As doenças transmissíveis tiveram um papel importantíssimo na história da humanidade. Existem entre nós desde há mais de 1 milhão de anos e, durante quase todo este longo período, os humanos encararam estas doenças como fatalidade: seja o que Deus quiser.

Estas doenças foram a principal causa de sofrimento e morte entre os humanos até princípios do século XX e foram a razão pela qual a longevidade média em geral não ultrapassou os 40-60 anos de idade até meados do século XX.

Muitos já leram sobre a forma como ao longo dos séculos as epidemias de peste, tifo, cólera, varíola e gripe, dizimaram grandes populações em todo o mundo. Atualmente, as doenças infecciosas são ainda a principal causa de mortalidade infantil em algumas regiões do mundo e algumas destas doenças são evitáveis por vacinação.

[Atualmente] quem toma a vacina não está doente e não pode adoecer devido à vacina. O controle de qualidade antes e depois da sua utilização é elevadíssimo.

A primeira vacina a ser administrada a muitas pessoas foi a da varíola, ainda no início do século XIX. Contudo, foi com as descobertas de Pasteur e Koch, em finais desse século, que a humanidade teve pela primeira vez alguma esperança de compreender e controlar as doenças transmissíveis. Estes investigadores descobriram a causa destas doenças e desenvolveram vacinas para algumas, como a raiva e a peste.

A primeira administração à escala mundial duma vacina iniciou-se em 1956 contra a varíola e teve o patrocínio da Organização Mundial de Saúde. O objetivo era a erradicação total da doença e foi conseguido. Atualmente, a importância do assunto parece esquecida, mas relembro que no século XVIII a varíola era responsável por 8 a 20% das mortes na Europa.

Animados pelo sucesso, muitos países desenvolvidos instituíram programas nacionais de vacinação (PNV’s) ao longo do século XX. Portugal iniciou o seu PNV em 1965 com cinco vacinas: poliomielite, tosse convulsa, difteria, tétano, e varíola. Desde então, o PNV português não parou de se adaptar, incluindo presentemente vacinas para 12 agentes infecciosos e é um dos de maior sucesso mundial.

Aqui ficam algumas comparações entre a década 1950-59 anterior ao PNV e a situação atual em Portugal:

Difteria: tínhamos anualmente 30 a 50 casos por 100 mil habitantes. Presentemente não há difteria.

Sarampo: Havia epidemias de 2 em 2 anos nas escolas – praticamente toda a gente apanhava sarampo (ou seja, 90 a 110 mil casos por ano). Desde 2000 não havia casos de sarampo não-importados.

Meningococo C (causa meningites e septicemias): Tínhamos 150 a 200 casos por ano até 2002. Presentemente temos 20 casos e a incidência continua a descer.

Poliomielite: somos um dos países que declarou oficialmente a eliminação da poliomielite em 2002.

Quando a vacinação em massa se iniciou na década de 1960, a longevidade média nos países ocidentais rondava 65 anos. Hoje em dia, a longevidade média situa-se na zona dos 80 anos de idade, em grande parte devido à redução da mortalidade infantil, na qual a vacinação teve um papel crucial.

Paradoxalmente, o sucesso das vacinas são a causa do revivalismo dos movimentos anti-vacinas. O facto de já não haver epidemias periódicas das doenças contra as quais as vacinas protegem, fez algumas pessoas deixarem de valorizar o sofrimento e a mortalidade que elas causaram durante a maior parte da história da humanidade. Não é por acaso que nos países onde as doenças infecciosas ainda são um flagelo, não se encontram movimentos anti- vacinação. As pessoas que se manifestam contra a vacinação fazem-no por uma variedade de falsas razões que em geral apenas traduzem desconhecimento científico. Passo a resumir e rebater as suas principais argumentações.

(I) Primeiro, os efeitos secundários da vacinação. As vacinas podem de facto ter efeitos adversos ou “reações à vacina”. Mas a esmagadora maioria são benignos, como dor local transitória ou inchaço no local da vacina. Pode também haver reações sistémicas como a febre, dores de cabeça ou mau estar, mas tudo isto, quando ocorre, é quase sempre transitório e não deve causar preocupação. Já há muitos anos que não são administradas vacinas que se possam considerar perigosas para a saúde. As reações alérgicas sérias são extremamente raras. É o caso das reações anafiláticas (1 caso em cada 50.000 a 1.000.000 doses de vacina).

A falsa acusação de que existia uma associação entre a vacina VASPR (sarampo, parotidite, rubéola) e o autismo, nascida em 1998 e já desacreditada por estudos científicos, deixou sequelas no Reino Unido porque muitos britânicos decidiram não vacinar os seus filhos. Em consequência, o país teve um grande surto de sarampo entre 2008 e 2009.

O atual perfil de segurança das vacinas é muito superior ao da maioria dos fármacos usados para fins terapêuticos porque as vacinas têm fins preventivos – quem toma a vacina não está doente e não pode adoecer devido à vacina. O controle de qualidade antes e depois da sua utilização é elevadíssimo. Isto explica também por que razão novas vacinas demoram tanto tempo a estar disponíveis, apesar da sua tecnologia ser conhecida muitos anos antes.

Finalmente, é necessário ter presente que todos os anos são administrados milhões e milhões de vacinas que estão centradas no primeiro ano de vida das crianças. Há acontecimentos inesperados que podem ocorrer nos primeiros meses de vida de uma criança e que ocorrem independentemente de haver vacinas ou não – tome-se o exemplo da síndrome da morte súbita do lactente, mais frequente até aos 6 meses. É raro acontecer, mas como ocorre nos primeiros meses de vida, a probabilidade de um acontecimento destes ocorrer após a toma de uma vacina é elevado e mesmo as pessoas bem-intencionadas e inteligentes não resistem a associar as duas coisas.

O argumento sobre a intromissão na esfera privada é contrariado pelo conceito do bem comum, em que o indivíduo se deve sujeitar às regras que beneficiam todos os que pertencem à sua comunidade. É também com base no bem comum que o Estado deve intervir para proteger a população.

A falsa acusação de que existia uma associação entre a vacina VASPR (sarampo, parotidite, rubéola) e o autismo, nascida em 1998 e já desacreditada por estudos científicos, deixou sequelas no Reino Unido porque muitos britânicos decidiram não vacinar os seus filhos. Em consequência, o país teve um grande surto de sarampo entre 2008 e 2009 e em Espanha, onde só se tinham registado dois casos de sarampo em 2004, em 2010 houve 1300. Algo semelhante, mas pior, ocorreu nos EUA. De acordo com o CDC americano, os EUA tiveram 23 surtos de sarampo em 2014, um triste recorde dos últimos 25 anos. Um destes surtos teve 383 casos, que afetaram principalmente comunidades Amish não vacinadas do Ohio. Todos os comentadores (refiro-me a artigos do The Washington Post) têm atribuído este recorde ao crescendo do movimento antivacinação.

(II) Os opositores à vacinação argumentam que o potencial benefício da vacinação é inferior ao potencial risco individual e que esta intromissão na esfera da autonomia do indivíduo é totalitária – e como tal, imoral. É um argumento falacioso, porque a prevenção individual de uma doença contagiosa tem muito valor para toda a comunidade, ao contrário do tratamento do doente isolado, que possui apenas valor individual. O argumento sobre a intromissão na esfera privada é contrariado pelo conceito do bem comum, em que o indivíduo se deve sujeitar às regras que beneficiam todos os que pertencem à sua comunidade. É também com base no bem comum que o Estado deve intervir para proteger a população. Por exemplo, não somos livres de circular pela esquerda nas estradas, apesar de o podermos fazer. A nossa autonomia para circular pela esquerda vai contra (literalmente…) o interesse dos outros e, por isso, o estado retira-nos permissão para o fazer.

[O bebé] deve ser vacinado [contra o sarampo] o mais cedo possível, mas não deve ser vacinado quando há ainda anticorpos maternos em circulação porque estes bloqueiam o efeito da vacina.

Vamos falar de sarampo

Algumas palavras sobre o sarampo em particular. Até 1973, a doença originava epidemias de 2 em 2 anos nas nossas escolas e praticamente todos os portugueses apanhavam sarampo antes da adolescência. Não houve notificações oficiais de casos de doença até 1987, mas estima-se que havia em Portugal mais de 100 mil casos de sarampo por ano. Além disso, a doença matava. Só entre 1970 e 1973, ocorreram 765 óbitos associados ao sarampo.

A vacina contra o sarampo é segura: mais de 7 milhões de doses de vacina já dadas em Portugal desde 1973 atestam este facto. (...) Se uma criança teve uma reação grave, as futuras doses podem ser administradas em meio hospitalar sob condições de segurança e controlo.

A vacinação de rotina iniciou-se em 1974, recomendada aos 15 meses de idade, e teve um impacto quase imediato: entre 1987 e 1990, houve uma média anual de 3.100 casos, apesar deste período incluir a última grande epidemia ocorrida em 1989. Este número já era quase insignificante se comparado com a situação pré-1974. A tabela seguinte resume as principais etapas da história da vacinação contra o sarampo em Portugal.

É muito importante que a vacinação se inicie muito cedo na vida porque um recém-nascido fica imediatamente sujeito a infeção. Embora nasça com algumas defesas herdadas da mãe através da placenta, estas defesas em geral perdem-se ao fim de poucas semanas, deixando-o desprotegido e com um sistema imunitário muito imaturo e “ingénuo”. As idades escolhidas para o inicio da vacinação (15 meses e 12 meses desde 2012) são determinadas com base em estudos do decaimento dos anticorpos herdados da mãe pelo bebé. Este deve ser vacinado o mais cedo possível, mas não deve ser vacinado quando há ainda anticorpos maternos em circulação porque estes bloqueiam o efeito da vacina.

A vacina contra o sarampo é segura: mais de 7 milhões de doses de vacina já dadas em Portugal desde 1973 atestam este facto. Embora a vacina possa originar efeitos adversos ou “reações à vacina”, a esmagadora maioria são benignos, como dor local transitória ou inchaço no local da vacina. Pode também haver reações sistémicas como a febre, dores de cabeça ou mau estar, mas tudo isto é quase sempre transitório e não causa preocupação. As reações alérgicas sérias são extremamente raras. Se uma criança teve uma reação grave, isso só por si não é motivo para interromper o cumprimento do calendário vacinal. Após consulta com o médico da criança, as futuras doses podem ser administradas em meio hospitalar sob condições de segurança e controlo.

A opção pela vacina tríplice em 1987 (ver tabela), veio simplificar o calendário vacinal substituindo 3 injeções por uma só, sem que a proteção induzida contra sarampo, papeira ou rubéola seja afetada. Vários estudos sobre a proteção induzida pela vacina VASPR comprovaram que esta é eficaz, duradoura e tão ou mais segura como as três vacinas administradas separadamente. A decisão de adotar a VASPR não foi tomada sem aturados estudos sobre o assunto em vários países do mundo.

Se numa escola há crianças não vacinadas, todas as outras correm riscos desnecessários.

Apesar de a vacina ser bastante eficaz (em cada 100 vacinados espera-se que pelo menos 95 fiquem protegidos), há alguns vacinados cujo sistema imunitário não responde adequadamente à vacina ou, se responde, a proteção adquirida não dura muito tempo. Diz-se que têm falências vacinais. Para minimizar estas falências recomendam-se duas doses, uma vez que a probabilidade de falência é muito menor. Apesar desta recomendação, é importante compreender que, num país onde a circulação do sarampo foi interrompida, como é o caso de Portugal desde 2000, as pessoas que foram vacinadas há muitos anos nunca mais tiveram um ‘encontro’ com o vírus do sarampo. Nestas circunstâncias, a concentração de anticorpos protetores que circula no sangue vai decaindo lentamente ao longo dos anos. Não existe estímulo para aumentar a concentração de anticorpos. Se uma pessoa com muito baixa concentração de anticorpos for infetada com uma dose elevada de vírus, é possível que o sistema imunitário não seja suficientemente rápido a responder. Esta pessoa pode não evitar a multiplicação do vírus e a sua entrada na circulação, provocando doença. A dose de vírus recebida é importante, por isso, os profissionais de saúde sujeitos a contacto repetitivo ou prolongado com doentes com sarampo estão mais sujeitos a este tipo de situações. A boa notícia é que se o novo infetado estava vacinado e é saudável, terá um sarampo mais benigno do que se não estivesse vacinado.

Porque razão tantas pessoas contraem a doença apesar de estarem devidamente vacinadas? É verdade! Por vezes, o número de vacinados entre os doentes parece-nos demasiado alto. Vou tentar explicar a razão usando números. Pensemos em 1000 pessoas concentradas numa pequena área geográfica. Cerca de 950 (95%) estarão vacinadas (esperemos!). Uma pessoa recentemente infetada no estrangeiro chega a esta comunidade e move-se propagando o vírus, o qual é altamente contagioso. Das 50 pessoas que não tinham proteção suponhamos que 40 são infetadas e adoecem. Além disso, das 950 vacinadas, cerca de 29 pessoas (3%) serão infetadas porque a vacina é apenas 97% eficaz. Quando fazemos o balanço final temos 40 doentes não vacinados e 29 doentes vacinados! Evidentemente, todos se surpreendem porque 29 parece muito alto, mas é o resultado de aplicar uma pequena percentagem (3%) a um número muito grande de pessoas.

Se numa escola há crianças não vacinadas, todas as outras correm riscos desnecessários. As crianças não vacinadas colocam dois problemas. Primeiro, ficam em maior risco de contrair doenças evitáveis porque os agentes causadores das mesmas doenças continuam a circular (embora muito menos do que antes da vacinação); e, quem não é vacinado, tem um risco muito acrescido de contrair a doença. Segundo, as crianças não vacinadas constituem elos na cadeia de transmissão da doença e por isso contribuem para que não consigamos blindar a comunidade contra os surtos de doenças infecciosas. Se esta atitude se generalizar, torna-se impossível eliminar doenças infecciosas. As crianças não vacinadas, se existirem em quantidade suficiente, podem ser suficientes para alimentar a cadeia de transmissão sustentadamente, por outras palavras, originar uma epidemia.

Se somos multados por não usar cinto de segurança, por maioria de razão devíamos ser multados por conscientemente sermos veículos de transmissão de doenças infecciosas.

Uma criança vacinada não contrai doença a partir de uma não-vacinada. Nesse sentido, as não-vacinadas não são uma ameaça para as vacinadas. Contudo, há que ter em atenção que (i) a eficácia das vacinas é em geral um pouco inferior a 100%; que (ii) há crianças e adultos que não são vacinados por contraindicação médica e, finalmente, que (iii) os bebés com menos de 12 meses de idade ainda não puderam ser vacinados. Todas estas crianças são ameaçadas pela presença de crianças não-vacinadas.

Recordo que em Portugal, além da varíola, já eliminámos a poliomielite. Temos também zero casos de difteria e tétano (contudo, pode haver difteria assintomática) e, desde 2000, não tínhamos sarampo, exceto o importado. Somos um dos países da Europa mais avançados neste aspeto e isso graças à grande adesão da população portuguesa à vacinação. A quebra desta adesão trará inevitavelmente o regresso de epidemias destas doenças.

Na minha opinião a vacina do sarampo e de mais algumas doenças (por exemplo rubéola, parotidite, tétano, difteria, tosse convulsa) devia ser obrigatória. Uma das funções do Estado é defender o interesse geral da população contra pequenos números de pessoas que, por qualquer razão, ignoram o impacto negativo que o seu comportamento tem sobre toda a sociedade. É por essa razão – o bem comum - que o Estado pune quem circula contramão na estrada. Penso que as creches, onde o ensino não é obrigatório, deviam defender as suas crianças impedindo a entrada de crianças sem boletim de vacinação em dia. Nas escolas onde o ensino é obrigatório, o boletim devia ser cuidadosamente visto e, se em incumprimento, os pais devem receber um prazo curto para o atualizar. Se não o fizerem, devem ser suspensos benefícios sociais a estes pais que utilizem dinheiros públicos e deve haver coimas significativas. Se somos multados por não usar cinto de segurança, por maioria de razão devíamos ser multados por conscientemente sermos veículos de transmissão de doenças infecciosas.