Carta 08, um manifesto de que foi o primeiro subscritor e que esteve na origem da detenção ou uma carta das “Mães de Tiananmen”.