Tem 23 anos, completados a 31 de outubro, e é um dos grandes talentos britânicos do futebol — há quem diga que é um futuro Bola de Ouro. Mas nem sempre foi assim.
Durante a sua infância, Marcus Rashford foi, antes de mais, um de cinco filhos num contexto socioeconómico difícil nos subúrbios a sul de Manchester, no norte de Inglaterra, que aos 8 anos teve a oportunidade de ir para um dos dois grandes clubes da cidade, o United, que à época contava já com Paul Pogba e Jesse Lingard.
Nos quadros do clube desde 2005, estreou-se pelo Manchester United nos 16 avos-de-final da Liga Europa 10 anos depois, contra a equipa dinamarquesa do Midtjylland, depois de o jogador francês Anthony Martial se ter lesionado durante o aquecimento. Do banco diretamente para a história ao bisar na sua estreia, contribuindo para uma goleada por 5-1.
Já na Premier League, estreou-se no clássico contra o Arsenal e voltou a marcar dois golos, numa vitória por 3-2. A 20 de março de 2016, resolveu o dérbi de Manchester, contra o City, marcando o golo da vitória aos 15 minutos e 33 segundos. Aos 18 anos e 141 dias tornou-se o mais jovem jogador a cometer tal proeza no famoso embate entre os dois gigantes da cidade.
Das performances pelos Red Devils para a seleção A de Inglaterra foi só um saltinho, sendo chamado pelo selecionador Roy Hodgson para o Euro 2016 apenas quatro meses depois da sua estreia na equipa principal do seu clube.
Mas, além das alegrias que tem proporcionado aos adeptos do Manchester United, fora dos relvados Rashford tem sido uma voz ativa em campanhas solidárias e apelos na luta contra a pobreza.
Em junho deste ano, o jovem jogador apelou ao parlamento britânico para que prolongasse o fundo de ajuda alimentar (através de um sistema de vouchers de refeições) durante o período de férias escolares no verão, para ajudar as famílias com dificuldades económicas, durante o período da pandemia. O apoio visaria assim 1,3 milhões de crianças no Reino Unido.
Noutros tempos, foram Marcus e os seus irmãos a usufruir deste programa de vouchers para tomar o pequeno-almoço e lanchar na cantina da escola todos os dias. “Entendam que sem a bondade e a generosidade da comunidade que tive à minha volta, não existia o Marcus Rashford que veem hoje. Um homem negro, de 22 anos, suficientemente sortudo para poder construir uma carreira a jogar aquilo que mais que ama”, contava na carta de duas páginas dirigida ao parlamento.
O jogador relembrou os problemas económicos que passou na sua infância difícil em Wythenshawe, nos arredores de Manchester, e referiu ainda que o sistema económico vigente não foi construído para famílias como a sua serem “bem-sucedidas”. Segundo contava, ainda recorda o som do choro da sua mãe, que mesmo depois de trabalhar 14 horas, continuava “sem ter a certeza de como iria conseguir pagar as contas”. “Essa era a minha realidade", explicou.
Na carta, apelava à ação por parte do Parlamento, salientando que “a fome na Inglaterra é uma pandemia que pode durar gerações”. O seu pedido foi inicialmente negado, o que deu origem a várias ações nas redes sociais e a que políticos e celebridades ajudassem a espalhar a sua mensagem.
A pressão mediática foi tanta, que chegou a falar por telefone com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que avançou com o prolongamento dos respetivos apoios, através da alocação de 120 milhões de libras ao programa de refeições. A ação acabou por gerar a hashtag #SirMarcusRashford, como forma de homenagem ao jogador.
De alimentar estômagos a alimentar mentes
Esta não foi a primeira — e não será, certamente, a última — vez que Rashford daria voz à luta contra a pobreza. No início da pandemia, o atleta juntou-se à instituição de caridade FareShare numa campanha solidária com o objetivo de angariar donativos e que proporcionou três milhões de refeições a crianças desfavorecidas.
Se durante os fins-de-semana tem feito as delícias dos adeptos do United na Premier League, durante algumas tardes tem carregado caixotes num armazém de uma instituição de caridade em Manchester.
Agora, com a recusa do prolongamento do programa até à Páscoa de 2021, por questões orçamentais, Marcus Rashford voltou às intervenções para ajudar a combater a pobreza e a fome infantil no país, tendo apresentado uma nova petição ao parlamento britânico, que conta atualmente com mais de um milhão de assinaturas.
Apesar de ver o seu pedido recusado pelo governo britânico, as várias autarquias, restaurantes, supermercados e associações, fizeram questão de se juntar à causa e partilharam os donativos para apoiá-la com mensagens associadas ao hashtag #ENDCHILDFOODPOVERTY.
Foi esta dedicação que lhe valeu a o título de Membro do Império Britânico, atribuído pela Família Real, por continuar a destacar-se no ativismo pelo apoio a pessoas em situação sem-abrigo e a crianças carenciadas.
Agora, o jogador de futebol está a lançar-se numa nova iniciativa, um clube do livro, em parceria com a editora Macmillan Children's Books (MCB), para que todas as crianças possam experimentar o “escape” da leitura e para promover a alfabetização entre crianças de todas as origens socioeconómicas.
A propósito deste projeto, Rashford contou que gostava de ter tido a oportunidade de ler mais quando era criança, mas a sua família tinha de dar prioridade à alimentação em detrimento dos livros.
"Só comecei a ler aos 17 anos, e isso mudou completamente a minha visão e mentalidade. Só gostava que me oferecessem a oportunidade de realmente me envolver mais na leitura quando era criança, mas os livros nunca foram uma coisa que pudéssemos orçamentar como família quando precisávamos de pôr comida na mesa”, explicou.
Segundo noticia o The Guardian, a sua primeira publicação “YOU ARE A CHAMPION: Unlock Your Potential, Find Your Voice And Be The BEST You Can Be” ["És um campeão: descobre o teu potencial, a tua voz e sê o melhor que podes ser"] sairá em maio de 2021. Cada capítulo deste livro ilustrado de não-ficção, destinado a jovens entre os 11-16 anos, começará com uma história da vida de Rashford e abrangerá tópicos como o valor da educação, mentalidade positiva, compreensão da cultura e modelos femininos.
Em 2021 e 2022, seguir-se-ão mais dois livros de ficção para leitores a partir dos sete anos de idade. No próximo ano será também lançado o Marcus Rashford Book Club.
"Houve alturas em que o escape da leitura poderia ter-me ajudado. Quero este escape para todas as crianças, não apenas aquelas que têm dinheiro para isso. Sabemos que existem hoje mais de 380 mil crianças em todo o Reino Unido que nunca tiveram um livro, crianças que se encontram em ambientes vulneráveis. Isso tem de mudar. Os meus livros são, e sempre serão, para todas as crianças, nem que tenha de ser eu próprio a entregá-los. Iremos alcançá-los", disse.
Racismo e a polémica com o Daily Mail
“Que resultado! Autor de campanha e estrela do futebol Marcus Rashford comprou cinco casas de luxo no valor de dois milhões de libras”, este foi o título de uma notícia, publicada este domingo pelo jornal “Daily Mail”, que apontava que o jogador tinha comprado cinco casas no valor de 2,2 milhões de euros.
Bastante ativo no Twitter, o jogador não deixou de responder ao conteúdo da publicação: “Tenho 23 anos, Venho do nada. Preciso de acautelar não só o meu futuro como a da família. Por isso, no início deste ano, decidi investir no imobiliário. Não ponham notícias destas com referência ao facto de ser autor da campanha”, disse, criticando implicitamente o jornal por estar a recordar o seu papel enquanto angariador de fundos numa notícia em que é descrito a gastar dinheiro.
O caso que afetou Rashford não é novo no mundo do futebol inglês, existindo uma polémica recorrente quanto ao tratamento que os tabloides britânicos dão a jovens futebolistas negros no país.
Em 2018 estalou uma polémica com Raheem Sterling, jogador do Manchester City, quando este foi alvo de insultos racistas num jogo contra o Chelsea. No Instagram, Sterling recordou o papel que os jornais britânicos têm tido na difusão de narrativas e na forma como estas se traduzem em "agressão e racismo a partir das bancadas", ao comparar as notícias que o "Daily Mail" publicou quanto a dois jovens futebolistas que compraram casas para as respetivas mães, sendo que o jogador branco Phil Foden foi caracterizado como generoso e Tosin Adarabioyo, futebolista negro, como esbanjador.
"Este jovem rapaz negro é visto de forma negativa o que ajuda a alimentar racismo e comportamentos agressivos. Por isso, para todos os jornais que não percebem porque é que as pessoas são racistas hoje em dia, tudo o que digo é que pensem duas vezes sobre publicidade justa e que dêem a todos os jogadores as mesmas hipóteses", escreveu na publicação.
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