A pandemia de covid-19 impediu, em 2020 e 2021, que se cumprisse a tradição de queimar o Judas durante um espetáculo comunitário de teatro de rua, mas este ano os males acumulados não escaparão ao fogo purificador.

“Vamos queimar todos os vírus. O que ocupou mais tempo foi o vírus da covid-19 e depois apareceu o vírus da guerra. Mas não podemos esquecer muitos outros vírus que nos acompanharam, como a corrupção e a violência”, avança à agência Lusa o ator Pompeu José, que é um dos coordenadores do espetáculo promovido pela Associação Cultural e Recreativa de Tondela (ACERT).

O receio de que, devido à pandemia, fossem poucos os que respondessem à convocatória para a Fábrica da Queima não se concretizou e, por estes dias, o edifício e o jardim da ACERT enchem-se com os mais de 200 voluntários que se dividem e vão rodando pelas oficinas de movimento, interpretação, música e construção.

“Havia uma avidez muito grande em participarem. É uma data marcante do calendário de Tondela e é muito gratificante vermos que nada morreu. Esteve hibernado, mas não morreu”, realça Pompeu José.

Foi o caso de Vera Cardoso que, aos 16 anos, finalmente conseguiu concretizar o seu desejo de participar nas oficinas da queima do Judas, que se destinam a maiores de 14 anos.

“Como faço anos em novembro, não pude participar em 2019. Depois veio a pandemia e durante dois anos não houve Judas. Este ano fiquei muito, muito, feliz. Já imaginava que isto fosse ser incrível, mas está a superar as minhas expectativas”, conta a jovem.

Já para Mariana Santos, de 33 anos, é o retomar de algo que lhe deixou muitas memórias boas. Começou a participar na queima do Judas “com 12 ou 13 anos”, parou desde que teve as suas duas filhas e agora regressou, por causa da mais velha, Maria, que toca flauta transversal.

O “bichinho” passou da mãe para a filha mais velha e, daqui a uns anos, Mariana acredita que também a mais nova, Matilde, andará nestas andanças.

Enquanto Maria toca, Mariana canta, num grupo de cerca de 30 pessoas, ao qual o coordenador musical, Miguel Cardoso, vai dando as orientações, com o cabo de uma pá do lixo a servir de batuta.

“O que vão aqui fazer tem 95% de hipóteses de ser alterado ao vivo”, alerta Miguel Cardoso, pedindo-lhes que, no sábado à noite, não olhem para o espetáculo, mas sim “para a pessoa mais bonita do agrupamento musical”.

Tomás Gamboa, de 17 anos, é do concelho vizinho de Viseu e, por saber que “malta conhecida” ia participar no espetáculo, decidiu fazer algo de diferente nestas férias da Páscoa.

“É uma experiência em que posso conhecer outros artistas e músicos, trocar ideias com eles e enriquecer o meu conhecimento”, justifica o jovem, que toca bateria e percussão e é estudante da associação JOBRA.

Também Verónica Ribafeita, de 19 anos, estudante da Escola Superior de Dança, sonha com um futuro na vida artística.

Durante três anos, participou nas várias oficinas da Fábrica da Queima, mas era a do movimento que mais lhe agradava. Este ano, foi desafiada a fazer uma pequena coreografia para o espetáculo e a ajudar o coreógrafo Ruy Malheiro nos ensaios.

“Sinto-me muito bem em poder ajudar e demonstrar aquilo que eu também não sabia que conseguia fazer”, afirma à Lusa.

Pompeu José congratula-se por tanta gente querer viver estes seis dias intensos “a ter o prazer de construir coisas bonitas para depois lhes pegar fogo” no sábado.

A intenção da ACERT é envolver pessoas de várias profissões e faixas etárias e, por isso, as oficinas decorrem não só de manhã e à tarde, mas também à noite.

“Tentamos não perder ninguém e não transformar isto só num acontecimento dos jovens que estão de férias na Páscoa”, justifica.

Com o avançar da semana, e com recurso a uma técnica oriental, os desenhos vão ganhando forma em estruturas feitas em vime e cobertas com papel.

“Os desenhos estão feitos, alguém lança as formas e depois as pessoas vão fazendo. Nunca sai mesmo, mesmo, igual ao que tínhamos desenhado, mas é este processo de partilha que importa”, considera Pompeu José.

Este ano, o boneco que servirá para expurgar todos os males terá dois lados: “uma espécie de aldeia feliz, do mundo ideal, em que toda a gente está muito bem, até que as coisas começam a piorar, e, nas costas, anuncia-se o monstro, uma espécie de salamandra sorridente, que está a gerar no seu ventre todo o mal”.

Os molhos de vime espalhados no chão e a carrinha cheia de rama de eucalipto que será usada para encher o interior do monstro deixam antever que este será queimado sem dó, com muito fogo e fumo.

Mas, como sublinha Pompeu José, “os males acumulados estes três anos também são muitos”.

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