O sonho, escreveu António Gedeão, e cantou Manuel Freire, não só comanda a vida como, quando é por nós sonhado, faz avançar o mundo. É uma lapalissada dizer que o seu poder é ilimitado, mas todos os dias vemos como tal potencial se manifesta à nossa volta.

O problema dos sonhos, porém, é que são etéreos, podem existir mas de nada valem se não se materializarem. Quando chocam com a dureza da lógica e da razão, ou as suplantam pela pura força de quem os carrega e impõem-se na realidade, ou se esfumam e desaparecem, deixando apenas memória.

O futebol é pródigo em histórias de superação, de lendas em que o concorrente menos favorito surpreende, de momentos onde o sonho se materializou perante as adversidades. Hoje, porém, o Estádio de Alvalade foi palco da dura constatação de que todos podem sonhar, mas poucos conseguem levar avante, e de que ganha a melhor equipa.

O Lyon chegou a esta fase nas asas de um sonho. Outrora um gigante francês, os franceses são hoje uma modesta equipa a reerguer-se de um início de temporada horrível cuja pandemia não permitiu remediar por completo — com o precoce final do campeonato francês, ficaram no sétimo lugar — mas que esteve nas meias-finais da Liga dos Campeões contra todas as expectativas.

Depois da surpreendente eliminação da Juventus, poucos previam que tal desenlace voltasse a acontecer contra o Manchester City. Só que os franceses uma vez mais riram-se na cara do destino. Foi a última. O sonho foi crescendo, mas morreu às mãos da lógica alemã.

Invicto desde que se iniciou nesta edição da Liga dos Campeões, apenas a inebriação da arrogância ou o peso da responsabilidade poderiam trair um Bayern de Munique mais goleador, mais eficaz, mais dominante que nunca. Uma equipa que só deixou terra queimada onde passou, que esmagou o Chelsea e humilhou o Barcelona com uma veemência raramente vistas, com uma precisão a qual paragem da pandemia parece ter deixado incólume.

Curiosamente, os bávaros também eles têm vivido uma história de superação — poucos previam que Hansi Flick conseguisse corrigir o péssimo início de época de Niko Kovac, despachado em novembro — mas do Bayern apenas se espera superioridade. E assim foi.

Ambas as equipas apresentaram-se em Alvalade exactamente com os mesmos onzes da fase anterior — o Bayern, porque não vale a pena desregular uma máquina perfeitamente calibrada; o Lyon, porque uma equipa que bate Juventus e Manchester City tem todas as capacidades para fazê-lo com novo gigante.

Liga dos Campeões   2019/20: Lyon-Bayern Munique
créditos: EPA/Miguel A. Lopes

Quando se deu o pontapé de saída, o Bayern começou logo, sem cerimónias, a colocar a bola na orla da área do Lyon. Cedo se percebeu que seriam os bávaros a assumir as despesas de jogo, subindo as linhas como de costume. O Lyon, como era esperado, assumiu uma postura especulativa, procurando rechaçar as investidas adversárias para depois contra atacar.

Tudo isto era esperado, dada a diferença de argumentos entre as duas equipas. O que se revelou uma agradável surpresa é que foram os franceses a colocar a defesa do Bayern em sentido e não o contrário. Apesar dos bávaros procurarem atacar — Anthony Lopes teve de tirar uma bola do canto da baliza fruto de uma “rosca” de Goretzka —, foi o Lyon quem podia começado a ganhar nos primeiros 15 minutos de jogo. 

Primeiro foi Depay, que lançado por Caqueret, furou entre Boateng e Alaba e, tentando desviar da mancha de Neuer, atirou à malha lateral. Depois, um par de cruzamentos venenosos não conseguiram chegar a Toko Ekambi. Por fim, foi o próprio atacante camaronês que, passando por Davies junto à linha de fundo, atirou ao poste direito da baliza do Bayern.

A estratégia parecia dar frutos: o Lyon defendia com confiança e atacava com propósito, aproveitando a linha subida do Bayern. Mas depois,  aconteceu o pior destino dos sonhos que não se cumprem: esfumam-se. E a dureza da lógica impôs a sua vontade soberana. Kimmich lança uma bola para Gnabry e o alemão, sem grande oposição de uma defesa que, até então, estava a portar-se bem, rasgou o campo junto à grande área e, já pressionado por Bruno Guimarães, atirou letalmente para o lado direito.

O jogo transfigurou-se por completo a partir daqui e a janela de oportunidade do Lyon fechou-se. Na frente do marcador, o Bayern baixou as linhas o suficiente para passar a controlar a profundidade mas para ainda manter a pressão sobre a fase de construção dos franceses, que começaram a falhar passes uns atrás dos outros. Não aconteceu o descalabro que assolou o Barcelona, mas os Gones deixaram de ter bola.

Até ao fim da primeira parte, só deu Bayern, com Goretzka e Thiago Alcântara a controlar as operações, dinamitando um meio-campo do Lyon sem força para contê-los. Foi com este domínio que os alemães chegaram com naturalidade ao 2-0. Depois de algumas oportunidades falhadas, deu-se recuperação de bola junto à área francesa e Perisic cruzou rasteiro para Lewandowski que, de forma pouco característica, falhou o remate e embrulhou-se, obrigando ainda assim Anthony Lopes a ir ao chão. Gnabry estava no local certo, à hora certa, e bisou.

Por influência do guarda-redes do Lyon e desacerto de Lewandowski na frente — bloqueou, sem querer, um tiro que levava selo de golo de Goretzka — os franceses teriam 45 minutos para fazer das tripas coração e tentar fazer da final um assunto francês. Para tal, Rudi Garcia tirou Bruno Guimarães e deu mais músculo ao seu meio-campo com Thiago Mendes.

Porém, nos segundos 45 minutos do jogo, o Lyon só jogou o que o Bayern deixou jogar. Deixando-se relaxar um pouco, os alemães permitiram algumas oportunidades quando Lyon começou a pressionar. Neuer fez a sua primeira defesa do jogo a um cabeceamento fácil de Marcelo e, quando o Lyon podia ter relançado o jogo, mostrou a sua importância. Dembele — o carrasco do City — entrando por Depay, tirou a bola a Sule num choque e esta sobrou para Aouar, que colocou de bandeja para Ekambi. Este, porém, voltou a falhar perante o guarda-redes alemão, que foi ao chão para impedir o 2-1.

Depois deste fogacho, o Lyon continuou a lutar, mas sem argumentos para incomodar o Bayern, que acordou da sonolência e selou a vitória com mais um golo, já no fim. Depois de Coutinho, já em campo, ter visto o seu golo anulado por fora de jogo, Lewandowski, que até estava a ter um dia “daqueles”, marcou de cabeça a responder a um livre junto à bandeirola de canto.

O Bayern manteve o seu registo 100% vitorioso — algo, diga-se, inédito —e vai bater-se contra um PSG sem vontade nenhuma de desperdiçar a sua estreia numa final na Liga dos Campeões. Será apenas a segunda final europeia entre uma equipa alemã e uma equipa francesa em toda a competição. Da primeira vez, o Saint-Etienne caiu aos pés do… Bayern. Na Luz, veremos se a história rima ou não.

Bayern
créditos: AFP OR LICENSORS

Bitaites e postas de pescada

O que é que é isso, ó meu?

Já por aqui foi escrito que, a este nível, se uma equipa dispõe de poucas oportunidades, tem de concretizá-las ou não vai longe. Ekambi não leu essas linhas, já que estiveram nos pés dele as melhores chances do Lyon poder ir à final, mas falhou-as a todas perante os duelos com o poste e com Neuer.

Gnabry, a vantagem de ter dois pés

De rejeitado do Arsenal a MVP do Bayern. Se queremos falar de histórias de superação e de sonhos, não há melhor exemplo do que Serge Gnabry. Mal aproveitado por Arsène Wenger, emprestado ao West Bromwich Albion, despachado para o Werder Bremen, os bávaros tiveram olho para resgatá-lo da mediocridade. Neste momento, é titularíssimo e é o segundo maior marcador da equipa na Champions. Hoje, foi decisivo com dois golos: um por fruto da trapalhada de Lewandowski, mas o outro por si cozinhado com mestria.

Fica na retina o cheiro a bom futebol

Se tivessem uma tenda consigo, Thiago Alcântara e Goretzka teriam acampado no suave relvado do meio-campo do Lyon, tal foi a sua superioridade durante o jogo. O espanhol, em particular, tanto foi o maestro do jogo alemão como o destruidor do jogo francês. Já o alemão, impôs-se de uma forma que talvez não seria possível se não tivesse ganho este "caparrão" nos últimos seis meses.

Nem com dois pulmões chegava àquela bola

Quando vemos Lewandowski naquelas compilações do Watts, é porque marcou um golão ou então fez uma careta engraçada. Raramente ocorre por inabilidade durante o jogo em si. No entanto, foi o que aconteceu hoje quando escorregou a tentar rematar a passe de Perisic. Felizmente, à retaguarda tinha Gnabry a fazer de si.