A poucos dias do início do Campeonato do Mundo de futebol, aumentam de tom e ganham visibilidade os protestos contra a organização do torneio pelo Qatar, um país distante dos valores ocidentais, onde milhares de trabalhadores morreram como escravos na construção dos estádios, onde a comunidade LGBT+ é violentamente reprimida, tal como são os direitos das mulheres, onde toda a conversa e preocupação com as alterações climáticas parecem ter sido afundadas numa duna, com recintos desportivos climatizados para que, mesmo no inverno, seja possível uma temperatura que permita estar e jogar naqueles relvados.

Sem nenhum boicote a um torneio que se vai realizar sobre estes pressupostos, ficou sozinha a seleção da Dinamarca que se vai apresentar com um equipamento principal diferente do habitual e um alternativo preto, em homenagem aqueles que morreram ou ficaram feridos na construção de estádios, rede de metro, estradas e hotéis em Doha. Para treinar, usariam também uma camisola com o slogan que criaram em prol dos direitos humanos: “Para Todos”. A utilização desta segunda foi rejeitada pela FIFA que tem feito um esforço para tirar tudo o que não seja futebol do relvado, sem que nada do que foi relatado e denunciado mudasse os pressupostos deste torneio.

É difícil não olhar para o Qatar como um erro, até o próprio Joseph Blatter, ex-presidente do organismo que tutela o futebol mundial, aquando da escolha do país para a organização daquele que é considerado o maior evento desportivo do mundo, já o reconheceu.

No entanto, este está longe de ser o primeiro erro da FIFA na organização de um Mundial.

O Mundial fascista

Criado em 1930 e a caminho da 22ª edição, são vários os casos polémicos na organização do torneio. O primeiro terá sido logo na segunda edição, em 1934, quando Benito Mussolini quis utilizar o evento para mostrar ao mundo a força de Itália e do regime fascista, numa atuação semelhante à de Adolf Hitler com a organização dos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, mas a uma escala menor.

‘Il Duce’ via na organização do evento uma forma de promover o regime e mostrar as suas mais valias, não só através da prestação da equipa italiana como na organização e promoção do torneio. O Mundial ficaria marcado pela saudação romana e pela brutalidade com que a hoje conhecida Squadra Azurra jogava, como se estivesse numa guerra e não num jogo.

créditos: STAFF / OFF / AFP

O ‘Mundial Fascista’ foi conquistado pela Itália, como se não houvesse outra possibilidade, em muito ajudada pelo facto do Uruguai, campeão do mundo em título e a equipa que melhor futebol jogava à época, ter recusado participar, em protesto contra a recusa de várias seleções europeias em viajarem para a América do Sul aquando da primeira edição do torneio, assim como Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte, que alegaram ter um calendário demasiado preenchido a nível interno para poderem ir disputar o Mundial, isto numa altura em que Reino Unido lutava entre o amadorismo e profissionalização do futebol. Nada disto preocupava Mussolini que deu aos seus jogadores, através do general Vaccaro, presidente da Federação Italiana de Futebol, a missão de ganhar a todo o custo naquele que foi o primeiro evento desportivo amplamente transmitido na rádio.

Por último, o regime terá tido também, segundo os relatos que chegam, a ajuda da arbitragem. Exemplo máximo disso foi o jogo entre Itália e Espanha nos quartos de final da competição, que à época era só disputada com jogos a eliminar, que ficaria na história como a ‘Batalha de Florença’, em que sete jogares espanhóis tiveram de sair de campo devido a lesão. O embate terminou empatado a um golo, obrigando à realização, 24 horas depois, de um outro de desempate, ao qual a equipa espanhola apareceu sem seis titulares e acabou por perder 1-0, alegadamente com um golo irregular marcado por Giuseppe Meazza, jogador cujo nome hoje é familiar a muitos adeptos por batizar o estádio onde jogam o AC Milan e o Inter de Milão.

Um Mundial em plena ditadura militar

Depois do Campeonato do Mundo organizado em Itália e dos Jogos Olímpicos que decorreram na Alemanha nazi, o Mundial de 1978 numa Argentina sob uma ditadura militar de extrema-direta seria, mais de 40 anos depois, um novo caso de utilização do desporto para a lavagem e normalização de um regime.

A organização do torneio foi atribuída à Argentina pela FIFA em 1973, três anos antes da chegada ao poder do general argentino Jorge Rafael Videla que, através de um golpe de estado, depôs a presidente María Estela Martínez de Perón, em 24 de março de 1976, iniciando uma ditadura no país.

Com a frase “matar quantos for preciso para restabelecer a ordem na Argentina” como uma das premonições políticas mais negras da história do país, a liderança de Vidal ficaria marcada pela repressão e violação de direitos humanos. Até 1983, a ditadura argentina matou 30 mil pessoas e levou ao exílio de meio milhão, grande parte destes figuras, apoiantes, militantes e sindicalistas de esquerda.

Apesar de a FIFA, tal como o mundo, estar ciente do que se passava na Argentina, João Havelange, presidente do organismo, não recuou na atribuição da organização do torneio. Coube assim aos países uma forte campanha contra a presença neste Mundial. Na Suécia, por exemplo, Olof Palme leva a participação sueca a debate parlamentar e em França nomes grandes como Marguerite Duras, Roland Barthes e Jean-Paul Sartre aderem ao boicote. No entanto, todas as seleções qualificadas acabam por viajar para a América do Sul e participar.

Cartaz francês de boicote ao Mundial de 1978 onde pode ler:

À final chega a Argentina e a poderosa Laranja Mecânica, a Holanda, fragilizada pela ausência de Johan Cruijff, atitude que durante muitos anos foi vista como um protesto contra o regime argentino, até mais tarde, em entrevista, os factos terem sido esclarecidos pelo próprio. A equipa da casa levou a melhor, guiada pelo talento do jovem Mario Kempes, e Vidal foi aclamado no Estádio Monumental Nuñez, a pouco mais de 500 metros da Escola Mecânica da Marinha, o principal centro de tortura do regime.

O Mundial de Putin

No dia 2 de dezembro de 2010, a FIFA anunciou que a Rússia iria ser responsável pela organização do Campeonato do Mundo de 2018, o primeiro de sempre num país do leste da Europa, superando assima concorrência das candidaturas conjuntas de Portugal e Espanha, a também proposta conjunta de Bélgica e Países Baixos e a candidatura a solo de Inglaterra, à época a grande favorita.

A escolha de um país onde a democracia é pouco transparente, Vladimir Putin governa o país desde a renúncia de Boris Iéltsin, em 1999, alternando entre o cargo de primeiro-ministro (1999 a 2000 e 2008 a 2012) e Presidente (2000 a 2008 e desde 2012 até aos dias de hoje), e onde direitos básicos como o da liberdade de expressão são limitados, é um país onde é preciso pedir ‘premissão’ para protestar, voltavam a colocar uma escolha da FIFA sobre uma nuvem cinzenta.

O caso ganhou novos contornos quando em 2015 uma investigação do FBI à escolha tanto da Rússia como do Qatar para organizarem, respetivamente, os mundiais de 2018 e 2022, colocou cá fora um esquema de corrupção.

Segundo a investigação, ​​Jack Warner, antigo presidente da CONCACAF (Confederação de futebol da América do Norte, Central e Caraíbas) e membro influente do comité FIFA, terá recebido cinco milhões de dólares (cerca de 4,6 milhões de euros) para votar favoravelmente na Rússia em 2018.

Segundo um documento assinado pelo procurador de Brooklyn, Richard Donoghue, tornado público em 2020, o pagamento a Jack Warner, então vice-presidente da FIFA, foi feito através de uma rede complexa de intermediação de empresas, numa acusação que inclui também Rafael Salguero, que foi presidente da Federação de futebol da Guatemala e membro do comité executivo da FIFA, acusado de ter recebido um milhão de dólares (cerca de 920.000 euros), em troca do seu voto à Rússia.

No entanto, apesar dos anos de desconfiança e sem provas concretas, uma vez que o relatório norte-americano só foi divulgado após a realização do torneio, o Mundial da Rússia aconteceu sem protestos proeminentes, posições diplomáticas ou tentativas de boicote. Mesmo a apropriação da Crimeira, da Ucrânia, em 2014, não levantou dúvidas em relação à organização do Mundial.

Não aconteceu sem estranhezas, claro está. Por exemplo, uma das cidades a receber jogos da competição foi Saransk onde Portugal disputou o último jogo da fase de grupos, frente ao Irão de Carlos Queiroz (1-1). A pequena cidade a 10 horas de comboio de Moscovo tinha poucas acessibilidades, ao ponto de ter sido construído um pequeno aeroporto para a ocasião. Quem lá aterrou, por aqueles dias, ainda viu sinais de obra por concluir, algo que não incomodaria muito a organização, uma vez que a pista ia ser encerrada no final do verão. Saransk tinha à data uma equipa de futebol, o FC Mordovia Saransk, que tinha sido campeão da terceira divisão da Rússia. Ainda assim, a organização escolheu esta como uma cidade anfitriã, construindo um estádio moderno com mais de 40 mil lugares e preparado para, no final do torneio, passar para uma capacidade a rondar os 20 mil lugares.

créditos: Mladen ANTONOV / AFP

O Mordovia de Saranks já não existe, foi extinto depois de em 2019/20 ter ficado no último lugar da segunda divisão russa. Porquê então a escolha desta cidade em detrimento, por exemplo, de Kazan, casa de uma equipa competitiva? Segundo os rumores, a amizade de Putin com o filho do perfeito de Sarank, que valeu um investimento de 500 milhões de euros para que ali se pudesse jogar o futebol do mais alto nível.

O Mundial onde os direitos humanos não entram em campo

No mesmo dia em que foi anunciado que a Rússia iria acolher o Mundial de 2018, Joseph Blatter abriu o envelope que ditou que o Qatar iria organizar o Campeonato do Mundo de 2022, ultrapassando assim a candidatura dos Estados Unidos da América, considerada a favorita, e a proposta conjunta do Japão, Coreia do Sul e Austrália.

A escolha sem paralelo, uma vez que o torneio nunca tinha sido organizado no Médio Oriente, foi desde logo vista com dúvidas e suspeitas.

O então presidente da FIFA, o suíço Joseph Blatter, justificou na altura as escolhas com a aposta em “novos territórios”, o mesmo discurso que utlizou em 1998, aquando da sua primeira eleição para levar o Mundial a África, num processo que é retratado na série da Netflix ​”FIFA Uncovered​” não como um alargar dos horizontes do futebol, mas como um processo de instrumentalização das confederações de futebol africanas para garantir a eleição do suíço.

Anos mais tarde, a meros 10 dias do início da comeptição, Blatter reconheceu que a atribuição da competição ao Qatar foi um “erro.

“É um país pequeno demais [o menor em tamanho desde a Suíça em 1954]”, disse Joseph Blatter sobre o Qatar numa entrevista ao grupo de comunicação suíço Tamedia (TX Group), acrescentando que “o futebol e o campeonato do Mundo são grandes demais para isso”.

“Foi uma má escolha. E eu era responsável por isso como presidente na época”, disse Blatter, que há muito diz que votou nos Estados Unidos, candidatura, entre cinco, que foi derrotada na ronda final de votações pelo Qatar, sem nunca se referir especificamente às questões laborais e de direitos humanos no emirado, levantadas desde 2010 por diferentes organizações.

Na mesma entrevista, Blatter recordou, uma vez mais, uma reunião na semana anterior à votação entre o presidente da UEFA e vice-presidente da FIFA, Michel Platini, na residência oficial do então presidente Sarkozy, em que estava também presente o príncipe herdeiro do Qatar, agora emir, Tamim bin Hamad al-Thani.

Blatter repetiu que Sarkozy pressionou Platini, e novamente deu a sua versão de um telefonema que o antigo internacional francês lhe fez, após a reunião em Paris, dando conta de que o plano de votação para o Mundial tinha mudado.

“Graças aos quatro votos de Platini e da sua equipa [UEFA], o Mundial de 2022 foi para o Qatar e não para os Estados Unidos. É a verdade”, disse Joseph Blatter sobre o resultado da votação de 14 a 8.

O peso do dinheiro catari, gerado pelo petróleo e pelo gás, e a abertura de novos mercados para os patrocinadores terá sido decisivo na atribuição da organização da prova, até porque do ponto de vista desportivo a seleção de futebol do país, na altura, encontrava-se na 113.ª posição do ‘ranking’ da FIFA - hoje no 50.º posto.

As suspeitas de irregularidades e compra de votos em favor da candidatura do rico emirado começaram a ganhar corpo logo após a entrega da organização do Mundial ao Qatar e, nos meses que se seguiram ao anúncio da FIFA, várias denúncias e investigações revelaram vias de corrupção.

Algumas das denúncias de subornos para a compra de votos tiveram origem em altos funcionários da FIFA e, em 2014, o Sunday Times revelou documentos segundo os quais o presidente da Confederação Asiática de Futebol (CAF) na época, o catari Mohammed Bin Hammam, terá pago cerca de 4,4 milhões de euros (ME) em ‘apoios’.

O processo engrossou quando uma antiga funcionária da candidatura catari admitiu que vários dirigentes africanos receberam cerca de 1,5 ME para que apoiassem e votassem a favor e o FBI investigou um pagamento de 1,8 ME ao tobaguenho Jack Warner, na altura líder da CONCACAF e vice-presidente da FIFA, com origem no Qatar.

O avolumar de denúncias de compra de votos em favor do Qatar abalou a estrutura da FIFA, que também conduziu uma investigação interna, e vários responsáveis foram mesmo detidos para averiguações, como o então presidente da UEFA, o francês Michel Platini, que estava prestes a ‘saltar’ para a liderança da FIFA.

A história de Blatter que envolve o então Presidente de França Nicolas Sarkozy, que, alegadamente, terá pedido a Platini para apoiar a candidatura catari, foi contada pela primeira vez há três anos, à agência de notícias AFP, na sequência de o Sunday Times ter revelado a existência de um acordo de 350 ME entre a FIFA e o canal Al-Jazeera (reforçado com mais 350 ME), assinado antes do anúncio, para o alegado pagamento de direitos televisivos, caso o Qatar fosse escolhido como anfitrião do Mundial.

créditos: FABRICE COFFRINI / AFP

A versão do antigo presidente da FIFA é em grande parte apoiada pela entrada em França de Nasser Al-Khelaïfi, cidadão do Qatar, que comprou e investiu milhares de milhões de euros no Paris Saint-Germain. Milhões que trazem influência política num tópico que é muito querido a França, o futebol. Basta recordar que este verão, em 2022, Mbappé recebeu uma chamada de Emmanuel Macron, já depois de ter visto o contrato com o PSG chegar ao fim e de os rumores o colocarem como jogador do Real Madrid, para o convencer a ficar na capital francesa. Não sabemos hoje a origem por detrás da decisão ou o grau de eficácia dessa chamada, sabemos apenas que o jovem Kylian Mbappé assinou um novo contrato milionário com o emblema francês.

De escândalo em escândalo, e além das práticas de corrupção na ‘compra’ de votos, o Mundial do Qatar é ainda confrontado com exploração do trabalho dos migrantes na construção dos estádios - cerca de 6.500 pessoas terão morrido, de acordo com os útlimos números - e infraestruturas e violação dos direitos humanos

Além disso, o facto de as fortes temperaturas verificadas naquela península no Golfo Pérsico nos meses habitualmente escolhidos para a prova, junho e julho, a rondar os 50 graus celsius, levaram a um facto inédito: um Mundial em pleno inverno. Ainda assim, o inverno no Qatar tem altas temperaturas - segundo  o boletim meteorológico, dia 18 de novembro, data de início do torneio, vão estar 29º Celsius - o que obrigou a climatizar os estádios, colocando também este torneio no centro da discussão da crise climática. Não só estes mecanismos são poluentes, gastam muita energia, como o Qatar é um símbolo maior dos combustíveis fósseis.

À procura da normalização e da abertura ao mundo do Qatar através do futebol, ficaram esquecidos os direitos mais básicos. Algo que não parece mexer com os organizadores. No dia 11 de novembro, um embaixador do Mundial de futebol Qatar2022 classificou hoje a homossexualidade como um “distúrbio mental” e referiu que todos os que se deslocaram para assistir ao vivo à competição “têm de aceitar as regras” do país.

“Muitas coisas vão acontecer aqui no país durante o Mundial. Vamos falar sobre gays. O mais importante é aceitar que todos venham, mas terão de aceitar as nossas regras”, disse Khalid Salman, numa entrevista à estação televisiva ZDF.

Depois de 92 de anos de Campeonatos do Mundo profundamente políticos, seja pela inlfuência dos países organizadores, seja pela política praticada dentro da própria FIFA, quando é que o organismo que tutela o futebol a nível mundial, alavanca social para tantos jogadores, motivo de alegria tantas vezes raro em certas comunidades, ferramenta de inclusão social e de luta pelos direitos humanos, vai, de forma transparente, decidir em função do peso dos valores inerentes a essas políticas?

Com tudo o que de mau e bom que foi entrando e saindo do desporto à medida que este foi crescendo, a FIFA terá um trabalho árduo nos próximos anos para não só se credibilizar, como para credibilizar o futebol pelas escolhas que foram feitas e que em nada o representam.

O SAPO24 é a marca de informação do Portal SAPO, detido pela MEO, que neste Mundial se associou à Amnistia Internacional numa campanha pelos direitos humanos no Qatar.