Em 1983, Silicon Valley era um local onde proliferavam startups tecnológicas, muitas delas a moldar o mundo como o conhecemos hoje. Com o boom económico que se experienciava, um conjunto de empreendedores e investidores decidiu criar o Silicon Valley Bank (SVB), um banco desenhado para as startups e que lhes ia oferecer serviços financeiros ajustados a uma indústria que estava em rápido crescimento.
Entretanto, passaram quatro décadas e o SVD tornou-se no banco de eleição para startups nos EUA e no mundo inteiro, com um foco muito grande em indústrias tecnológicas de rápido crescimento. Isto significa que beneficiava de uma poderosa rede de VCs (Fundos/Sociedades de Capital de Risco), investidores e de empresas que confiavam em si como o principal intermediário em várias etapas de desenvolvimento de negócio: as primeiras rondas de investimento, emissão de obrigações, exits ou IPOs.
Como um banco comercial, o modelo de negócio do SVB era bastante simples: receber os depósitos de startups que acumulavam muito capital e fazer empréstimos a outras empresas que dele necessitassem (e que tivessem bom track record de pagar de volta) — a quem cobrava juros, que geravam por sua vez receitas. Claro, que além de empréstimos também fazia outro tipo de investimentos como a compra de obrigações da dívida americana ou a compra de obrigações de outras empresas, com diferentes tipos de maturidade (a curto prazo ou a longo prazo). E durante 40 anos, este modelo resultou bastante bem.
E depois dois anos mudaram tudo
2021 e o início de 2022 trouxeram algo que, à primeira vista, podia ser visto como bom para o SVB, mas que acabou por não o ser.
A transformação tecnológica potenciada pela pandemia e a maior popularidade de eixos de inovação como a web3 e a inteligência artificial levaram a que as startups tivessem acesso a capital a um ritmo nunca antes visto.
Isto levou a elevadas rondas de investimento apoiadas por VCs muito interessados no potencial retorno destas indústrias, que de seguida precisavam de ser depositadas nas contas bancárias das startups (já criadas em bancos como o SVB).
De 2021 para 2022, os depósitos no Silicon Valley Bank passaram de cerca de 60 mil milhões de dólares para mais de 180 mil milhões, o que num panorama normal seriam ótimas notícias.
No entanto, da perspetiva do modelo de negócio de um banco destinado a startups como o SVB... não eram. Os 180 mil milhões não eram do banco. Era dinheiro das startups clientes do SVB que, para gerar algum retorno, tinha primeiro: 1) ser emprestado a outras startups que dele precisassem, 2) regressar ao banco com juros significativos em cima.
Só que durante 2021 e início de 2022, como as taxas de juro estavam perto de 0%, o banco enfrentava duas situações complicadas: 1) muitas startups não precisavam de pedir dinheiro porque estavam a levantar rondas de investimento, 2) as que precisavam de crédito devolviam ao banco praticamente o montante do empréstimo.
Resumindo, o modelo tradicional não estava a funcionar e o Silicon Valley Bank não conseguia gerar receitas significativas. Então, o banco começou a olhar para outros ativos que pudessem gerar maior retorno — e foi aí que começou a comprar obrigações de dívida ligadas ao governo americano e a créditos à habitação com maturidades a longo prazo (+ 10 anos)
Como funcionam obrigações da dívida: os emissores de dívida estabelecem um valor pelo qual se querem endividar e o número de obrigações que querem colocar à venda (mil euros de dívida podem ser 1.000 obrigações avaliadas em 1 euro). Ou seja, comprometem-se com uma data para pagar o valor que estão a emitir e definem uma taxa de juro de X% (que neste contexto se chama cupão), que têm de pagar ao investidor em cada ano que detém as obrigações.
Qual é o perigo com obrigações da dívida? Num caso de subida considerável das taxas de juro, a atratividade de novas obrigações da dívida vão ser maiores porque o retorno esperado é mais elevado, o que leva a que os investidores procurem livrar-se das antigas, o que por sua vez vai fazer com que o seu valor de mercado desça (lei da procura e oferta a funcionar).
O início da falência
Durante 1 ano e meio, face à incapacidade de fazer empréstimos ao ritmo que desejava, a SVB investiu fortemente em obrigações da dívida, acabando 2022 com 72 mil milhões de dólares em empréstimos e cerca de 120 mil milhões de dólares em obrigações da dívida. E, até aqui, tudo bem.
Só que depois veio uma crise financeira, as taxas de juro subiram e a inflação atingiu níveis que há muito não eram vistos. As startups já não conseguem ter facilmente acesso a capital, a sua estrutura de custos aumenta consideravelmente e, de repente, têm de levantar dinheiro da conta mais regularmente do que o Silicon Valley Bank esperava. O dinheiro é uma questão de confiança e, portanto, as startups, tal como fazemos com as nossas contas bancárias, agem com a expectativa de que o seu dinheiro está perfeitamente guardado onde o deixaram.
Contudo, nos bastidores, o SVB andou a fazer movimentações com o mesmo e apercebe-se progressivamente que têm um problema em mãos. Como investiu a maior parte do dinheiro dos seus clientes em ativos de longo prazo, não tem a liquidez necessária para garantir que cada vez que uma startup quer levantar dinheiro da conta o dinheiro está de facto lá. Então, para assegurar que tal acontece, tem de começar a vender as obrigações de dívida que tinha comprado um ano antes. O problema disto? Devido à subida das taxas de juro, valem menos hoje do que quando as comprou.
Então, cada vez que quer resolver um problema de liquidez e assegurar que os seus clientes têm dinheiro na conta, o SVB está a acumular prejuízos e a perder parte do seu dinheiro. Este processo repetido várias vezes cria um efeito bola de neve e leva ao colapso.
Na semana passada: soaram os alertas na indústria quando, sem razão aparente, o SVB procurou levantar uma ronda de capital junto de investidores. E quando as startups, os VCs e os media perceberam que o banco não tinha dinheiro para pagar aos seus clientes, criou-se um clima de pânico, levando a que muitas empresas procurassem transferir o seu dinheiro com diferentes graus de sucesso. O resultado? A cotação em Bolsa do Silicon Valley Bank caiu 60% de um dia para o outro e os reguladores bancários americanos acabaram por decidir fechar o banco.
- Não é o Lehmann Brothers: é uma comparação normal de ser feita, mas para já parece ser uma situação diferente. A queda do banco americano em 2008 foi resultado de práticas fraudulentas e de uma situação económica dos bancos bastante mais desfavorável. O caso do Silicon Valley Bank aparenta ser "apenas" uma decisão estratégica que devido a mau timing acabou por ter um impacto muito negativo no banco e no dinheiro dos seus clientes.
Daqui para a frente: saberemos mais sobre as ramificações da queda do SVB e o seu contágio noutros bancos ou na saúde financeira de algumas startups, mas duas coisas já foram asseguradas pela Reserva Federal Americana (conhecida por "Fed"): os clientes vão ver o seu dinheiro restituído e vai-se iniciar um processo de venda dos diferentes ativos que o banco ainda detinha (i.e a subsidiária britânica foi comprada por 1 libra pelo maior banco da Europa).
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