Breaking.

Um aviso prévio ao leitor que dançará ao som de uma música imaginária ao ler as linhas que se seguem: por favor, não simplificar e não apelidar de breakdance, embora a raiz seja a mesma, aquilo que irá ler e ver.

Os puristas desta comunidade nascida na cultura hip-hop urbana, os B-Boys e as B-Girls, como se apresentam, chamam a si a razão deste batismo – breaking e não breakdancing —, que honra um significado mais artístico e mais cultural desta dança de estilo acrobático face à componente mais hollywoodesca, e por inerência, comercial, que emergiu das ruas de Nova Iorque nos anos 80 do século passado.

A estreia olímpica

Hoje e amanhã, em Paris, na Place de la Concorde, um dos cartazes turísticos da capital francesa, o breaking salta do submundo das ruas onde nasceu e cresceu ao som da internet e redes sociais e mostra-se ao mundo como disciplina olímpica depois de já ter dado uma mostra de si nos Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires, em 2018.

Esta combinação entre dança e desporto, expressão artística de movimento corporal, uma mistura de influências da ginástica artística, artes marciais, capoeira ou o sapateado de James Brown e Michael Jackson, fará em Paris2024 a estreia na competição dos cinco anéis.

Entrou no menu olímpico a reboque de outras modalidades que procuram cativar públicos mais jovens. O surf, skate e escalada foram igualmente servidos numa procura do Comité Olímpico Internacional por mais e novas audiências.

Mas, há sempre um mas, o breaking terá na capital francesa um fogacho de aparição, desaparece do mapa em Los Angeles2028 e nada se sabe ainda se reaparecerá em cena em Brisbane2032.

Nada que pareça preocupar quem faz desta dança vida. Porque ainda antes de entrar em competição já ganhou o campeonato da audiência global.

As batalhas à vez

Ao todo, 16 B-Boys e 16 B-Girls, de mais de 12 países, incluindo a portuguesa Vanessa Mariana, desfilam em Paris durante dois dias no mesmo palco por onde andou o skate.

Com vista para a Torre Eiffel, Champs-Elysées e Arco do Triunfo, disputam-se os quartos de final, meias-finais, batalha pelo bronze e pelo ouro. É este o calendário entre sexta-feira, B-Girls e sábado, B-Boys.

Som. Música. Movimento. Dança. Ação. O DJ, uma mão nos sintetizadores, a outra a aconchegar um dos headphones colado aos ouvidos, ao mesmo tempo que permite que os seus músculos ondulem, debita um repertório musical que só ele conhece e sabe.

O desconhecimento das escolhas do DJ é, talvez, o maior desafio para quem é obrigado a puxar da memória um arsenal de movimentos que casem com a música e não desagradem ao painel de nove juízes.

À vez, e em separado, num mano a mano, um par de B-Boys ou uma dupla de B-Girls entram numa batalha (battle) de duração de pouco mais de 45 segundos.

Os breakers dançam e saem de cena. À vez cedem o passo ao outro. O outro responde até cada um dançar três vezes (três throw downs).

Desafiam a gravidade nos movimentos executados. A flexibilidade é testada ao limite. E no que parece uma performance avulso e sem nexo, a reação momentânea à batida desconhecida está bem definida na imaginação e capacidade de improvisação de quem entra na batalha.

Os cinco passos

Início da batalha. Tudo começa num fixar de olhos de um B-Boy ou B-Girl para outro. Num quadrado, já em movimento, começam por mirar o adversário dando o sinal de “olha para mim, vê o que vou fazer”.

A introdução da battle começa, por norma, com movimentos em pé, saltos e mais saltos, o corpo a abanar, uso das mãos e braços e troca-pés à velocidade de um brasileiro bom de bola em fintas sucessivas a si mesmo numa cabine telefónica. É o Toprock.

Segue-se o Downrock. Quem está a dançar projeta agora o corpo no chão. Os pés quase tocam na cabeça num exercício de contorcionismo. O dorso desliza. Em pé, parecem zombies coordenados. Entra em cena o rodopiar. De costas, de cabeça no solo ou assente num só braço, mostram o poder dos músculos do pescoço e do antebraço.

A resposta seguinte acontece nos Powermoves, movimentos acrobáticos abrindo o palco aos saltos mortais, por exemplo. O corpo parece desconstruir-se entre golpes executados no solo.

Há ação, muito movimento rápido e também há espaço para uma paragem congelada ao longo destes eternos 45 segundos. São os Freezes. É o instante em que os breakers congelam o corpo depois de executar um movimento. Imagine recorrer ao comando da televisão para pausar as acrobacias.

A avaliação dos juízes

Na rua, são os “uaus” e a excitação vocal do público que determina o vencedor das batalhas, um julgamento feito por juízes improvisados.

São cinco os critérios de avaliação no breaking. Vocabulário, técnica, execução, originalidade e musicalidade. É este o alinhamento pelo que se cosem as notas dos juízes.

Vocabulário. É a quantidade de movimentos diferentes que os breakers conseguem meter durante a performance.

Técnica. Tudo assente nas skills. Na habilidade na complexidade no trabalho de pés, os powermoves e o freeze.

Execução. Controlo, rigor, precisão, clareza e limpeza de movimentos.

Originalidade. Tal como o nome diz, leva a avaliação dos juízes para a criatividade e inovação na dança.

Musicalidade. A forma como é combinada dança e os movimentos com a música improvisada pelo DJ.

A voz de quem entra na batalha

Vanessa Marina é a B-Girl portuguesa que entra hoje em ação. “O facto de ser muito original e musical distingue-me das minhas oponentes. Estar no meu perfeito estado de espírito vai-me ajudar a metê-las fora do jogo”, confessou ao SAPO24.

Qualificada através dos Olympic Qualifier Series, em Shangai (maio) e Budapeste (junho), assumidamente “calculista”, para Paris2024 dedicou a “mesma quantidade de tempo ao físico e à mente”, confessou a breaker de 32 anos, que representa o Porto Breaking Club.

Treinada por João Campos, a leiriense que estudou dança contemporânea e trabalhou com empregada de mesa num restaurante em Londres, cidade para onde emigrou em 2014, entra na competição acompanhada de uma curiosidade: treinou com uma das concorrentes e potencial adversária.

A partilha de horas de treino com a neerlandesa B-Girl India, campeã do mundo 2022 e europeia, em 2023, não lhe tira o sono nem esmorece objetivos. “Não nos influencia muito a nível de competição”, atestou.

Embora essa cumplicidade visual “possa ajudar” no (re)conhecimento dos movimentos uns dos outros, Vanessa é clara na leitura que faz. “Posso até fazer o mesmo movimento, mas como são com músicas diferentes, em sítios diferentes, nunca vou conseguir replicar o mesmo movimento mais do que uma vez. Nunca vai ser igual. Isso é o que possibilita treinarmos juntas e, ainda assim, conseguir surpreender na competição”, detalhou a B-Girl portuguesa.

Menno van Gorp (Países Baixos), uma das estrelas do breaking, tem na manga uma vastidão de truques prontos a demonstrar na Place de la Concorde. “Diria que 10”, confessou ao SAPO24 em entrevista, em Paris, no início de julho, durante a apresentação da programação do Eurosport para os Jogos Olímpicos Paris2024.

Dá nomes a alguns. A nomenclatura “pode descrever um movimento no local onde o criámos, ou talvez uma música”, explicou. “Tenho um movimento a que chamo zombie”, sorri. “Tenho um a que chamo de salto pincel. O corpo é como um pincel”, descreve enquanto explica com as mãos de forma tão rápida e complexa que ficamos à espera de ver em palco.

A dança e os movimentos começam a ser desenhados “na mente para depois ser aplicado fisicamente e tornar-se realidade”, explicou. “É importante este balanço entre a memória mental, visual e a memória muscular”, continuou. “Como não conhecemos a música temos de exercitar e muito a mente, muito rápido para me mover”, referiu.

A repetição é levada à quase exaustão. “Tenho um movimento que quero fazer, mas não consegui executá-lo. Sim, muitas vezes temos uma ideia e não funciona. Filmamos, revisitamos, tentamos 20 versões diferentes, semanas para desenvolver um tipo de movimento, para ver o que está e não está a funcionar”, descreve o B-Boy neerlandês.

O melhor movimento não existe no léxico de Menno van Gorp. Mas anda lá próximo. “É encontrar aquele jeito de me movimentar, marcar o teu estilo, fazer com que as pessoas vejam uma sombra e, em tudo o que faço, possam dizer: hey, isto é o Menno”, exclamou.

O breaker de 35 anos deixa a promessa para a last dance olímpica de sábado. “Mudei um pouco. Sempre me foquei mais na criatividade e na transição, mas agora treinei mais o lado explosivo e dinâmico e estou a ganhar mais em vocabulário. Agora procuro pensar mais no visual, como são vistas as coisas e trazer uma nova energia para o palco”, finalizou.