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Mais de 15 milhões de pessoas em todo o mundo vivem sem nacionalidade. São conhecidas como apátridas — pessoas cuja nacionalidade não pertence legalmente a nenhum país e que, por isso, muitas vezes veem negados direitos básicos como votar, trabalhar, estudar ou viajar.

Uma delas é Christiana Bukalo, nascida e criada na Alemanha, mas sem o reconhecimento do Estado alemão como cidadã. Durante anos, tentou compreender o que significava viver nessa condição e descobriu um enorme vazio de informação, tanto entre as pessoas afetadas como nas instituições que deveriam protegê-las.

Dessa procura nasceu a Statefree, uma plataforma que pretende dar voz e visibilidade às pessoas apátridas, promovendo o diálogo entre comunidades, investigadores e políticos. Hoje, o projeto conta com uma equipa internacional e tem contribuído para que a Alemanha comece finalmente a incluir o tema na sua agenda política.

Na Web Summit, Christiana Bukalo falou com o 24notícias sobre o que é viver sem Estado, a importância de criar espaços de representação e o que o resto do mundo precisa de aprender sobre a apatridia.

Uma das razões que a levou a fundar a Statefree foi a sua própria experiência de crescer sem nacionalidade na Alemanha. De que forma é que isso moldou a sua identidade e o seu sentido de pertença?

Acho que é importante separar identidade de pertença. Antes de começar a trabalhar na Statefree, eu não queria que a apatridia fizesse parte da minha identidade. Evitava completamente o tema. Nunca falávamos sobre isso em casa, nem com os meus pais nem com as minhas irmãs. Queria concentrar-me apenas no que estava sob o meu controlo.

Desde que comecei este trabalho percebi que a apatridia sempre fez parte de quem sou, eu é que não deixava que fizesse. Agora percebo que ser apátrida é parte da minha identidade. Sinto-me uma pessoa sem Estado. Às vezes é uma sensação neutra, outras vezes dói. Assume diferentes formas, mas está sempre lá.

Quanto ao sentimento de pertença, a nível pessoal sinto-me muito ligada à minha comunidade. Nasci em Munique, cresci perto do centro da cidade, e tenho um forte sentimento de pertença às pessoas, nomeadamente a minha família e amigos.

Quando se trata do Estado, é diferente. Sinto que pertenço à Alemanha, mas a Alemanha não reconhece esse sentimento. É uma rua de sentido único.

O que é que faltava nos sistemas de apoio existentes que a levou a criar a Statefree?

Em primeiro lugar, não existia nenhuma instituição à qual uma pessoa apátrida pudesse recorrer.

Nasci sem nacionalidade e só percebi o que isso realmente significava aos 25 anos. Nunca ninguém me explicou o que era a apatridia, quais eram os meus direitos, ou quantas pessoas viviam na mesma situação. Foi só nessa altura que descobri que há mais de 15 milhões de apátridas no mundo e mais de 100 mil só na Alemanha.

Faltava transparência, informação e, sobretudo, uma instituição que assumisse responsabilidade. Por isso, quando fundámos a Statefree, começámos por aí: criar transparência. Usámos a internet para lançar o primeiro fórum online para pessoas apátridas, onde podiam partilhar experiências e aceder a informação.

Disse que percebeu a sua situação aos 25 anos. Houve algum momento que tenha sido um “despertar”?

Sim, houve e foi bastante desconfortável.

A primeira vez que ouvi o termo apátrida foi aos 18 anos, quando recebi o meu primeiro documento de viagem. No papel vinha escrito “apátrida”. Assim que li a palavra, percebi imediatamente o que era, embora nunca ninguém me tivesse explicado.

Mais tarde, quando quis fazer a minha primeira viagem, para Marrocos, comecei a pesquisar se poderia entrar no país. Ninguém sabia responder, nem a embaixada marroquina, nem as autoridades locais alemãs.

Decidi viajar, porque as pessoas alemãs podiam entrar no país. Quando cheguei ao aeroporto de Marraquexe, disseram-me que não podia entrar e que já tinham reservado o voo de regresso. Passei quase 20 horas à espera na porta de embarque, até regressar à Alemanha e nem sequer para Munique, mas para outra cidade.

Foi um choque. Percebi que, por mais alemã que me sentisse, continuava sem Estado e sem qualquer apoio.

Christiana Bukalo na Web Summit
Christiana Bukalo na Web Summit créditos: Pedro Santos | MadreMedia

A Statefree é também um projeto de auto-representação. Que desafios enfrentou ao tentar que as instituições levassem as pessoas apátridas a sério como especialistas das suas próprias experiências?

Esse continua a ser um dos maiores desafios.

Os decisores políticos dizem que servem o país, mas isso devia significar servir todas as pessoas que vivem nele, incluindo as apátridas.

No meu caso, há também uma dimensão interseccional. Sou uma mulher negra, nascida na Alemanha, e cresci numa sociedade maioritariamente branca. Isso desafia certas ideias sobre o que significa “ser alemão”. Estou habituada a ser subestimada, a que duvidem da minha competência, a que não me vejam como especialista.

Mas, curiosamente, isso também me fortaleceu. Saber como é ser subestimada ajuda-me a lidar com o processo e, através da minha presença, a mostrar que outras pessoas apátridas também são especialistas nas suas próprias realidades.

Nas reuniões com políticos, percebemos muitas vezes que eles próprios não sabem o que é a apatridia, porque andámos todos na mesma escola e nunca nos ensinaram. Por isso, o nosso papel é partilhar factos, manter o diálogo num nível elevado e convidá-los a fazer o mesmo. Alguns aceitam, outros demoram, mas continuamos a insistir.

A verdade é que o nosso trabalho fala por si. Somos profissionais, baseamo-nos em factos, e temos uma comunidade informada que conhece este tema melhor do que qualquer instituição.

A Alemanha começou recentemente a incluir a apatridia na sua agenda política, graças ao trabalho da Statefree. Como tem sido esse processo de diálogo com os legisladores?

Tem sido um processo desafiante, mas muito enriquecedor.

Estou genuinamente grata a todos os políticos com quem temos colaborado. Há pessoas que se preocupam realmente em criar políticas que protejam quem precisa de acesso a direitos.

Quando começámos, eu própria acreditava que bastava falar com um legislador importante para que as coisas mudassem. Depois percebi que o Estado é feito de pessoas, e que todas têm papéis diferentes, dúvidas, receios e responsabilidades.

O segredo é tratar todos com respeito e encontrar um objetivo comum, definindo juntos os passos para o alcançar. Mesmo com perspetivas diferentes, é possível avançar.

Para quem tem cidadania, o que gostaria que compreendessem sobre quem não a tem?

Gostava que percebessem que a cidadania é um direito, mas também uma responsabilidade.

Todos devíamos saber o que significa ser apátrida e o que significa ter, ou perder, uma nacionalidade. A cidadania não é nossa. Pertence ao Estado. E, é essencial que conheçamos os nossos direitos.

Se conhecerem alguém apátrida, conversem com essa pessoa, partilhem informação, e lembrem-se de que a apatridia não define tudo o que ela é. É apenas uma parte. No fim, somos todos humanos e todos devíamos ter o direito a ter direitos.

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