“Ser racista não é um insulto”, disse a dado momento Joacine Katar Moreira, presidente do Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE). O que é, então? A resposta direta foi dada quase no final da entrevista, mas a explicação foi-se construindo ao longo da conversa. “Descolonização do imaginário coletivo”, “ativismo visual” e “visibilidade revolucionária” foram algumas das expressões usadas por Joacine, Zia Soares e Carla Costa para explicar as dinâmicas do racismo, mas também os objetivos da organização que agora dirigem.
Sentadas à volta de uma grande mesa de trabalho, fomos “passeando” pelos conceitos, contámos experiências pessoais e falámos de factos históricos. Os passos nem sempre foram firmes. Por vezes, os termos usados nas perguntas foram sendo reformulados pelas entrevistadas: falar de mulheres brancas e mulheres negras reforça uma dicotomia e exclui, por exemplo, as mulheres indianas; quando nos referimos às “exposições zoológicas” de negros não devemos suavizar o termo com “uma espécie de”, porque a dureza do nome é real, “os europeus iam mesmo ver as pessoas enjauladas da mesma forma que hoje se vai ao jardim zoológico”. Se a escolha das palavras que usamos diariamente nunca foi indiferente, hoje em dia o ativismo negro faz dessa seleção uma prioridade.
Na Oficina Impossível, uma loja de antiguidades, na zona de Santos, em Lisboa, onde se misturam roupas, estátuas e livros, o mote da conversa foi a criação do INMUNE, que nasceu a 27 de julho e é apresentado oficialmente este sábado, dia 20 de outubro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa.
"Na escola, nós ouvimos o que nos envergonha, o que nos humilha, o que arrasa com a nossa autoestima"
Ouro, escravos e especiarias, “produtos de enorme valor”
“Eu era uma das melhores alunas e tinha a hipótese de ir para diversas áreas, mas optei por História, porque desejava reescrever a História de África”, conta Joacine, hoje em dia licenciada em História Moderna e Contemporânea e doutorada em Estudos Africanos, ambos pelo ISCTE. A investigadora continua: “Nas obras de História, o texto [dos manuais escolares, entre os quais o manual de História e Geografia de Portugal de 5.º ano da Raiz Editora] diz: ‘Os portugueses traziam de África ouro, escravos, marfim e malaguetas - produtos de grande valor’ . Na escola, nós ouvimos o que nos envergonha, o que nos humilha, o que arrasa com a nossa autoestima”. O exemplo é partilhado por Joacine para ilustrar o impacto que a descrição dos acontecimentos históricos pode ter nos alunos negros que estudam em Portugal.
Para Zia Soares, vice-presidente do INMUNE, “está correto: historicamente as especiarias e as pessoas eram comercializadas ao mesmo nível. Mas sobre isso tem de haver um ponto de vista. O professor tem de dizer aos meninos e às meninas, brancos e negros, que isso não se pode repetir. Senão, aqueles meninos vão crescer a acreditar que há pessoas que são efetivamente superiores”.
Os exemplos com que as crianças e os jovens crescem, em particular no contexto escolar, é uma das referências a que as três dirigentes mais recorrem quando querem explicar de que forma o racismo é interiorizado e transmitido na sociedade.
“Quantas professoras ou professores negros tiveram ao longo da vida?”, pergunta Zia, respondendo de imediato com a sua experiência: “Em toda a minha vida académica, tive uma professora negra”. Carla Costa, vogal da direção do INMUNE, e Joacine, ao lado, murmuram que não tiveram nenhuma. “Se não me consigo rever nos professores…”, deixa em aberto Zia.
Perante a interpelação, é quase inevitável que quem faz as perguntas - neste caso, eu, a jornalista a entrevistar estas três mulheres - não salte para a sua própria experiência. Sim, também só tive uma professora negra; e não, não me lembro de ter dificuldade em rever-me nos meus professores.
Se até agora havia dúvidas, neste ponto da entrevista estava a tornar-se claro: a cor de pele das pessoas sentadas à volta daquela mesa não era irrelevante. E com a consciência de que essa diferença foi determinante na forma como o percurso escolar marcou o desenvolvimento de cada uma, a pergunta seguinte impôs-se: “Como é que uma criança negra se perceciona numa sala de aula?”
Zia, que atualmente é também atriz e diretora artística do Teatro GRIOT, explicou que, para si, os conteúdos sobre a escravidão ou as colónias eram entendidos como se de "uma história exterior” a ela própria se tratasse. “Lia no livro e via aquilo como ficção. Não transportava aquilo para a minha vida”, recorda a vice-presidente do INMUNE. “Mas também porque eu venho de um meio muito misturado - o meu pai é timorense, a minha mãe é angolana. Eu não tinha a perceção dessa clivagem do mundo simbólico e concreto. Isso passou-se muito mais tarde”, acrescenta.
Isto é o que “as crianças aprendem nos livros. E depois há toda uma experiência de vida que o confirma”, complementa Carla. “Se a criança negra vem do mesmo sítio, tem o mesmo professor do que a criança branca e não chega aos mesmos lugares, é mais uma vez o reforço constante da ideia de um racismo biológico [a ideia de superioridade ou inferioridade com base nas características biológicas]. É importante também cortar com este ciclo”, que é reforçado pelos mecanismos de “racismo estrutural”, explica.
Racismo estrutural? O que é isso?
Pensemos num icebergue. A metáfora é sugerida num estudo científico de 2009 sobre a discriminação racial e ajuda-nos a compreender as dinâmicas do racismo. A parte do icebergue que está visível são os comportamentos racistas - dos insultos verbais às agressões físicas. São as ações que observamos e identificamos com facilidade e que podem ser alvo de intervenção direta. Debaixo de água, e portanto de difícil identificação, estão as atitudes implícitas e as políticas sociais e institucionais. Defendem os autores da investigação que “a base do icebergue é mais perigosa do que a ponta”, porque determina a velocidade a que o racismo se desenvolve e o rumo que ele toma.
É precisamente esta parte inferior do bloco de gelo que corresponde ao “racismo estrutural”. São as formas de funcionamento da sociedade que “com ou sem intenção, favorecem cronicamente” determinados grupos, colocando outros em desvantagem, como define um glossário do Aspen Institute, uma instituição norte-americana que se dedica à discussão de ideias sobre questões humanísticas.
“Não é algo que um pequeno grupo de pessoas ou instituições escolham praticar; é uma característica dos sistemas em que todos nós vivemos” e que acaba por perpetuar as desigualdades, esclarece o Aspen Institute.
Joacine considera que, no caso dos negros, a “desumanização e desvalorização” foi sendo mantida ao longo dos séculos através das dinâmicas sociais geradas pela escravatura, pelo colonialismo e, mais recentemente, pelas “intervenções para o desenvolvimento”. “Ainda hoje em dia África é o continente mais pobre, subdesenvolvido, sub-isto, sub-aquilo”, enfatiza, para reforçar que “estas dinâmicas históricas originaram sociedades estruturalmente racistas”.
“Ninguém questiona a ausência de jornalistas negros, de colunistas em artigos de opinião. Ninguém questiona a ausência de negras e negros em diversos espaços. Isto está naturalizado”
Onde é que encontramos o racismo estrutural na nossa sociedade? “No ensino, no sistema judicial, nos hospitais", enumeram as entrevistadas. “No jornalismo”, acrescenta Joacine. Facto ou não, mais uma vez, impõe-se uma espécie de revisita mental às pessoas com quem nos cruzamos na vida profissional. “Ninguém questiona a ausência de jornalistas negros, de colunistas em artigos de opinião. Ninguém questiona a ausência de negras e negros em diversos espaços. Isto está naturalizado”, sublinhou a presidente do Instituto.
Por esta altura, a vontade de perceber se as impressões subjetivas que surgem na memória são construções distorcidas da realidade ou se encontram materialização em dados estatísticos impunha-se.
No sistema judicial, por exemplo, “muito mais rapidamente se acusa uma negra ou um negro de um possível delito do que uma pessoa branca”, continuou Zia.
A necessidade de números que fundamentassem estes relatos ia crescendo. Negar a discriminação que é verdade todos os dias para algumas pessoas não estava em causa, mas a confirmação dessas histórias com mais do que sensações era necessária para consolidar as críticas. Mais à frente viria a perceber que esta é uma questão de difícil resposta em Portugal.
Enquanto isso, do outro lado da mesa, Zia prosseguia, mais uma vez referindo-se às escolas: “Logo à partida, a maior parte das meninas e dos meninos negros são aconselhados a seguirem cursos técnico-profissionais”. “Há todo um enredo que tolda imediatamente as escolhas que os adolescentes fazem para a sua vida futura”, acrescentou. Para a vice-presidente do Instituto, um dos principais eixos de atuação do INMUNE é precisamente o da educação, cabendo ao Instituto a reivindicação de oportunidades: “É possível [fazer] outros caminhos. Isto não é um privilégio, nem deve ser um privilégio. A educação é um direito de todos os cidadãos por igual”.
“O INMUNE não acontece para dar respostas. O Instituto levanta questões”
Para além do trabalho na área da educação, o INMUNE definiu mais oito linhas de orientação. Carla, até aqui a mais reservada das três nas palavras, foi listando os departamentos cuidadosamente: Educação, Formação e Ciência; Sororidade e Entreajuda; Cultura, Artes e Espetáculos; Eventos; Jurídico; Comunicação e Relações Internacionais; Géneros, Feminismos e Questões LGBTQI+; e Infância e Juventude. A multiplicação de departamentos, Joacine fez questão de explicar, deve-se ao facto de o Instituto ter sido “fundado por 27 mulheres de diversas áreas. Não são 27 mulheres muito bem-intencionadas e que se estão a iniciar. São indivíduos com experiência profissional e conhecimentos técnicos”. “Com base nas nossas habilitações e capacidades, temos o objetivo de produzir conhecimento, fazer investigação, editar obras, escrever artigos, fazer e partilhar panfletos, dar ações de formação”, detalhou.
Quanto à designação escolhida para a organização, a conjugação das iniciais de INstituto da MUlher NEgra “deu um nome extraordinário”, exclamou com um grande sorriso Joacine. INMUNE, inevitavelmente, leva-nos até imune. “Imunes porque as mulheres negras são as sobreviventes da história. Sobreviventes ao machismo, sexismo, colonialismo, racismo e escravatura. Imunes, no sentido da resiliência”, disse, determinada.
O INMUNE não é a primeira organização de mulheres afrodescendentes em Portugal, mas, para a presidente do recém-criado instituto, “existir uma associação de mulheres negras feministas é insuficiente. O ideal era que existissem oito, nove, dez, onze”. “Há tanto a fazer que quantas mais pessoas puderem estar engajadas melhor”, esclareceu Zia, ao que Joacine acrescentou: “O nosso enfoque não é diferenciarmo-nos; é reforçarmos áreas de ação e estarmos sucessivamente numa relação de irmandade”.
Para isso, fazem parte de redes informais que agregam organizações com os mesmos fins a nível internacional. “Uma das instituições que nos serviram de alavanca e de inspiração é o Instituto da Mulher Negra Geledés”, no Brasil; “uma outra é o Mwasi, um coletivo afrofeminista em França”, exemplificou Joacine, referindo ainda o Ondjango Feminista, de Angola, e o Miguilan, da Guiné.
No panorama nacional, identificam um aspeto que as distingue: o envolvimento político. “Desejamos manifestar-nos politicamente, fazer comunicados a demarcar as nossas óticas, as nossas posições sobre diversos aspetos”. A dar conta disso, na página de Facebook do INMUNE pode ler-se: o Instituto “é uma entidade feminista interseccional e anti-racista, constituída por mulheres, de direito privado, sem fins lucrativos, solidário, apartidário, mas não apolítico”.
Para as três representantes da direção do INMUNE, a expansão da presença das mulheres negras em diversos espaços funciona como um ato político, na medida em que contribui para a “desconstrução da imagem da mulher negra”. “É aquilo a que nós, no Instituto, damos o nome de visibilidade revolucionária. A ideia é que as nossas ações, intervenções e participações signifiquem mudanças efetivas na eliminação dos estereótipos associados às mulheres negras”, explica Zia.
“O facto de aparecermos é uma forma de descolonizar este imaginário coletivo que se foi construindo à custa da amnésia seletiva”
Uma outra forma de "ativismo visual", refere, é a promoção de “literatura que coloque crianças negras como heróis ou protagonistas das histórias”. “Tenho 46 anos e cresci com heroínas brancas e heróis brancos, muito diferentes da forma como eu me via”, partilha. Portanto, “o facto de aparecermos é uma forma de descolonizar este imaginário coletivo que se foi construindo à custa da amnésia seletiva”. “Nós somos os executores, os que recebem ordens”, complementa Joacine.
O Instituto pretende ser também um local para as mães não negras de filhos negros. Estas mulheres “confrontam-se igualmente com o racismo estrutural. Debatem-se com os mesmos problemas, e têm igualmente de encontrar ferramentas” para lidarem com as situações, esclarece Joacine.
Ainda assim, as dirigentes foram unânimes a deixar a ressalva: “O Instituto não acontece para dar respostas. O Instituto levanta questões e procura as respostas possíveis conjuntamente com a sociedade. Isto não é um sítio que tenha uma cartilha; estamos muito interessadas em discutir, em colocar as questões, em contribuir com hipóteses de soluções e avançar naquilo que pode ser uma sociedade melhor”.
"As mulheres não são invisíveis. Elas são invisibilizadas"
A falácia da meritocracia
“Nós no INMUNE achamos que ninguém é invisível. As mulheres não são invisíveis. Elas são invisibilizadas”, diz, firme, a presidente do Instituto.
Para Joacine, existe um “silenciamento” das mulheres negras na sociedade, estando elas habitualmente em espaços de pobreza, exploração, salários “muitíssimo baixos” e empregos menos valorizados. Considera, por isso, que há “uma ausência enorme das mulheres [negras] em todas as áreas”, incluindo “nos organismos do Estado, nas escolas, nas artes”. Até porque, como lembra Joacine, os negros continuam a ser olhados “como pessoas estrangeiras, como imigrantes”, independentemente de estarem “na Europa com nacionalidade”. Joacine, Zia e Carla são portuguesas; vieram para Portugal com sete anos, dois anos e um ano e meio, respetivamente.
“É esta invisibilização que vai sucessivamente dando a ideia de que, se elas não estão aí, é porque se calhar não são suficientemente úteis, suficientemente boas”, afirma Joacine, para explicar a “falácia da meritocracia”. A ideia é que “só os melhores é que estão nos espaços de visibilidade e têm informação para dar”. Se as mulheres negras não têm a “hipótese de obter uma formação” e de estar em posições em que possam “dar um contributo”, a perspetiva delas continuará a não ser “valorizada”.
Neste momento da conversa, o racismo estrutural volta a surgir como pano de fundo nas afirmações que são feitas. E as dúvidas persistem: quantas negras estão nestes lugares para que se possa dizer que há “uma ausência enorme”? Serão os números representativos da proporção de mulheres negras na sociedade ou haverá de facto uma sub-representação?
Joacine explica que estas perguntas ficarão por responder, porque oficialmente “não há dados étnico-raciais em Portugal”. “É preciso que haja uma recolha efetiva em termos nacionais. Algo que seja objetivo, visualizável, percetível”, para que seja possível “comprovar o racismo estrutural” e contrariar a narrativa hegemónica, sugere Joacine.
A introdução de campos para registo de informação étnico-racial, em particular nos Censos, é uma luta em que Joacine tem estado envolvida, acreditando que esta “pode ser uma ferramenta ao serviço da igualdade étnico-racial” e uma forma de trazer para o debate “aqueles que não têm voz, nem pegada estatística”, como se pode ler num texto de fevereiro deste ano assinado por mais de cinquenta coletivos e indivíduos, incluindo Joacine. “São estas estatísticas que vão arrasar com a falsa imagem de que não somos um país racista. Estes elementos vêm mostrar a segregação habitacional, a segregação urbana, quem é que tem acesso aos cuidados de saúde continuados, etc. Vão-nos dar um mapeamento nacional, em termos étnicos e raciais em áreas diversas”, afirma a historiadora. “Ao mesmo tempo são elementos fundamentais para a implementação de políticas públicas”, defende.
Joana Gorjão Henriques, jornalista do Público, fez em 2017 um trabalho sobre o “Racismo à portuguesa”, onde publicou uma série de reportagens sobre as desigualdades raciais na habitação, na justiça, na educação, no emprego, em Portugal.
“Um em cada 73 cidadãos dos PALOP está preso. É dez vezes mais do que a proporção que existe para os portugueses”, pode ler-se num dos textos. “Em 2015, o desemprego era de 33% para os cidadãos de países africanos e de 12,4% para os portugueses”, avança a jornalista no artigo sobre as desigualdades laborais. A recolha dos números não foi fácil. À falta de estatísticas sistematizadas em Portugal, os dados resultam de uma investigação que cruza diversas fontes e aplica uma fórmula de cálculo utilizada no Pew Research Center, um conceituado instituto de estudos norte-americano.
"Não havia a disponibilidade para pôr a música [Já fui ao Brasil, dos Da Vinci] em causa, para pensar sobre isso. Eles nem ouvem a letra."
Se o racismo estrutural não se vê, não é explícito, como é que é combatido no dia-a-dia?
Zia responde com dois exemplos práticos da sua vida. “No outro dia, soube de uma companhia de teatro que faz espetáculos infantis com blackface [técnica teatral criada no século XIX em que atores brancos representam papéis de negros, pintando a cara e exagerando traços fisionómicos; esta prática foi condenada em meados do século XX e tem vindo a ser eliminada]. Se isto acontece com a minha filha na escola e ela me vem dizer, não vou ficar calada. Vou à escola, convoco uma reunião de pais, convoco uma reunião com os coordenadores da escola e coloco a situação. Vamos todos discutir e arranjar uma solução. Porque isto não é um problema só meu. É um problema que foi gerado na escola e, portanto, é na escola que nós o vamos resolver e passar para a sociedade”.
Numa outra ocasião, Zia tentou evitar que se cantasse na festa da escola da filha a música “Já fui ao Brasil” [referindo-se ao tema “Conquistador”, dos Da Vinci, que representou Portugal no Festival Eurovisão da Canção em 1989]. A filha, com sete anos, “sentiu-se mesmo marginalizada” e revoltou-se: “A minha mãe é uma louca, não me deixa cantar na festa”. Zia contou que foi à escola explicar à professora porque é que achava que aquela música nunca poderia ser cantada: “Expliquei aos pais porquê, mas eles cantaram na mesma. A música é tão bonita, os pais e as crianças gostam tanto”. “Não havia a disponibilidade para pôr a música em causa, para pensar sobre isso. Eles nem ouvem a letra”, critica. “Depois tu, como negra, passas por conflituosa”.
Carla, indicada por Joacine como uma das pessoas mais preparadas no grupo para falar sobre os desafios quotidianos e a necessidade de superação constante, explica como se geram estas interações: “Quando nós reagimos, quando dizemos que não gostamos, quando rejeitamos algum comentário, somos sempre caracterizadas de muito reativas, muitos sensíveis. Temos de explicar à outra pessoa porque é que nos sentimos ofendidas. É um trabalho constante. Temos de perceber quando é podemos ser sensíveis, quando é que vale a pena o investimento. Eu ainda estou a aprender, a tentar ser cada vez mais articulada e mais concisa na resposta”.
Aproveitando o mote, e considerando que no quotidiano todos nos deparamos com comentários potencialmente racistas (uns mais, outros menos), desafiámos as entrevistadas a dizerem-nos como responderiam a quatro expressões que poderíamos ouvir numa qualquer conversa informal.
"Eu não sou racista, mas filha minha não casa com um negro"
Joacine Katar Moreira (JKM) - O passo um é dizer: "Isto é uma atitude racista”. Só o racista iria ter problemas em que a sua filha se relacionasse com indivíduos de outras origens étnico-raciais.
Uma das especificidades do racismo em Portugal é a sua negação. Nunca se fala da parte étnica e racial. Isso deixa-nos numa situação de desconforto enorme, sem nos conseguirmos manifestar. Este é exatamente um dos desafios enormes para todas as negras e todos os negros.
Hoje em dia, com a idade e com a experiência, eu digo: "És racista". As pessoas ficam em choque. É o maior choque. É olhado como se fosse um insulto enorme. Racista não é um insulto. É insulto quando adjetivamos alguém. Isto é uma situação concreta: advém de uma estrutura social, política e económica normalizada. As pessoas têm atitudes e comportamentos racistas que advêm de uma interiorização do racismo estrutural, da naturalização da inferioridade do outro.
Carla Costa (CC) - Passa sempre por contrariar, mas eu acho que a pessoa que diz isso, mesmo que tu digas "desculpe, mas é racista", vai continuar a dizer que não é. Temos de perguntar: “Porquê?”. Não faz sentido uma pessoa racional começar um argumento a dizer que não é racista e depois dizer “mas”.
"Contar piadas com negros é tão normal como contar qualquer outra piada"
CC - Não é. Não é uma piada qualquer. A história que é contada sobre nós é sempre a mesma: a pessoa que está na condição inferior, que é inferior. Não temos exemplos positivos de histórias negras, são raros.
As pessoas contrapõem com: "Também há piadas de alentejanos". Mas, mais uma vez, o alentejano não é só um alentejano: é branco, é português. Nós, primeiro, somos negros, somos africanos; somos uma mancha. As pessoas não nos conhecem.
A piada negra não é só a piada negra, é a história negra. De cada vez que fazem piadas, essa passa a ser a nossa história. Nós somos aquilo.
Todo o tipo de preconceito que o meu corpo gera não é só sobre mim; é sobre a minha família, sobre os meus pais, irmãos, tios, avós. É sobre a minha cultura. O negro é basicamente aquela personagem caricaturada.
JKM - Caricaturada desde a época colonial em que havia exposições zoológicas humanas: enfiavam os negros e as negras numa espécie de jaulas. Os europeus iam ver as pessoas da mesma forma que hoje se vai ao jardim zoológico. [Iam ver] mulheres como a Sara Baartman, que andou pela Europa a ser mostrada como um animal, porque tinha umas ancas enormes, um rabo enorme. Esta imagem caricaturada e animalizada dos negros - que são assim, falam assim, andam assim, vestem assim, pensam assim... - tem origem nestas histórias.
"Preta" ou "Negra"?
CC - "Preta" é a palavra que utilizam para me desumanizar. Quando me querem ofender, chamam-me “preta”. Acho ridículo a pessoa usar uma característica minha para me ofender. “Preto" é a palavra utilizada para nos tirar a dignidade - pelo menos é esta a minha experiência.
JKM - Mas cada vez mais é apropriada pelos negros e pelas negras e revalorizada. Nesses casos, é uma autodenominação: eu posso identificar-me enquanto isto, os outros não.
CC - Acho [que as pessoas podem usar o termo], mas eu tenho de dar permissão. Pelo menos às pessoas próximas de mim. Custa-me imenso ter pessoas a dizer: "Aquele preto que passou". É a forma como se descreve quem passou. A necessidade de destacar a pessoa que passou pela raça.
JKM - O homem negro e a mulher negra nunca são vistos como pessoas, como indivíduos. Eles precisam sempre de ser distinguidos. Não basta dizer "está ali um indivíduo a andar", é preciso dizer: “É um indivíduo negro que está a passar".
CC - É como dizer "de cor". É uma preguiça de quem utiliza este tipo de expressões. As pessoas podem também fazer o trabalho delas e informar-se. Não fazem isso porque não precisam. Não é importante.
"Agora tudo é racismo"
JKM - Eu ouço isto imensas vezes. Antes, o objetivo dos nossos pais, especialmente na Europa, no espaço do ex-colonizador, era não levantar ondas, porque eles achavam que não estavam na sua terra. Como estavam na terra do “outro”, precisavam de estar submetidos a determinadas situações. Acontece que na nossa geração muitos nasceram cá, foram educados aqui. Esta é a nossa terra. Este é o nosso país. Estas são as nossas estruturas. Portanto, nós já não admitimos o que os nossos pais, avós, bisavós admitiram.
Quando se diz "hoje em dia tudo é racismo” é porque nós finalmente saímos do espaço do silenciamento e começámos a informar e instruir. As nossas ações, o ativismo antirracista e o Instituto da Mulher Negra estão a desestabilizar as hierarquias instituídas, estão a desestabilizar uma organização social, económica, política que invisibilizava os negros, que excluía os negros. Agora vão ter de abrir alas a isso, vão ter de encontrar respostas e de se adaptar a elas. Não somos nós que necessitamos de ser enquadrados, integrados, inseridos. Não. As instituições é que precisam de se adaptar à nova realidade, que é multiétnica, multirracial.
Estamos a iniciar as nossas reivindicações. Estamos a começar a não admitir, a denunciar. As pessoas já estão todas incomodadas. E nós só estamos no início.
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