Depois de a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) confirmar que as tromboses poderão ser um dos efeitos secundários raros (inferior a 1 por 100.000) da vacina da AstraZeneca, e mesmo considerando que os benefícios do uso da vacina ultrapassam os riscos, a Direção-Geral da Saúde optou por seguir o exemplo de vários países e restringiu a administração da vacina a pessoas com mais de 60 anos.

Segundo a EMA, até 4 de abril tinham sido reportados à EudraVigilance 169 casos de trombose do seio venoso cerebral e 53 casos de trombose da veia esplénica em cerca de 34 milhões de pessoas vacinadas no Espaço Económico Europeu e no Reino Unido - aproximadamente seis casos de trombose por milhão.

Até ao momento, tudo indica que o aparecimento de coágulos em pessoas vacinadas com a AstraZeneca poderá ser causado por uma resposta imune pouco comum. De acordo com as conclusões do Comité de Avaliação de Risco em Farmacovigilância (PRAC), uma explicação plausível para o aparecimento destas reações adversas é uma resposta imunológica similar à ocasionalmente observada em doentes tratados com heparina. No entanto, é necessária mais informação, pelo que foi solicitada a condução de novos estudos. Estes casos ocorreram principalmente em mulheres com menos de 60 anos, nas duas semanas seguintes à vacinação, não sendo possível, até ao momento, a definição de fatores de risco específicos.

No entanto, várias pessoas com menos de 60 anos já tinham sido vacinadas com a primeira dose da vacina da AstraZeneca. O que acontece neste caso?

“Quem levou a primeira dose da vacina da AstraZeneca, naturalmente, vai ter de receber uma segunda dose. O que ainda está em causa é qual a melhor estratégia para a segunda dose e há diferentes soluções”, disse ao SAPO24 Luís Graça, imunologista, investigador do Instituto de Medicina Molecular (iMM) e membro da Comissão Técnica de Vacinação, que admite a possibilidade de a segunda dose da AstraZeneca vir a ser substituída por outra vacina.

Porém, a hipótese ainda está em estudo e a DGS aguarda resultados de estudos da Universidade de Oxford sobre a eficácia da administração de uma segunda dose de um laboratório diferente. Em Portugal, as alternativas seriam apenas duas: Moderna ou Pfizer.

Segundo explica o imunologista, o que se tem verificado no Reino Unido – onde foram administradas mais de dois milhões de segundas doses da AstraZeneca – é que “as pessoas que receberam a primeira dose desta vacina e que não tiveram nenhum efeito adverso, na segunda dose também não tiveram efeitos adversos [eventos tromboembólicos] e, por isso, estão a continuar a administrar segundas doses iguais da AstraZeneca”. No entanto, no caso de “pessoas que tiveram esses problemas tromboembólicos, não é administrada a segunda vacina [da AstraZeneca]. Recebem uma diferente”.

Luís Graça refere que, “do ponto de vista do sistema imunitário, fazer uma segunda vacina diferente da primeira, em princípio, deve funcionar de maneira semelhante”. E justifica: “Aquilo que se pretende com uma segunda dose da vacina é expor o sistema imunitário outra vez às proteínas do vírus que estimularam a resposta imunitária e todas as vacinas têm exatamente a mesma proteína do vírus, que é a proteína S [spike]. Assim, é expectável que as células que são estimuladas na primeira dose, sejam igualmente estimuladas na segunda dose com qualquer outra vacina, mantendo, desta forma, a resposta imunitária.

Em França, por exemplo, as pessoas com menos de 55 anos que receberam a primeira dose da vacina AstraZeneca devem receber a segunda dose de outra vacina, segundo o ministro da Saúde francês, Olivier Véran.

Em Portugal, temos cerca de um mês até ser iniciada a vacinação com segundas doses, porque só se começou a usar a AstraZeneca (atualmente Vaxzevria) em fevereiro, o que significa que a população vacinada com a primeira dose, só deverá começar a receber a segunda em maio.

Esta situação permite “ter mais dados sobre esta troca de vacinas". Isso irá permitir "confirmar se realmente as coisas são como devem ser, do ponto de vista técnico, e se o sistema imunitário responde a qualquer vacina porque tem a mesma proteína”, diz o imunologista.

“O mais importante é olhar para a informação disponível e permitir às pessoas terem acesso uma segunda dose que seja eficaz e que seja completamente segura. É importante é olhar para os dados e verificar a melhor estratégia disponível”, salienta.

Benefício vs risco

Luís Graça recorda que, em termos de segurança da vacina AstraZeneca, o que a EMA referiu foi que “o risco/benefício continua a ser fortemente a favor do benefício” e explica: “a EMA admite que existem riscos e esta última a comunicação estabelece que existe uma associação entre a toma da vacina e estes casos [eventos tromboembólicos]. Por isso, existe um risco reduzido, mas presente e que está em pessoas mais jovens, sobretudo abaixo dos 50 anos”.

Assim, o que é preciso ver é se existe um benefício que compense esse risco.

“Se só tivéssemos esta vacina, provavelmente, a melhor solução, em termos de risco/benefício, seria continuar a utilizar esta vacina nesta população [faixa etária de risco]. Mas, havendo outras vacinas que permitem ter o mesmo benefício e sem qualquer risco para a população, seria incompreensível continuarmos a sujeitar esta população mais nova a este risco, por pequeno que fosse", justifica Luís Graça.

A Universidade de Cambridge analisou os riscos e benefícios de tomar ou não a vacina da AstraZeneca por faixas etárias, comparando o potencial risco de trombose com o número de internamentos em unidades de cuidados intensivos por covid-19 evitados graças à vacinação.

Para a análise consideraram três níveis de exposição diferentes ao vírus, durante 16 semanas. Os níveis variam em função da prevalência local do vírus, bem como da exposição a outras pessoas potencialmente infetadas.

De acordo com os dados apresentados, os benefícios da vacina superam claramente os riscos de trombose em quase todas as faixas etárias. No entanto, os números variam em função do referido risco de exposição.

Num cenário de baixa exposição ao vírus (considerando uma incidência de 2 em cada 100 mil por dia), os riscos de formação de coágulos após a vacinação na faixa etária entre os 20 e os 29 anos é de 1,1 em cada 100.000 pessoas, o que supera os internamentos em Unidades de Cuidados Intensivos evitados, que é de 0,8 por cada 100.000 pessoas. Mas, no caso de pessoas entre os 60 e 69 anos, os riscos de formação de coágulos após a vacinação são de 0,2, enquanto os internamentos em Unidades de Cuidados Intensivos evitados são de 14,1.

Além disso, à medida que o nível de exposição ao novo coronavírus aumenta, os riscos mantém-se, mas os benefícios da vacinação registam um aumento significativo. Em situações de elevada exposição, os benefícios da vacina são mais muito vezes superiores aos riscos na faixa etária entre os 60 e os 69 anos, com 0,2 de risco contra 127,7 de benefícios, enquanto na faixa etária dos 20 aos 29 anos o risco é de 1,1 e o benefício de 2,2.

Um dos benefícios da vacina é a proteção a curto e “longo prazo” contra o desenvolvimento de doença grave associada à covid-19. O benefício considerado para este efeito visa apenas casos de admissão em UCI, não visa hospitalizações ou situações de pessoas que acabam por sofrer de doença prolongada ou até o benefício da possível diminuição da transmissão. Quanto ao risco da vacina, este ocorre apenas no momento da vacinação, o que significa que, com o tempo, os benefícios irão aumentar, mas os riscos não.

Existem outras situações que também acarretam um risco de desenvolver coágulos. De acordo com o Wilmslow Health Centre, uma viagem de avião com duração superior a quatro horas, por exemplo, apresenta um risco de 1 em 6.000, ou de 167 em um milhão - 0,0167% - e o risco de desenvolver um coágulo sanguíneo durante a toma da pílula contraceptiva oral combinada é 1 em 2000 ou de 500 em um milhão – 0,05%.

O risco de uma trombose venosa profunda (TVP) é de 11.200 em cada 100.000 pessoas que desenvolvem covid-19 - 11,2%. Além disso, cerca de 23% dos doentes internados em Unidades de Cuidados intensivos podem desenvolver algum tipo de tromboembolismo venoso e até 30% das pessoas que têm covid-19 podem ter trombocitopenia (diminuição da contagem de plaquetas). O risco de morrer por covid-19 é também superior ao de um evento tromboembólico após receber a vacina da AstraZeneca.

Como é que a vacina da AstraZeneca passou de não ser recomendada a pessoas acima dos 65 anos para agora ser recomendada apenas para essa faixa etária?

Miguel Prudêncio, professor na faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, explicou à SIC Notícias, que a primeira recomendação referente à AstraZeneca não resultou de nenhum risco de segurança ou de falta de eficácia da vacina nessas faixas etárias [mais de 65 anos].

“O que se passou foi que, na altura, o número de pessoas acima dos 65 anos que tinham sido vacinadas durante os ensaios clínicos era um número relativamente reduzido. Ou seja, os ensaios clínicos envolveram cerca de 40 mil pessoas e a percentagem dessas pessoas acima dos 65 anos era relativamente baixa. Então, vários países consideraram que, por os números não serem muito elevados, não havia robustez suficiente nas conclusões para se ter a certeza que a vacina era eficaz acima dos 65 anos", afirmou.

No entanto, desde que a vacina passou a ser administrada no mundo real foi possível alargar o ensaio clínico de milhares para milhões de pessoas, o que permitiu concluir que é bastante eficaz nestas faixas etárias.

"A vacina foi dada a milhões de pessoas e, no Reino Unido, começou por ser dada às pessoas mais idosas e começamos a ter dados do mundo real da vacinação de milhões de pessoas acima dos 65 anos que mostraram claramente que a vacina era eficaz também nessa faixa etária", acrescenta.

Miguel Prudêncio assegura que "não se tratava de uma preocupação de segurança ou de falta de eficácia, mas que os números eram apenas insuficientes para darem a robustez que permitia ter a garantia absoluta de a vacina que era eficaz acima dos 65 anos, algo que completamente ultrapassado pela realidade da vacinação de milhões de pessoas acima dessa idade".

Para já, a vacina é desaconselhada a pessoas com menos de 60 anos e o objetivo das autoridades de saúde é encontrar um equilíbrio entre o risco de efeitos adversos, neste caso considerado muito raro, e o risco de desenvolver doença grave e de morte associado à covid-19.

Recomendações

Embora a possibilidade de aparecimento destes tipos de coágulos seja muito baixa, as pessoas vacinadas devem procurar imediatamente assistência médica, caso detetem, principalmente nas duas semanas após a inoculação da vacina, algum dos seguintes sintomas:

  • falta de ar;
  • dor no peito;
  • inchaço nas pernas;
  • dor abdominal persistente;
  • sintomas neurológicos, como dores de cabeça intensas e persistentes ou visão turva;
  • pequenas manchas de sangue sob a pele, em locais distintos do local da injeção.