Quando o SAPO24 entrou no número 16 da Presnenskiy Val, no centro de Moscovo, o piso de cima do Tohh estava ainda a afinar-se. Os The Gift faziam o soundcheck para o seu segundo concerto na Rússia em menos de uma semana.

Faltavam menos de três horas para o concerto e de entre os irmãos John e Nuno Gonçalves e Miguel Ribeiro, os três aficionados por futebol e fiéis seguidores da seleção, é o primeiro que desce do palco para nos receber, para falar de bola e de como é que isto tudo começou.

Desde 2004, quando Portugal recebeu o Campeonato da Europa, que não falham a presença numa fase final. Aliás, diz John, “não falhámos europeus, não falhámos mundiais e não falhámos muitos jogos! Falhámos o Portugal-Costa do Marfim [Mundial 2010] porque a Air France lixou-nos as viagens. Estávamos em Toronto, mudámos de avião em Portugal, tudo na boa, só que atrasou três horas e não conseguimos apanhar a ligação. E, tirando esse, falhámos [o jogo com] a Croácia no Euro 2016, porque tínhamos um concerto nesse dia. Até ao [jogo de apuramento de] 3.ºe 4.º lugar no [Mundial] de 2006 fomos!".

Para a banda de Alcobaça, de dois em dois anos o calendário de verão é pautado pelas competições que a equipa das Quinas disputa. "Quando marcamos os espetáculos, marcamos com o calendário da Seleção ao lado. Normalmente, não marcamos concertos nos dias dos primeiros três jogos", confessa o baixista dos The Gift.

Na Rússia só não estarão presentes para apoiar a seleção no jogo com o Irão (dia 25, em Saransk). Um concerto dia 22, em Vila Real, obriga um regresso a Portugal. Mas caso o apuramento se confirme, a equipa das quinas pode contar com o apoio da banda no ‘mata mata’. Até porque as contas estão todas feitas, assumem: "Se Portugal for primeiro; se a Croácia empatar com a Argentina e for primeira; se o México ganhar um dos próximos dois jogos e for primeiro... Portugal vai à final".

A convicção de quem acompanha a seleção há quase 15 anos é grande, sempre. Mas nem por isso se deixa de ter os pés no chão. "Eu lembro-me perfeitamente que em 2006 entrámos no Portugal-Irão a tremer, [mas] acho que tremer não é mau. Quando a gente diz que não há nenhum jogo fácil, todos nós sabemos disso, mas no Mundial isso vai a níveis superlativos, não há mesmo nenhum jogo fácil", diz John.

A França que os marcou

Quatro Europeus e quatro Mundiais depois, ter de escolher um momento podia ser difícil. Mas não. É impossível ser outro que não o golo do Éder frente à França, naquela mítica final do dia 10 de julho de 2016. Até porque tal representava uma vingança.

"Nós somos de uma geração que viu o Chalana perder [a meia-final do Euro 1984, em França]. Eu tinha 10 anos e o meu irmão tinha 7, e lembramo-nos perfeitamente do dia em que Portugal perdeu a semi-final no prolongamento, sabemos tudo desse jogo. Esse jogo marcou essa existência como adeptos de futebol numa série de coisas, e se calhar, no limite, até marcou o que são os The Gift porque foi terrível aquela prepotência, aquele fado que nós constantemente trilhávamos e vinha ter connosco."

O território francês foi durante largos anos um dos destinos mais comuns dos emigrantes portugueses, que aos milhões se mudaram para França. E se é verdade que os mais novos terão na memória um sorriso, consequência daquela vitória no Stade de France, para os que nasceram no século passado é certamente difícil esquecer o que aconteceu nas meias-finais dos Europeus de 1984 e 2000 e nas ‘meias’ do Mundial de 2006.

"Ganhar em França, na final do Europeu, portanto vingando 84, em Paris, com franceses que nos diziam que íamos levar quatro ou cinco... Acho que não me lembro de nada menos do que três, não me lembro de ninguém dizer 'vamos ganhar 1-0'... Obviamente que isso não tem palavras. Aquelas pessoas que ali estavam não tinham palavras, as pessoas que encontrámos no metro, a ir já para os campos Elísios — e que não foram ao futebol porque não tinham dinheiro para o bilhete ou não arranjaram bilhete — diziam que aquele era o dia mais feliz desde emigraram...", conta-nos John.

E prossegue, afirmando que, para si, o Europeu de 2016 foi um caso em que o apoio à seleção superou-se, não só por ser em França, mas por ter acontecido de forma mais organizada. "Em 2016 tínhamos uma claque bem organizada com a malta do Porto. Acho que não é preciso uma claque. São precisos líderes com megafone que orientem os cânticos, acho que é o suficiente para eles lá dentro sentirem porque obviamente eles estão longe", lembrando, contudo que, neste Mundial russo, ao contrário do Euro 2016 francês, os portugueses não serão "tantos quanto isso", pelo que "o ambiente não é igual", apesar de existirem "muita gente com a camisola de Portugal", nomeadamente "russos, japoneses e muitos asiáticos que vêm ver o Ronaldo", diz.

Ronaldo a marcar com Bowie a tocar

Aquela final de 2016 é, para o baixista dos The Gift, não só o retrato de uma seleção que tinha já traçado um caminho que inevitavelmente os iria levar ao título, mas também de um país.

"Aquela noite… Aquilo foi demasiado importante para quem gosta de futebol. Quem não gosta de futebol acha que eu estou a ser ridículo. Mas para quem gosta de futebol, aquilo que se viveu foi algo de histórico e de mágico. O que o Éder fez, o que conseguimos, o que sofremos, o Ronaldo sair antes...", lembrando depois que essa vitória teve também algo de um "Portugal moderno, que é um Portugal de sofrimento - porque o Portugal moderno não é só facilidade, é um Portugal que sofre, mas que atinge", conclui, lembrando uma frase... espanhola.

"Havia uma frase em Espanha, que repetiram até à exaustão, não sei se foi no primeiro ou no segundo europeu ou no Mundial, que era 'Si, podemos'. Nada a ver com o partido [risos]. Acho que em Portugal aconteceu um bocado isso, 'si, podemos'. Claro que podemos! Vamos ser claros, o Ronaldo está neste momento num patamar que lhe fazia falta. Porque o Pelé ganhou, o Maradona ganhou e ele não ganhou 'nada', nem fez nada nos outros mundiais. Porque três golos em três mundiais é muito pouco para um jogador como o Ronaldo. E agora faz três num jogo só [contra a Espanha, no primeiro jogo do Mundial]”.

Paramos no hat-trick de Ronaldo e pedimos uma música para acompanhar o replay dos lances. "Escolhia a 'Heroes' do Bowie [para o jogo] frente à Espanha. É um clássico, mas eu não quero nada de novo. Aquilo foi demasiado elevado, demasiado épico. Acho que vamos perceber isso mais tarde. A 'Heroes' acompanha bem porque no fundo tem aquela vertente de herói", diz.

créditos: The Gift ao vivo em Moscovo

Mas Ronaldo é "só" um. Ajuda a que a expetativa seja alta, é certo, mas mais uma vez John volta a trazer-nos de volta à terra. “A expetativa é alta. Agora, continuo a achar que pode haver um detalhe que nos lixe a vida. Porque é Mundial, mata-mata, e (...) há ali pormenores na defesa que nos podem tramar a vida. Portugal pode marcar a qualquer equipa, e pode marcar várias vezes a qualquer equipa. Agora, eu acho muito difícil Portugal não sofrer golos em todos os jogos", confidencia o baixista dos The Gift.

"Nós somos muito supersticiosos, é uma coisa ridícula às vezes"

Quando se segue há tantos anos e com tanta convicção uma equipa ou uma seleção, é normal que entre esse grupo de adeptos nasçam rituais, manias e superstições. Os The Gift param nesta última. "Nós somos as pessoas mais supersticiosas com o futebol”, confessa John Gonçalves.

“Estou a tentar não ter mais", brinca.

E quais são eles? "Cada um tem um bandeira e uma a camisola", conta. Depois há ainda "uma bandeira da banda".

Os rituais variam, claro. O baixista, por exemplo, usa sempre duas camisolas, que vai alternando. Uma delas é branca, com o número 7 de Cristiano Ronaldo nas costas, e a outra, vermelha, do Bernardo Silva. “Foi a que eu usei [no jogo] com a Espanha”, em Sóchi, conta.

Mas a história do quarto n.º 17 de um hotel na Lousã é o retrato perfeito de uma banda que leva os jogos da Seleção "a sério" e onde uma pitada de irracionalidade - como em qualquer amante de futebol - tem sempre lugar.

"Nós nesse jogo [Croácia-Portugal, Euro 2016] estávamos a tocar na Lousã e estávamos num quarto, num hotel modesto, era o número 17. Fomos todos para esse quarto [ver o jogo] e o Quaresma marcou no final". OK, tudo certo até aqui. Prossegue, John. "Nós este ano temos um espetáculo em Coimbra no dia 6 de julho, quando Portugal pode jogar os quartos [de final do Mundial] com qualquer outra equipa e nós, muito provavelmente, e já falámos disso ontem, vamos para a Lousã para o quarto n.º 17. Todos! Todos os [membros da equipa dos] The Gift, não são só estas nove pessoas que estão aqui, são os 17 ou 18 da equipa que estavam naquele quarto. Os mesmos, se for caso disso, vamos alugar aquele quarto. Nós atuamos às dez da noite e o jogo de Portugal poderá ser às três. Portanto dá para a gente fazer som antes, seguir para a Lousã e voltar para Coimbra. E vamos ver o jogo para aquele quartinho. Portanto, este é o nível de superstição que nós temos. Nós somos muito supersticiosos, é uma coisa ridícula às vezes". Com o futebol não se brinca, como se costuma dizer.

“O nosso sonho é a douradinha, é o Ronaldo pegar nela dar um beijinho e levantar”

Com tanta paixão pela equipa das Quinas, a Seleção nunca os inspirou a compor um tema? "Temos uma música de apoio à seleção. Somos muito da bancada, somos aqueles adeptos que não gostamos das pessoas que vêm à mama de qualquer marca, não gostamos das pessoas que vêm ao Mundial e ao Europeu ver o jogo porque é engraçado e é giro, e estão-se a cagar porque a seguir perdem e vão-se embora. Estamos cá sempre, estamos aqui para ganhar sempre. Nós tínhamos uma canção que começámos a cantar que se chama 'Esta Glória', acho que foi o Nuno [Gonçalves] que fez, e que nasceu da bancada", diz, explicando que entre os elementos da banda não existe “aquela coisa de querer fazer um hino para a seleção porque os The Gift também são mais sentimentais, também são mais artísticos" e "aqui não há muito artístico é uma coisa mais de massa humana, então isso fez-se. Por acaso deu sorte", diz, entre sorrisos.

E este acompanhamento da Seleção, é para continuar? John é perentório: se Portugal vencer este Campeonato do Mundo, acaba-se tudo. "Não vamos a mais nenhum. Acabou. Para nós acabou, porque a nossa vida começa a ficar... O nosso sonho é a douradinha, é o Ronaldo pegar nela dar um beijinho e levantar. A partir daí eles têm filhos, já começa a ser um bocado complicado. Quando é namoradas e mulheres tudo bem, agora filhos, eles têm filhos… É complicado”, confessa.

"Eu acho que nunca conseguiremos ser campeões do mundo a eliminar 'potências' até chegar à final. Portanto, se conseguirmos este ano fazer uma coisa que fizemos no Euro e andar aqui com Bélgicas, com Croácias, com Rússias e Uruguais, tudo bem, talvez seja possível”, diz, de fisgada.

Duas horas e meia depois subiram ao palco, num concerto intimista, com várias pessoas de cachecóis ao pescoço e camisolas da seleção vestidas que embalou ainda mais o público russo que ali estava para um par de horas de comunhão em que as músicas do novo álbum iam intercalando com os êxitos mais antigos da banda de Alcobaça.

Quando entre músicas se entoava por Portugal, já no encore, Sónia agarrou o microfone e disse “Let's win this fucking shit [Vamos lá ganhar esta merda]”. Sem poesias táticas, falou por todos nós.