Em 2005, Rafael Nadal, de 19 anos, venceu em Roland Garros, o primeiro título de Grand Slam da carreira. Acrescentaria mais 21 troféus nos mais importantes torneios de ténis a nível mundial.
O histórico feito poderá ter deixado de boca aberta os especialistas em ténis, mas não arrancou gritos de alegria a Antonio Nadal, treinador e tio do tenista espanhol.
Em vez disso, o tio Toni, falou em “sorte” e deixou uma nota ao sobrinho com os aspetos a melhorar caso quisesse vencer outro grande torneio.
Este sopro gélido que estraga festas é uma característica peculiar do principal responsável por ter transformado Nadal numa máquina letal nos courts nos anos em que a dupla caminhou junta, da primeira década de idade até 2017.
Um refrear de emoções que começou quando o pequeno Rafael se sagrou campeão nacional espanhol sub-12. Ainda os braços não tinham baixado das celebrações e já ouvia da boca do tio Toni a lista dos 25 anteriores campeões.
Um match point na cara de quem o obrigava sempre após cada treino a mais um serviço, mais um set, mais uma repetição quase até à náusea e à exaustão da busca pela perfeição.
Os episódios foram recordados pelo maiorquino na biografia Rafa: My Story, da autoria do jornalista inglês, John Carlin e Rafael Nadal, 320 páginas de memórias que recordam os primeiros 25 anos de vida do tenista nascido em Maiorca, Espanha.
Penso direito, jogo com a esquerda
Todos os deuses do desporto transportam às costas uma lenda. Rafael Nadal, nascido em Manacor, nas ilhas baleares, a 3 de junho de 1986, não é exceção.
Segundo rezaram crónicas durante anos, teria sido o autoritário e exigente, Toni Nadal, a forçar o seu pupilo, destro por natureza, a jogar e a tirar partido do jogo com a mão esquerda.
Ora, longe de ter dado reguadas na mão direita do sobrinho e curto-circuitar o córtex cerebral obrigando-a a pensar e executar à esquerda, o irmão do futebolista Miguel Ángel Nadal (FC Barcelona) simplesmente colocou a raquete na mão mais forte do miúdo que treinava. Simples. Um golpe de visão e perceção, nada mais.
Sim, porque Nadal, o sobrinho, adepto do Real de Madrid, assina as bolas de ténis com a mão direita, lava os dentes com a mesma mão direita, mas tem o dom de chutar com o pé esquerdo (nos primeiros anos jogou futebol) e servir melhor e com mais força, assim como fazer os passing shots com a mão que Diego Armando Maradona disse ser de Deus, a esquerda.
22 Grand Slams e 128 milhões em prize-money
Por isso, com naturalidade, foi com a mão do lado do coração que a história de Rafael Nadal começou a ser escrita.
Numa vida desportiva em que poucos são os atletas que se podem gabar de ganhar mais do que perderam, Rafa Nadal, pertence a uma pequena minoria que tem lugar reservado neste espaço.
Desde 2005 conquistou 22 Grand Slams, arrecadou 92 títulos no total, venceu 1080 partidas e perdeu 248 e engrossou a carteira em 128 milhões de dólares em prémios.
Vitorioso em qualquer piso, é em Roland Garros que o seu nome perpetuará por muitos anos nos quadros de honra. 14 títulos e 112 vitórias em 116 partidas.
Curiosamente, a última vitória na carreira aconteceu na capital do pó de tijolo, em Paris, no exato local onde esta história começa e levou Nadal a ser número 1 mundial durante 209 semanas e a terminar, por cinco vezes, o ano no topo do ranking ATP.
O enorme bolo global poderia ser mais recheado e ter mais fatias não fosse o calvário de lesões que obrigou o duplo melhadado de ouro, nos Jogos Olímpicos Pequim2008, em singulares e Rio de Janeiro2016, em pares, a não entrar em campo em inúmeros torneios.
O drama das lesões
Se pouco poderemos perspetivar se a carreira de Rafael Nadal seria igual se nos primeiros dias de bola para cá, bola para lá, tivesse feito esse movimento com a mão direita, o mesmo de aplica ao impacto na estatística das ausências e abandonos de torneios por lesão. Em especial nos últimos dois anos de carreira e nos primeiros anos de vida do tenista que virou profissional em 2001.
Do estômago, aos ombros, pulsos, cotovelos, antebraço, tornozelos, tendão patelar, anca, costas, tendinites, apendicites, rutura abdominal, crónica lesão no pé e síndrome de Muller-Weiss Syndrome (osso navicular do pé), fazem do corpo do tenista de 185 de altura e 85 kg uma manta de retalhos colocada nas mãos de médicos e fisioterapeutas ao longo de intermináveis horas.
A primeira grave lesão no cotovelo levou-o, aos 17 anos, a adiar a estreia em Roland Garros.
Uma estreia, de novo adiada no ano seguinte, depois de uma fratura de stress no pé, contraída frente a Richard Gasquet na primeira e única visita ao Estoril Open, no Jamor (esteve na lista para o torneio português de 2022, Millennium Estoril Open, no Clube de Ténis do Estoril), naquela que poderia ser a primeira vitória no circuito ATP.
Mas pior, forçou-o a pendurar a raquete no resto da temporada e adiou a subida à terra batida de Paris, a falhar Wimbledon e os Jogos Olímpicos de Atenas2004.
Tivesse Nadal uma ficha limpa, à imagem dos outros dois rivais que o acompanharam numa era única do ténis mundial, Roger Federer e Novak Djokovic, e, talvez, o maiorquino pudesse ficar à frente do sérvio, vencedor de 24 Grand Slams. Mas isso, são meras suposições.
O balanço dos duelos de uma era irrepetível
Na carreira do, à data, 158 do ranking mundial que se despedirá na Taça Davis, em Málaga, restam para a posteridade duas certezas. E tem a ver com números.
Num primeiro quartel do século XXI marcado por um tridente mágico, e se calhar irrepetível na história, entre Rafael Nadal, Roger Federer e Novak Djokovic, o espanhol leva vantagem do frente a frente diante o tenista suíço retirado em setembro de 2022, na Laver Cup. 24 vitórias no bolso de Nadal para 16 no curriculum de Federer.
Em relação a Nole, a história é outra. Em 60 partidas, o sérvio irá para a imortalidade com uma ténue vantagem (31-29).
Já agora, por falar em duelos, João Sousa subiu ao court três vezes ao lado de Rafael Nadal e não conseguiu somar qualquer triunfo.
História diferente para contar terá Nuno Borges, atual número um português e 32.º do ranking ATP.
Da única vez que se enfrentaram, ainda para mais na superfície de terra batida do Nordea Open, em Bastad, Borges venceu pelos parciais de 6-3 e 6-2 naquele que foi o primeiro título no ATP Tour para o tenista da Maia.
Esta seria a última final de Nadal, dois anos após a última (vitória em Roland Garros, 2022) e 19 anos depois do título alcançado no torneio sueco, em 2005.
O adeus ao pentear das sobrancelhas e outros rituais
Aos 38 anos, Rafael Nadal anunciou a despedida do ténis profissional. Jogará no Torneio Six Kings Slam (torneio de exibição de 16 a 19 de outubro) e depois sim, pendura as raquetes na Taça Davis.
Com o adeus apaga-se aos olhos dos espetadores um conjunto de rituais do tenista maiorquino, uns mais vistos que outros. Repetições, algumas, roçam o maníaco-depressivo, mais que a mera superstição, que o próprio diz não ter.
A começar na intimidade, o duche de água fria antes de cada partida e onde começa a ganha concentração.
Não pisa as linhas quando entra e sai em campo, as meias são usadas à mesmíssima altura e tem duas garrafas milimetricamente colocadas junto do banco onde se senta, de onde bebe, aos pingos, água, e garrafas essas que levanta, roda e mexe nas tampas, por vezes de forma insana.
E, talvez, a mania mais visível seja a imagem de disco riscado, no frente para trás da mão de um DJ a mexer num disco, em que levanta a camisola, a começar no ombro esquerdo, mexe nos calções e puxa a cueca, penteia as sobrancelhas e a fita que lhe prende o cabelo que foi perdendo ao longo dos 23 anos de profissional e toque vezes sem conta no nariz.
Imagem de marca que pode servir para desconcentrar adversários e que serve, acima de tudo, para colocar Rafael Nadal concentrado e ao controlo, como bem gosta de estar.
“Faço isso para entrar na partida. Preciso de ordenar todo o espaço à minha volta, para que ele reflita a ordem que procuro alcançar na minha cabeça”, confessou o segundo maior tenista de todos os tempos que chorou de mão dada na despedida do Federer.
E como será a sua? Quem estará ao seu lado? E como se despedirá? Se cada vez que entra e sai do court acena com a mão direita (raquete pendurada na esquerda), com que mão será feito o adeus. Esquerda ou direita?
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