O árbitro apita. De um lado, a baliza encolhe. Do outro, os postes parecem fugir para junto das bandeirolas de canto, nas extremidades do relvado. Até a bola descolar da marca dos onze metros, o futebol está todo ali, nu, cruel, sumário: o batedor e o guarda-redes, a bola e as redes da baliza a um homem e um par de luvas de distância, os corações na garganta a acelerarem a respiração, os adeptos nas bancadas e nos sofás, uns com a palma da mão, o indicador e o anelar a fazerem de venda, outros de joelhos fletidos, mão junto à coxa, preparados ora para saltar e comemorar, ora para cair derrotados sobre si. É uma granada, um caminho que leva a um explosão que percorre todos os sentimentos de quem está nas bancadas e de quem está no relvado. Alivia uns, acentua outros, mas dificilmente ficamos indiferentes.
Diz a lógica do futebol que a pressão está do lado de quem marca, porque a norma é que uma grande penalidade seja praticamente sinónimo de golo. E se os números nos dizem que sim, que por norma um penálti convertido durante os 90 minutos tem 78% de hipóteses de dar em golo - se falarmos de um desempate em grandes penalidades, a percentagem cai para 72% -, a psicologia diz-nos que as faltas convertidas da linha de onze metros estão longe de ser uma lotaria.
De acordo com Ben Lyttleton, autor do livro "Twelve Yards: The Art & Psychology of the Perfect Penalty" [Onze Metros: A arte e psicologia do penálti perfeito], a razão pela qual a taxa de concretização de uma grande penalidade convertida durante os 90 minutos é maior do que a de um penálti batido durante um desempate por grandes penalidades é só uma: pressão.
"Se és bom o suficiente para representar a seleção nacional, devias conseguir marcar um penálti. A distância é curta, a baliza é grande e há apenas um jogador a tentar impedir-te. E, ainda assim, a pressão consegue deixar um atleta numa condição estranha em termos de decisão, respiração, técnica e compostura", escreve Lyttleton, atualmente diretor da Soccernomics, uma consultora de futebol que ajuda equipas a melhorar o seu desempenho.
No artigo que escreveu para a Psychology Today, intitulado "Desempates por grandes penalidades não são uma lotaria", Ben Lyttleton recorre a um desempate nos penáltis no Mundial de 2014, no Brasil, entre a Holanda e a Costa Rica, em que Louis van Gaal, no final dos 120 minutos em que persistiu o empate, substituiu o seu guarda-redes titular, Jasper Cillessen, por Tim Krul. "A substituição surpreendeu e confundiu o adversário. Krul não é um especialista em defender grandes penalidades, mas os jogadores da Costa Rica convenceram-se que era. Acabou por ser uma profecia que se cumpriu a si mesma. A Holanda venceu o desempate e van Gaal foi aclamado".
Como bom inglês, o autor diz que não há grande vergonha em perder um jogo no desempate por grandes penalidades, sobretudo porque vai subsistindo a ideia de que os penáltis são uma lotaria. "Na pesquisa para o livro aprendi que isso não é verdade, embora a sorte desempenhe o seu papel. Ajuda, por exemplo, a que uma equipa 'bata' primeiro, aumentando a pressão sobre o jogador da equipa seguinte - sobretudo quando o batedor remata para evitar a derrota da equipa. A equipa que bate o primeiro penálti vence em 60% das ocasiões", explica.
A pergunta é simples como é que, por exemplo, no treino, se consegue replicar as condições de bater um penálti durante um jogo do Campeonato do Mundo? A resposta é igualmente simples: "Não se consegue".
"Percebi que os jogadores de sucesso treinaram grandes penalidades muitas vezes - não apenas nas semanas anteriores a um torneio - e depois de jogos-treino que duravam 120 minutos, que tentam replicar um jogo de 90 minutos mais os 30 minutos de tempo extra. Eles treinam para quebrar a barreira dos nervos. Isto ajuda-os a focar no processo e não somente no facto da bola entrar ou não", sublinha Lyttleton.
Entre os especialistas e treinadores de bancada, muito se disse e diz sobre a arte de bater uma grande penalidade e este fim-de-semana, por consequente, muito se disse sobre Cristiano Ronaldo. O português chegou aos 50 golos ao serviço da Vecchia Signora com um 'bis' diante da Fiorentina, em jogo a contar para a Serie A, através da conversão de dois penáltis. Dois tentos que lhe davam ainda mais do que a celebração de uma marca redonda: CR7 bateu o recorde Trezeguet que perdurava desde 2005 ao marcar no campeonato italiano pela nona jornada consecutiva.
Desde a primeira época de Cristiano Ronaldo ao serviço do Real Madrid que a Internet se dividiu ao meio em duas equipas: a de Ronaldo e a de Messi. E se ambos sempre falaram de uma rivalidade positiva, que sempre levou o outro a ser melhor dentro de campo, o lado mais 'sujo' da competitividade entre o português e o argentino ficou para alguns dos fãs. Enquanto uns aclamavam o capitão da seleção nacional pelo feito alcançado - ao qual se somam 13 assistências na época e meia em que veste as cores da campeã italiana -, outros recuperaram um termo que nasceu em Espanha e que imigrou para Itália: 'Penaldo'.
O conceito, que nasce nas bocas dos adversários e procura reduzir os números de Ronaldo à conversão de grandes penalidades, merece alguma matemática. CR7 soma 722 golos em toda a carreira de profissional, clubes e seleção combinados. Desses, 120 foram celebrados após um pontapé da marca dos onze metros. O número corresponde a um total de 16,6% de todas as vezes em que o português fez abanar as redes da baliza, valendo a pena sublinhar que Ronaldo soma ainda 22 penáltis falhados.
Se compararmos, por exemplo, com o eterno rival Lionel Messi, os golos de penálti representam 12,71% do total de tentos apontados pelo argentino. Marcou 88 penáltis, falhou 26. Se a diferença do peso total de penáltis é menor para o argentino, os números mostram também que o 10 do Barcelona falha mais (22,8%) da marca dos onze metros do que Ronaldo (15,5%).
Olhemos agora para a atual corrida à Bota de Ouro, onde há um líder isolado: Ciro Immobile. O jogador da Lazio tem sido uma dor de cabeça para Cristiano Ronaldo esta temporada em Itália, no à luta pelo título de melhor marcador da Serie A diz respeito. Immobile soma 25 golos, mais seis do que Ronaldo, e, curiosamente, é um dos dois pontas-de-lança dos principais campeonatos europeus cujo número de grande penalidades convertidas representa uma percentagem maior do que a de CR7 no total dos golos de carreira. O avançado, que fora de Itália já vestiu as cores do Borussia Dortmund e Sevilha, soma 42 golos de penálti, o que faz com que 20,79% de todos os seus golos sejam da marca dos onze metros.
O outro é Erling Haaland, o jovem norueguês de 20 anos que brilha com a camisola do Dortmund, onde soma sete golos em apenas 137 minutos distribuídos por três jogos. O ex-Salzburgo, que nunca provou o amargo sentimento de falhar um penálti, soma 12 golos de grande penalidade nos 56 tentos apontados em toda a carreira, o que perfaz um peso de 21,43%.
Todos os outros avançados de renome no futebol europeu somam percentagens mais pequenas. Das 420 vezes que Sergio Aguero fez fez a bola ultrapassar a linha de golo, apenas 10,95% dessas vezes foram de grande penalidade. A mesma percentagem é de 16,15% para Harry Kane, 14,6% para Zlatan Ibrahimovic, 13,5% para Neymar Jr., 13,71% para Edinson Cavani, 10,8% para Lewandowski, 10,71% para Timo Werner, 9,28% para Jamie Vardy, 8,47% para Luis Suárez e 5,8% para Lukaku.
Os números dos jogadores citados sofrem de imensas variáveis quando comparados aos de Ronaldo. Primeiro, pelo papel que cada jogador desempenha na equipa (Luis Suárez, por exemplo, não é o primeiro batedor de grandes penalidades no FC Barcelona), depois pela idade (naturalmente, os 34 anos de carreira de CR7 somam muito mais golos da marca dos 11 metros do que a jovem carreira de Haaland).
Assim sendo, vamos apertar o critério. Vamos olhar, na lista acima, apenas para os avançados com trinta ou mais anos e, em vez de analisar o peso das grandes penalidades nas carreiras dos jogadores, vamos olhar para a capacidade de concretização da marca dos onze metros. Portanto: Cristiano Ronaldo faz golo em 84,5% das ocasiões em que é chamado a bater uma grande penalidade, Lewandovski 90,74%, Zlatan Immobile 82,36%, Vardy 81,82%, Suárez 81,64%, Cavani 80,89%, Aguero 79,3% e, finalmente, Lionel Messi 77,2%.
Penaldo é uma palavra trocista e advém do pensamento de que um penálti equivale automaticamente a um golo. Contudo, há que saber bater uma grande penalidade. Os números acima mostram que apenas Lewa e Ibra se superiorizam a Ronaldo no que à eficácia diz respeito. Cristiano marca muitos golos de grande penalidade porque falha poucos golos da marca dos 11 metros, porque consegue manter o foco, porque treina, porque assume a responsabilidade. Regressando às palavras de Ben Lyttleton, CR7 lida muito bem com o maior fator que pesa sobre a grande penalidade, a pressão. Que o diga Bartlomiej Dragowski, guarda-redes da Fiorentina que, no domingo, antes do jogo diante da Juve, se gabou de ter estudado bem Ronaldo e as suas grandes penalidades, numa tentativa de desestabilizar o português. Ora, CR7 não só marcou, como bisou de penálti.
No final de contas, olhamos para as 22 grandes penalidades que Ronaldo falhou e vemos que a ausência do seu golo apenas levou a uma derrota em jogos oficiais. Aconteceu a 29 de dezembro de 2007, quando vestia as cores do Manchester United, num jogo diante do West Ham, em Londres, que os Red Devils acabariam por perder 2-1 e em que CR7 falhou um penálti. Também falharia dos 11 metros em abril de 2008 frente ao FC Barcelona, nas meias-finais da Liga dos Campeões, a primeira que conquistou, curiosamente numa final frente ao Chelsea e decidida no desempate de grandes penalidades e em que Ronaldo falhou o seu.
Messi tem um cenário igual, nunca falhou uma grande penalidade, durante o jogo, num grande momento. O argentino soma apenas dois jogos oficiais em que, ao falhar um golo da linha de onze metros, não conseguiu impedir a derrota do Barcelona. Aconteceu na temporada 2017/18, frente ao Espanyol, e em 2010/11, frente ao Bétis Sevilha, ambos os jogos para a Taça do Rei.
Pelé diz que um penálti é uma forma cobarde de marcar um golo. Talvez seja, mas Ronaldo não faz distinções quando chega o momento de empurrar a bola para o fundo da baliza. Portanto, Penaldo? Sim, também.
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