Gonçalo Henriques passou de uma empresa de sapatos feitos à medida para uma de meias divertidas, a conversa com o SAPO24 começa com a ideia de que se a sua vida tiver sucesso há de continuar a subir e acabar no negócio dos chapéus. Mas a paixão que tem pelas meias parece mostrar que este é o único sucesso de que precisa. É que este negócio, pelo qual se apaixonou, permite-lhe trabalhar com as suas paixões de sempre, dos carros à música, passou dos sapatos à medida, para as meias à sua medida.

A ideia de trabalhar com meias começa na altura em que sai da Undandy, à memória vinham-lhe os palcos da primeira WebSummit, em Portugal, onde "todos os oradores tinham meias com desenhos, exceto os portugueses. Achei logo aí que era um mercado com potencial." A pesquisa começou nesse momento, olhou para os principais futuros putativos concorrentes: a Stance e a Happy Socks que tinham "linguagens muito próprias. A Happy Socks tem uma linguagem muito juvenil, muito cultura pop. Depois há Stance, que é americana, e que tenta só decalcar um bocadinho os logotipos e as marcas. Então achei que havia espaço para uma terceira. Até no seguimento do espírito da Undandy, pensei que era giro ter os padrões e cores que fizessem uma ligação com algum tipo de paixão." As paixões de Gonçalo confundem-se com o seu negócio, e para lançar a sua a primeira marca de meias foi buscar uma das suas maiores paixões: os carros. "Nasceu assim a nossa primeira marca, a Heel Tread."

A experiência na Undandy revelar-se-ia importante em alguns dos momentos da vida da Sock Affairs, mas no início foi-o acima de tudo por oposição. Gonçalo lembra que quando saiu da Undandy "o mercado online era muito apetecível, mas tinha desafios que ninguém imaginava. Era um mercado muito mais caro, os investimentos eram muito avultados, e havia uma dependência muito grande do Facebook e do Instagram." Depois de sair de uma empresa que, na altura, funcionava exclusivamente em e-commerce, "queria fazer um negócio que fosse mais longe. As suas meias têm apenas dois tamanhos, não se partem, não se estragam, não se riscam. Podem-se mandar para todo o lado: são leves, são fáceis de produzir, e eu queria vender diretamente as meias em lojas. Não queria ter um negócio 100% online."

"Com a pandemia veio a valorizar-se o contacto com o produto e a curadoria que é feita pelas lojas. As pessoas vieram valorizar mais sair de casa. A compra online é muito prática, mas a compra das nossas meias é muito por impulso. Online ninguém compra com paixão."

Mas, como o próprio explica, "quis o destino que fosse tudo ao contrário". O plano era fazer um crowdfunding, "queríamos angariar 20 000 euros, angariámos 2500 euros e mais de metade foi da minha família e da família do meu sogro". Mas nem por isso desistiu, e continuava a achar que tinha em mãos um produto ótimo para pés internacionais. "Nós sempre quisemos ser uma marca internacional, sempre fizemos isto em inglês, até porque os principais amantes de carros estão em Inglaterra e nos Estados Unidos." Em 2018 tiveram a derradeira prova, aproveitaram uma feira automóvel, no Campo Pequeno, para vender meias e notaram que "os estrangeiros compravam, os portugueses riam. Aí percebemos que tínhamos mesmo um negócio. Então mudámos a estratégia". Mas, contudo, ainda não seria essa estratégia vencedora. Os países escolhidos para teste foram Portugal, Espanha, França, "mas não conseguimos nada. E o negócio não funcionava. Eu tinha algumas noções de marketing digital e então conseguimos investir 1000 euros em anúncios do Facebook e a partir daí o negócio foi de vento em popa. No ano anterior tínhamos faturado 40 mil euros e passámos para os 400 mil e depois 700 mil euros".

E, ao contrário do que podia imaginar, o negócio das meias tornou-se mais parecido com a Undandy. Se nos sapatos os clientes escolhiam todos os pormenores do calçado. Nas meias, o desenvolvimento de produto foi com os clientes. "Foi muito giro, os nossos clientes que gostavam de carros iam-nos dizendo que carros gostavam que fizéssemos. E crescemos muito". Já com vendas consolidadas e clientes fiéis, decidiram seguir a mesma linha e pensaram que mais paixões suas podiam partilhar. "Eu e o João, o meu sócio, também gostamos muito de música. Música era uma coleção óbvia. E a Madalena, que entretanto também tinha entrado para a equipa, tem uma grande paixão pela arte e aí lançámos duas marcas: a Curater socks e a Stereo socks. Com a mesma receita que tínhamos para a Heel Tread."

"É uma tendência voltar às lojas também porque o online está muito mais caro e complicado. Antes, por cada 100 euros que investíamos em publicidade vendíamos 400 euros, agora por cada 100 euros vendemos 300 euros. É muito mais complicado ter rentabilidade."

Quando estava tudo pronto para descolar, a pandemia, o encerramento das lojas e o boom das compras online decidiu o rumo do negócio. "A pandemia foi espetacular para o e-commerce, porque estava toda a gente enfiada em casa. Meias eram uma coisa boa para se comprar em casa. Felizmente, a nossa operação estava feita de forma robusta e nada parou porque as meias e a expedição eram todas feitas em Portugal. As pessoas estavam entediadas em casa, estavam com algum receio do futuro, mas gastar dinheiro em meias também era barato e servia o propósito de tornar os dias das pessoas menos negros e mais divertidos."

Mas, no segundo ano da pandemia, mais pessoas se aperceberam das vantagens do e-commerce e "todos os grandes players entraram a fazer anúncios". Como se isso não bastasse, Gonçalo lembra a  "tempestade perfeita, quando o Facebook e a Apple se chatearam por causa da política de privacidade. E a Apple deixou de partilhar esses dados com o Facebook. Ora, o algoritmo deixou de funcionar. Tornou-se muito mais caro e o nosso negocio online tornou-se muito mais complicado". Por esta altura entre as várias opções que tinham para a sobrevivência passou-lhes pela cabeça"matar a Stereo Socks. Mas nós pensámos, isto funciona." E este pensamento não foi mera teimosia e obstinação. Sabiam que  "as lojas estavam a comprar cada vez mais, e era aí onde nós sempre quisemos estar. Demorámos cinco anos a chegar a esse ponto".

"O tecido industrial português não é o mais ambicioso e gosta de negócios muito simples."

Se o caminho do online se fez por vontade própria, também o seu fim. E se uma das dúvidas da humanidade é saber se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha (mas há resposta), neste caso não há dúvida de que foram as filhas que deram origem à empresa mãe. E em vez de matar a Stereo Socks, deram-lhe uma mãe.

Gonçalo Henriques  explica: "nós tínhamos muitas ideias e coisas que queríamos fazer. Sempre que queríamos fazer uma nova coleção, estar a lançar uma nova marca e a criar um novo site era muito penoso e um investimento muito grande. Então criámos uma plataforma mais flexível, e foi assim que há um ano surgiu a Sock Affairs, que tem várias coleções".

Por isso é que este negócio de meias existe desde 2018, mas a Sock Affairs só fez um ano em junho. Um ano a provar que foi a opção certa, diz, "porque as pessoas têm sempre mais do que uma paixão, e conseguimos recuperar um bocadinho o negócio online, embora esteja muito mais fraco. Mas, por outro lado, conseguimos mostrar a marca a tudo o que é lojas. Hoje temos uma marca muito mais flexível."

Tão flexível quanto a criatividade permitir. "Conseguimos fazer parcerias com o Hugo van der Ding, de quem éramos fãs." E com as suas tiras humorísticas nas meias, conseguiram passar a ter clientes em Portugal. "Foi uma experiência gira, funcionou muito bem e a nossa faturação era irrelevante e acabámos o ano passado com cerca de 5% da nossa faturação em Portugal, o que para nós é bom, porque para nós é o nosso país e era importante."

"O made in Portugal é muito valorizado, pela qualidade do produto, pela garantia de que ao nível da sustentabilidade tudo é feito de forma mais correta. Basta cumprir as leis europeias para estar muito a frente e isso é valorizado."

Se em Portugal foi preciso chamar Hugo van der Ding, em Inglaterra, EUA e Alemanha foi apenas preciso mostrar as meias. Estes três países representam 75% das vendas. Tanto nas 400 lojas espalhadas pelo mundo, como online, neste momento funcionam 60% em lojas e 40% online. "É por aí que queremos continuar e que estamos a caminhar".

Se o caminho das lojas físicas parece ser em contraciclo, Gonçalo explica ao SAPO24 que é cada vez mais comum. "Com a pandemia veio a valorizar-se o contacto com o produto e a curadoria que é feita pelas lojas. As pessoas vieram valorizar mais o sair de casa. A compra online é muito prática, mas a compra das nossas meias é muito por impulso. Online ninguém compra com paixão. É uma tendência voltar às lojas também porque o online está muito mais caro e complicado." E continua a explicação, "antes por cada 100 euros que investíamos em publicidade vendíamos 400 euros, agora por cada 100 euros vendemos 300 euros. É muito mais complicado ter rentabilidade."

"O nosso objetivo é que no primeiro ano 10% da nossa produção seja feita por algodão orgânico, no segundo 20%, e no terceiro 30%. O que é muito acima do que as concorrentes grandes fazem, que nenhuma delas produz na Europa, e os planos de sustentabilidade são vagos."

Mas as vendas terem mais expressão no estrangeiro não quer dizer que a empresa não tenha ADN português, muito pelo contrário. Ainda que o processo para o conseguir não tenha sido fácil. Gonçalo, mais uma vez, volta ao passado: "eu felizmente já tinha feito o caminho das pedras da parte da produção quando começou a Undandy".  A expressão usada por Gonçalo não foi aleatória, explica que arranjar fábrica "não é um processo fácil. O tecido industrial português não é o mais ambicioso e gosta de negócios muito simples." E a proposta da Sock Affairs era tudo menos fácil, "era: vamos aqui fazer meias e a nossa tiragem é de 30 ou 40 por desenho, o que é irreal". Mas num negócio de paixões e coincidências felizes, tiveram "a sorte de encontrar uma fábrica na Lousã que também estava a dar os primeiros passos nas meias com desenhos. Achou graça ao projeto, apostou em nós e temos crescido juntos".

A relação virou séria e, hoje, é na fábrica que a Sock Affairs tem duas administrativas, o centro de expedição e uma zona alocada a si. "Eu diria que eles são responsáveis por grande parte do nosso sucesso, e nós do deles - porque depois começaram a  produzir todas as marcas com meias coloridas e isso começou connosco."

"Os representantes do David Bowie disseram-nos que não ao início, mas depois conseguimos mais cindo bandas e ele, entretanto, já disse que sim."

Quem exibe desenhos nos pés não imagina que a técnica possa ser tão difícil. "É mais complicado fazer bem meias do que sapatos, ao nível do design. É uma técnica de desenho complicada. Não é como uma estampagem numa t-shirt. Nós temos que transformar o desenho que fazemos em píxeis para cada agulha da máquina fazer o desenho da meia, e nós aprendemos muito sobre aquilo que conseguimos fazer e aquilo que não é possível. Claro que a nossa equipa de design e de produção também aprendeu muito e hoje fazemos meias que parecem autenticas impressões."

Independentemente do processo, mais fácil ou mais difícil, não duvida do caminho que levou à criação de nove postos de trabalho diretos e cinco indiretos, naquela que é uma equipa 100% nacional. "O made in Portugal é muito valorizado, pela qualidade do produto, pela garantia de que ao nível da sustentabilidade tudo é feito de forma mais correta. Basta cumprir as leis europeias para estar muito a frente e isso é valorizado."

Gonçalo Queirós
Sock Affairs créditos: Diogo Gomes

Ter música sustentável nos pés

Para Gonçalo a sustentabilidade não só é importante, fez dela a prioridade para os próximos três anos. Sustentabilidade na verdadeira aceção da palavra e em todas as suas versões. "Há três pilares importantes na sustentabilidade, sustentabilidade do negócio, sustentabilidade das pessoas e sustentabilidade do produto." Nesta fase da Sock Affairs os pilares do negócio já estão estabelecidos e, garante o fundador, também o das pessoas. "São 100% cumpridos, todas as pessoas que temos pertencem aos quadros, damos todas as condições de trabalho. É uma empresa onde as pessoas gostam de trabalhar, e foi por isso que deixei de trabalhar para outros, faço questão que isso aconteça".  Contudo, no que ao produto diz respeito, reconhece que há um caminho a fazer. Partilha, orgulhoso, com o SAPO24: "fechámos agora o nosso plano: eliminámos o plástico das nossas etiquetas, vamos passar a fazê-las com papel reciclado." E, acrescenta, "estamos a ver, nas mais de 400 cores que usamos, quais delas podemos passar para algodão orgânico, porque não há disponível em todas as cores." Este plano de sustentabilidade será reavaliado daqui a três anos. Mas, para já, o objetivo é que "no primeiro ano 10% da nossa produção seja feita por algodão orgânico, no segundo 20%, e no terceiro 30%." Gonçalo remata: "é muito acima do que as concorrentes grandes fazem, já que nenhuma delas produz na Europa e os planos de sustentabilidade são vagos."

"O que me chateia mais é ainda não termos conseguido é o Picasso, porque o herdeiro não gosta da forma como os desenhos são feitos nas meias.

Mas é impossível falar do sucesso da Sock Affairs sem falar em música. A empresa portuguesa é a primeira marca a ter meias oficiais licenciadas de bandas como Pink Floyd, The Police e AC/DC.  Mas ao contrário de muita da história da marca, não foi por acaso. "Nós sempre quisemos fazer isso, mas demorou cerca de cinco anos. Eu acho que o mais difícil é conseguir o primeiro".

Gonçalo recorda o processo, o primeiro negócio foi com a AC/DC e com os Pink Floyd. "Andámos cerca de três anos atrás deles", conta, mas com a ajuda um parceiro espanhol conseguiram. É que "contactar e chegar à pessoa certa no licenciamento é dificílimo. Mesmo sabendo que numa marca é fácil, por norma fala-se com o dono da marca. Se for com a Porsche, é com a Porsche. Se for com a Ferrari, é com o dono da Ferrari. Mas nas bandas é muito mais complicado, porque há a banda, o agente da banda, a editora, o fotógrafo da capa do álbum. Enquadrar isto tudo é difícil."

Mas conseguiram e, diz Gonçalo, "como em tudo, correu bem com os dois primeiros e depois os outros tornam-se mais fáceis. Os representantes do David Bowie disseram-nos que não ao início, mas depois conseguimos mais cinco bandas e já disse que sim", partilha. Olhando para o futuro, Gonçalo não é parco nos objetivos: "havemos de fazer com todas as bandas, ou pelo menos aquelas eu eu gosto".

"Eu sou uma pessoa de copo meio cheio, ainda não noto que estejamos a viver numa crise de consumo. Andamos quase a entrar para aí há três anos, mas nunca entramos"

Se as bandas o deixam animado, já na coleção de arte tem uma nega que não consegue ultrapassar. "Já houve várias coisas que fizemos que nunca pensámos que íamos fazer. O que me chateia mais é o facto de ainda não termos conseguido o Picasso, porque o herdeiro não gosta da forma como os desenhos são feitos nas meias." Mas reconhece que, "de resto, tudo tem estado a correr bem" e que "tudo tem dado a volta".

"40% da nossa faturação anual era feita de 20 de novembro a 20 de dezembro. Era a loucura, nós tínhamos equipas na fábrica que trabalhavam aos fins de semana para garantir as entregas."

Com o ano quase no fim espera fechá-lo com uma faturação de 1 milhão e 400 mil euros, justifica, dizendo que este ano "foi mais curto em termos de crescimento pelas alterações que estamos a fazer". Já em 2024 espera que o crescimento seja de 25%. O SAPO24 confronta-o com a anunciada crise de consumo e antes de responder sorri. "Eu sou uma pessoa de copo meio cheio, ainda não noto que estejamos a viver numa crise de consumo. Andamos quase a entrar para aí há três anos, mas nunca entramos". Depois da ironia, regressa mais sério: "mas mesmo que isso aconteça,  foi assim que as nossas duas primeiras marcas começaram, foi na crise de 2008. Meias é sempre um bom acessório para se comprar, é sempre uma excelente prenda. E em vez de as pessoas comprarem uma coisa mais cara, se calhar passarão a comprar meias. [A crise do consumo] Não algo que deseje que aconteça, mas não é uma coisa que me assuste."

Quase a chegar ao fim do ano sabe bem quais os planos para 2024, ano que quer fechar com dois milhões de faturação. "Queremos crescer mais ainda nas lojas, vamos testar lojas próprias, vamos abrir a primeira no Natal, no Cascais Shopping. Se correr bem queremos fazê-lo nas cidades onde estão os nossos maiores mercados, na Alemanha, em Inglaterra e nos EUA". E, à semelhança do que tem sido selo da marca, "ter colaborações cada vez mais engraçadas".

"Foi uma surpresa ter um negócio em que de repente ir ver corridas de carros e concertos é trabalho, falar com bandas e com pessoas que nunca achei que ia falar"

O SAPO24 provoca-o com a abertura de uma loja na altura do ano em que se oferecem meias, mas não é nenhuma piada. Gonçalo regressa aos tempos iniciais, quando ainda estavam sobretudo online: "40% da nossa faturação anual era feita de 20 de novembro a 20 de dezembro. Era a loucura, nós tínhamos equipas na fábrica que trabalhavam aos fins de semana para garantir todas as entregas." E acrescenta, "no primeiro blackfriday que fizemos, que eu nem queria fazer, tínhamos às 11 da manhã faturado o mesmo que no mês anterior". Depois de partilhar deixa a ressalva de que "agora, como estamos mais focado em lojas e menos online - e também domamos melhor o bicho -, é diferente. Ainda assim, o natal continua a ser fortíssimo para nós. Nas lojas começa em outubro, mas novembro é mais intenso".

Gonçalo Henriques
Sock Affairs créditos: Diogo Gomes

O bicho de que Gonçalo fala tornou-se um animal doméstico que lhe obedece bem. Gosta de fazer "coisas giras", de perceber "o carinho que os clientes têm por nós", e garante estar a ser recompensado por todos os percalços iniciais. "Foi uma surpresa ter um negócio em que de repente ir ver corridas de carros e concertos é trabalho, além de poder falar com bandas e com pessoas que nunca achei que ia falar".