A manhã desta terça-feira, no mundo do futebol, foi de choque. Com os holofotes a incidirem na estreia de Lionel Messi naquele que é o último Campeonato do Mundo da carreira do argentino, vencedor de sete Bolas de Ouro, foi a Arábia Saudita, com uma remontada, o centro das atenções. A pergunta impõe-se, como conseguiu a nação árabe, 51ª classificada do ranking FIFA, a segunda classificação mais baixa das seleções presentes no Mundial, apenas uns lugares acima do Gana (60.º), com uma equipa avaliada em 25 milhões de euros, vencer a Argentina, terceira classificada do ranking FIFA, campeã em título da Copa América, uma das seleções no restrito lote de candidatos a vencer a competição com um leque de jogadores avaliado em 645 milhões de euros?

Os Green Falcons [Falcões Verdes], como são conhecidos, sabiam da discrepância qualitativa, não só para a Argentina, como em relação à esmagadora maioria das seleções que ia estar presente no Qatar. Por isso, decidiram preparar o torneio de forma diferente.

O primeiro passo foi mudar de selecionador. Juan Antonio Pizzi, técnico espanhol que orientou o conjunto árabe no Mundial de 2018, que decorreu na Rússia, deixou o comando da equipa depois do torneio, no qual a Arábia Saudita sofreu uma humilhante derrota no jogo de abertura com a equipa da casa (5-0). Também nessa edição do Campeonato do Mundo, o conjunto falhou em classificar-se para a fase eliminar e regressou a casa com uma vitória diante do Egito de Mohamed Salah na última jornada da fase de grupos como ponto de honra. Para o lugar de Pizzi entrou o francês Hervé Renard, vencedor da Taça das Nações Africanas em duas ocasiões, a primeira com a Zâmbia, em 2012, e a segunda com a Costa do Marfim, em 2015, e o treinador que conseguiu qualificar Marrocos para o primeiro Mundial no século XXI, em 2018, competição em que a equipa africana não participava desde o Campeonato do Mundo de 1998, que decorreu em França.

O segundo passo passou por garantir um conjunto de jogadores capazes de competir com os melhores do mundo. Com a totalidade dos jogadores a competir na liga doméstica, Renard socorreu-se do sucesso a nível continental do Al Hilal que venceu a Liga dos Campeões Asiática em 2019 e 2021 e que nos últimos anos tem incorporado treinadores de topo, como é o caso dos portugueses Jorge Jesus e Leonardo Jardim, e jogadores internacionais como Ighalo, André Carrillo, Moussa Marega, Gomis ou Giovinco, alguns deles com passagens pelas chamadas 'top 5', as principais ligas do mundo. No total, o Al Hilal contribui com 12 jogadores para a lista de convocados da seleção árabe para a ida ao Qatar.

A par de fazer do Al Hilal a espinha dorsal da equipa — no jogo com a Argentina oito jogadores deste clube jogaram, pelo menos 60 minutos —, a Associação de Futebol da Arábia Saudita criou um programa de preparação para o Mundial dividido em três etapas. A primeira decorreu entre o dia 31 de maio e o dia 9 de junho, em Espanha, na cidade de Alicante, onde jogou amigáveis contra a Colômbia e a Venezuela. A segunda, entre os dias 17 e 27 de setembro, envolveu jogos amigáveis frente ao Equador, seleção também qualificada para o Mundial e que, inclusive, derrotou o anfitrião no jogo de abertura, e com os Estados Unidos da América, equipa também presente no Qatar.

Mas o derradeiro momento aconteceu em outubro. A liga saudita suspendeu as competições no dia 16 e, dois dias depois, jogadores e equipa técnica aterraram em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos, para a última fase do programa de preparação. Desde o dia 22 de outubro até ao dia 16 de novembro, a Arábia Saudita jogou seis amigáveis. Os adversários foram: Macedónia do Norte, Albânia, Honduras, Islândia, Panamá e Croácia.

Para haver um termo de comparação, olhemos para o calendário dos cinco primeiros classificados do ranking FIFA. A Argentina disputou apenas um amigável em novembro, antes do Mundial, assim como a Bélgica e Inglaterra. O Brasil disputou o último amigável antes do Mundial no final de setembro. O último jogo de França antes de chegar ao Qatar foi também no final do mês de setembro para a Liga das Nações.

A única equipa a adotar um modelo de estágio e preparação semelhante, no que diz respeito ao número de jogos, foi o Qatar que, desde outubro, disputou cinco encontros amigáveis. No entanto, os dois casos tiveram resultados bem diferentes: o Qatar tornou-se na primeira seleção da história a perder o jogo inaugural do torneio que organiza, já a Arábia Saudita surpreendeu todos ao vencer a Argentina por 2-1, depois de, ao intervalo, estar a perder por 0-1.

Pela demonstração das capacidades no relvado, hoje, Hervé Renard e a Associação de Futebol da Arábia Saudita conseguiram criar uma equipa capaz de acreditar e que sabe o que fazer em campo, o que nem sempre é possível no contexto de seleção. Por vezes, por muito talentosos e de provas dadas que sejam os elementos, nem sempre existe uma ligação. Nesta seleção, aliviada pela inexistência de expectativas, o trabalho de pré-Mundial manifesta-se, sobretudo na capacidade da equipa em saber sofrer defensivamente e esperar pela oportunidade para marcar golo e contrariar as essas mesmas expectativas.

No total dos 10 jogos de preparação, a Arábia Saudita venceu dois (Macedónia do Norte e Islândia), empatou cinco (Equador, EUA, Albânia, Honduras e Panamá) e perdeu três (Colômbia, Venezuela e Croácia). No que concerne a questões do primeiro terço do terreno, sofreu apenas cinco golos. No encontro com a Argentina essa capacidade da equipa defender em conjunto foi evidente, tendo acabado por sobressair também a capacidade de em contra-ataques diretos e fluídos ter feito dois golos, algo que não conseguiu em nenhum dos jogos que antecederam o Campeonato do Mundo.

As estatísticas, no final, contam precisamente isso. Posse de bola 69% para a Argentina, 31% para a Arábia Saudita. Remates à baliza, 6 para a Argentina, 2 para a Arábia Saudita. Remates não enquadrados com a baliza, 6 para a Argentina, 0 para a Arábia Saudita. Total de passes, 593 para a Argentina, 267 para a Arábia Saudita.

Não deixa de ser curioso que Renard, na conferência de antevisão ao encontro tivesse dito que a seleção saudita "adora" quando se esquecem dela. "Gostamos que nos considerem a equipa mais pequena do grupo. Não nos importa e está justificado pelo ranking da FIFA. Não acredito que passemos à próxima fase, mas estamos aqui para lutar contra os prognósticos. Acontecem surpresas nos Mundiais e é essa a mentalidade que temos", disse.

Vinte e quatro horas depois, as palavras foram estas: "Sinto-me leve com esta vitória. Felicitações a estes fantásticos jogadores. Felicito-os sempre e já o faço há três anos. Hoje, para resumir, diria que os astros se alinharam todos para nós. É uma vitória memorável, que vai ficar para a história, e isso é o que interessa, mas temos de olhar para o futuro, pois ainda temos dois jogos muito difíceis. Não podemos esquecer que a Argentina continua a ser uma equipa fantástica, que estava há 36 jogos sem perder. São os campeões em título da Copa América, com grandes jogadores, mas é o futebol, é assim. Por vezes é a loucura no mundo futebolístico."

Agora será inevitável: todos os os olhos vão estar em cima da Arábia Saudita, que pode conseguir aquilo que só conseguiu em 1994, nos EUA, na única ocasião em que passou a fase de grupos de um Mundial e chegou aos oitavos-de-final, fase em que caiu aos pés da Suécia (3-1). Para esta nova fase, a formação árabe, cujo país é o único com fronteiras terrestres com o Qatar, terá um reforço que poucas seleções terão: apoio em massa nos estádios para vencer o grupo C, com Argentina, Polónia e México, um grupo onde ninguém esperava que pudesse ter qualquer hipótese de passar.