“Conheço bem o Banco de Portugal. O Banco de Portugal deve voltar a ser uma instituição de referência em Portugal e na Europa, já que congrega muitos dos melhores técnicos formados nas universidades portuguesas. O Banco de Portugal tem de se tornar sinónimo de ação para enfrentar os inúmeros desafios, mas não o deve enfrentar numa torre de marfim, mas com a sociedade”, disse o ex-ministro das Finanças na sua intervenção inicial na comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República, onde está a ser ouvido no âmbito da sua indigitação para governador do Banco de Portugal.

O ex-ministro das Finanças do atual Governo, que saiu do executivo no início de junho, considerou ainda que o Banco de Portugal tem de exercer a sua ação em complementaridade com as outras instituições da República e em relação com a sociedade, não em antagonismo.

“O papel do Banco de Portugal não se pode caracterizar pelo antagonismo nem pelo isolacionismo, mas antes pela complementaridade com o Governo, os restantes supervisores financeiros e com a comunidade científica, enfim, com a sociedade”, afirmou.

Centeno diz que com o raciocínio do PSD não conseguiria emprego nas próximas décadas

Duarte Pacheco disse que Centeno "desertou" de ministro das Finanças na atual crise e questionou o ex-governante sobre como vai gerir os conflitos de interesses de decidir no futuro sobre dossiês em que interveio como governante e se irá pedir escusas em matérias relativas ao Novo Banco ou à Caixa Geral de Depósitos (CGD).

Na resposta, Centeno disse que foram "cabalmente explicadas as razões" da sua saída das Finanças, afirmando que as "questões pessoais que possam ter a ver com toda a pressão de exercer 1.664 dias são fáceis de entender" e que, por isso, não houve outro ministro das Finanças tanto tempo no cargo em democracia.

Sobre os conflitos de interesse que o PSD encontra em Centeno por ter sido ministro das Finanças entre novembro de 2015 e junho deste ano, o ex-governante considerou mesmo que, seguindo esse raciocínio, não mais teria emprego em Portugal.

"Se eu usasse o seu raciocínio não conseguia encontrar emprego em Portugal nas próximas décadas", afirmou.

Em específico, sobre eventuais conflitos de interesse de vir a decidir no Banco de Portugal sobre assuntos que passaram pelas Finanças, Centeno disse que a venda do Novo Banco foi gerida pelo banco central enquanto autoridade de resolução, assim como a resolução do Banif coube ao Banco de Portugal e que na capitalização da CGD o ministério das Finanças atuou como acionista.

"Não são conflitos de interesse. Todas essas decisões foram tomadas pelos órgãos que devem tomar essas decisões", considerou.

Contudo, admitiu Centeno, eventuais escusas terão de ser tomada face a dossiês concretos.

"Quando alguém na posição de governador do Banco de Portugal enfrenta determinado dossiê, tem de ter um julgamento legal, ético, moral sobre esse dossiê e eu não fui posto perante nenhum dossiê, nem o senhor deputado explicou, só nomeou instituições. O que têm feito todos os antecessores e membros do Conselho de Administração do Banco de Portugal é, sobre situações concretas, ajuizar nessas circunstâncias", disse.

Mário Centeno afirmou ainda que "não há nenhuma lei em nenhum país do mundo em que constitua um impedimento" passar de governante a governador do Banco de Portugal.

Maioria dos partidos opõe-se a Centeno como governador do BdP

Na terceira ronda de perguntas a Centeno, os partidos focaram as suas intervenções sobre as suas posições quanto à ida do ex-ministro para governador.

Pelo PS, Fernando Anastácio recusou a ideia de que há uma maioria no parlamento contra a nomeação de Mário Centeno para o BdP e afirmou ainda que estudos de opinião indicam que a maioria dos portugueses o considera a pessoa adequada.

Em resposta, o PSD, por Duarte Pacheco, disse que o Governo pode manter a indigitação de Centeno para o cargo, uma vez que o parecer do parlamento não é vinculativo, mas que “não é verdade” que haja uma maioria parlamentar de apoio à ida do ex-ministro das Finanças para o banco central.

O deputado social democrata questionou ainda Centeno sobre se “se sente confortável para aceder a essas funções, sabendo que a maioria dos grupos parlamentares não está de acordo com essa indigitação e a sua eventual nomeação”.

Pelo BE, Mariana Mortágua explicou que há várias maiorias que se formam face a diferentes matérias relativas ao governador do Banco de Portugal, afirmando, por exemplo, que não há maioria sobre as incompatibilidades do cargo de governador (referindo-se ao projeto de lei do PAN sobre as novas regras para nomeação do governador) e que não sabe se há maioria para que seja vinculativa a posição do parlamento na nomeação do governador (o BE é a favor, disse).

“Os partidos têm diferentes posições sobre nomeação, processo legislativo, regras de nomeação, e têm todo o direito de ter posições diferentes. Mas não é possível dizer que a nomeação de Mário Centeno para governador do BdP tenha o apoio maioritário da Assembleia da República”, afirmou a deputada bloquista.

Em 15 de junho, Mariana Mortágua considerou que Mário Centeno não tem "condições políticas" para ser governador do BdP e que o primeiro-ministro não deverá nomeá-lo se a sua proposta não obtiver um apoio maioritário no parlamento.

Já sobre conflitos de interesses, a deputada do BE disse hoje que "o conflito de interesses por natureza está entre reguladores e regulado, entre público e privado, não entre interesse público e interesse público".

Pelo PCP, Duarte Alves afirmou que o partido defende que o BdP tenha um papel soberano, sem obedecer ao Banco Central Europeu (BCE), e que o governador corresponda a esse papel, pelo que a indigitação de Centeno “por si só não cumpre” os princípios que os comunistas defendem.

“Continuaremos a ter um BdP dependente do BCE, continuaremos a ter auditoras e as grandes consultoras que trabalham para os bancos a fazer as auditorias, em vez de ser o BdP a ter meios próprios para as fazer. Continuaremos a ter um BdP que se demite de qualquer papel para impedir a concentração bancárias e a captura da banca nacional pelo capital estrangeiro, um BdP preocupado com a rentabilidade da banca, mais do que com interesse do Banco de Portugal e dos consumidores”, afirmou.

Pelo CDS-PP, Cecília Meireles considerou que há “uma indiscutível maioria” contra a nomeação de Centeno, mas também “uma maioria factual que através das suas votações” viabilizou a ida de Centeno para governador.

“É normal que haja partidos confundidos, eu fico surpreendida é que não haja alguém confundido no meio de tantos ‘flic flac’ e voltas atrás”, disse a deputada, numa referência ao BE.

Já anteriormente Cecília Meireles tinha acusado o BE de mudar de posição, afirmando que, se nenhum partido tivesse alterado posições, a nomeação de Centeno seria incompatível, o que levou a protestos de Mariana Mortágua.

Pela Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo anunciou uma providência cautelar para que seja impedida a nomeação de Centeno como governador antes da conclusão do processo legislativo parlamentar iniciado pelo PAN sobre o tema.

Hoje, na audição, o PAN mostrou-se contra a nomeação de Centeno, considerando que terá conflitos de interesse em dossiês fundamentais da sua função.

“Mário Centeno desvalorizou completamente os conflitos de interesse que irão ocorrer. Portanto, das duas uma: perante decisões e deliberações fundamentais sobre dossiês estruturantes da economia portuguesa ou Mário Centeno irá incumprir o código de consulta do Banco de Portugal ou estará sempre de mãos atadas pedindo escusas nas suas deliberações e posições”, disse André Silva no fim da audição, em declarações aos jornalistas.

Também o Chega, por André Ventura, manifestou a sua posição contra Centeno como governador.

Em 25 de junho, o Governo comunicou ao presidente da Assembleia da República a proposta de nomear o ex-ministro das Finanças Mário Centeno para o cargo de governador do Banco de Portugal.

A escolha de Centeno foi polémica, pelo facto de este responsável passar quase diretamente do Ministério das Finanças (onde foi ministro até junho) para o Banco de Portugal e, em 09 de junho, foi sido mesmo aprovado no parlamento, na generalidade, um projeto do PAN que estabelecia um período de nojo de cinco anos entre o exercício de funções governativas na área das Finanças e o desempenho do cargo de governador.

Contudo, em 17 de junho a esquerda parlamentar (PCP e BE, sendo já sabido que PS era contra) demarcou-se da intenção do PAN de estabelecer esse período de nojo e, em 25 de junho, o parlamento suspendeu por quatro semanas a apreciação na especialidade do projeto do PAN até chegar o parecer pedido ao Banco Central Europeu (BCE), no mesmo dia em que o executivo comunicou oficialmente a sua escolha.

Mário Centeno nasceu no Algarve em 1966 e licenciou-se em economia no ISEG, em Lisboa (onde chegou a professor catedrático). Depois de regressar de Harvard com um doutoramento, em 2000, ingressou no Banco de Portugal, no qual foi economista, diretor-adjunto do Departamento de Estudos Económicos e consultor da administração.

Entre novembro de 2015 e junho de 2020 foi ministro das Finanças dos dois Governos PS liderados por António Costa. Foi eleito presidente do Eurogrupo, o grupo de ministros das Finanças da zona euro, e levou as contas públicas portuguesas ao primeiro saldo positivo em democracia, mais concretamente desde o ano de 1973.

Contudo, o seu percurso também foi feito de polémicas (em 2017, o caso das trocas de SMS com o gestor António Domingues, da Caixa Geral de Depósitos, o que originou uma comissão parlamentar de inquérito, e mais recentemente com o primeiro-ministro sobre a injeção de capital no Novo Banco) e a sua saída foi criticada por quadrantes políticos que o acusaram de abandonar o barco no meio da tempestade provocada pela covid-19.

Quanto ao atual governador, Carlos Costa termina hoje (08 de julho) formalmente o segundo mandato no Banco de Portugal (onde está há 10 anos), mas irá manter-se em funções até à tomada de posse do sucessor.

[Notícia atualizada às 15:30]