"Os cabelos, para o povo negro, são uma parte muito fundamental para a sua identidade. Hoje, aqui em Portugal, nós que somos descendentes e imigrantes desse local, resgatámos essa ancestralidade através do cabelo", disse à agência Lusa a trancista Mariana Desidério.
Proprietária de um cabeleireiro no Cacém, esta trancista e investigadora na área antropológica, contou que, por ser brasileira, embora afrodescendente, era olhada com desconfiança quando fazia trabalhos de tranças africanas.
Ao fim de alguns anos em Portugal abriu o seu negócio, sendo hoje procurada por dezenas de clientes fixos, na maioria afrodescendentes de vários países lusófonos, que às suas mãos se entregam durante horas para conseguirem o resultado final.
Mariana sublinha o muito que mudou desde que começou a trançar, existindo hoje muitos mais produtos que ajudam o trabalho, mas sobretudo um maior conhecimento sobre o cabelo crespo e os cuidados que exige.
"Por ser um fio muito fino, ele requer um pouco mais de atenção", disse, acrescentando: "Os profissionais voltados para este tipo de cabelo têm de ter cuidado no processo inicial, de desembaraçar e fazer com que ele fique mais plástico para as possibilidades que ele nos permite".
Quando ainda vivia no Brasil, foi a autora de penteados que o fotógrafo Robério Braga registou no livro "Tranças Barrocas", em que sobressai o contraste das tranças com a arquitetura das igrejas barrocas da capital baiana.
Tranças soltas ou corridas (nagô) são alguns dos exemplos de penteados que Mariana produz no seu salão Crespodara, continuando assim uma arte que nasceu na Namíbia cerca de 3.500 a.C. e que identificava a idade, o estado civil, a tribo, a religião, a riqueza e o poder de quem os usava.
Hoje, são sinal de resistência, aceitação, afirmação e representatividade do povo negro e de uma África onde as tranças nasceram.
Mariana também realiza e faz a manutenção de cabelos rasta, que ela própria já usou, numa altura em que sentiu, mais do que nunca, quem era.
No dia em que recebeu a Lusa encontrava-se a fazer a manutenção de um cabelo rasta (coser raiz), a qual durou seis horas, ainda assim menos do que "um dia inteiro" que era o que demoraria a realizar o penteado do zero.
A manutenção das rastas permite organizá-las e, com a ajuda de uma agulha de coser, a cabeleireira une o cabelo mais recente ao corpo da rasta.
Alan, um brasileiro com sangue espanhol, bailarino intérprete e criador, entrega com humor as suas rastas nas mãos de Mariana. Enquanto o seu cabelo era "organizado", contou à Lusa que ainda vivia em Espanha quando, em 2019, fez as suas rastas e que, desde logo, sentiu sobre si mais olhares desconfiados.
Mais tarde, antes de viver em Portugal, esteve neste país a passar férias e novamente sentiu o preconceito. E se tal não o impede de trabalhar, o mesmo não seria possível em companhias nacionais.
Para Alan, usar rastas representa "muita coisa": "História, afirmação, representatividade".
E lamenta a forma lenta como as coisas vão evoluindo, embora encontre sinais, como a existência de um jornalista português com rastas a apresentar noticiários televisivos.
"Há um racismo muito grande, uma intolerância muito grande", lamentou.
No salão de Mariana as tranças soltas e as corridas são as mais procuradas. Os clientes optam pelas que duram mais tempo e estão sempre apresentáveis, desde que recebam uma higiene e hidratação corretas.
Com os ombros, braços e costas a darem sinais das muitas horas em pressão, a trancista diz que um penteado demora entre três e 11 horas e muita paciência.
Larissa Candeiro é uma angolana a viver em Lisboa há três anos e que tem um salão onde faz tranças africanas, um "talento" que Deus lhe deu, como faz questão de afirmar, recordando que começou a trançar muito cedo.
"As tranças em África é tipo beber água, é o pão de cada dia. Nós aprendemos a trançar em casa, nas primas, nas tias, nas avós. Depois, fui aperfeiçoando nas primas", disse à Lusa, enquanto se preparava para fazer sete tranças corridas (nagô) no cabelo da jovem Linda.
O processo começou com a secagem e o esticamento do cabelo, com auxílio de um pente e secador. Antes de iniciar as tranças, Larissa coloca cera gel, que ajuda a trança a ficar mais firme e "bonitinha".
A trancista contou que começou por trançar em casa e que depois optou por um salão. Hoje, congratula-se por ter um cabeleireiro perto da Avenida da Liberdade, uma das mais importantes artérias de Lisboa.
O cabeleireiro tem forte concorrência, mas Larrissa sabe que a procura também é cada vez maior, o que atribui ao aumento do reconhecimento da identidade dos africanos e afrodescendentes.
"É um pouco o reconhecer da nossa identidade. Já não fazemos muita trança por moda, nem porque precisamos de ter o cabelo preso, mas sim porque é uma identidade, é uma identidade africana, é uma identidade nossa. Então, no fundo, fazemos tranças também para nos posicionarmos como africanos".
Apesar de reconhecer que hoje já existem mais produtos para o cabelo afro, acha que ainda são poucos. Ainda assim, agora já não precisa de improvisar com produtos naturais, como no passado, tendo à disposição, por exemplo, várias espumas com que finaliza o trabalho.
No salão de Larissa entram todos os tipos de pessoas e de todas as idades. As tranças mais procuradas são as tranças soltas, porque são as que duram mais tempo.
Apesar de aconselhar que as tranças sejam feitas a cada mês, a trancista sabe que este período é muitas vezes prolongado para dois e até três meses, devido ao custo da trança.
Larissa faz questão de terminar o serviço com um aconselhamento aos clientes com os cuidados a ter, como evitar passar a mão no cabelo com frequência, dormir com touca de cetim e não esfregar as tranças ao lavar.
Satisfeita com o resultado final do trabalho de Larissa, a jovem Linda Varela disse à Lusa que o seu penteado preferido são as tranças soltas, até porque estas duram mais.
O facto de demorar horas é um incómodo para Linda, mas no final não tem dúvidas de que vale a pena o sacrifício e garante que toma todos os cuidados para o seu penteado estar bonito o máximo tempo possível.
*** Sandra Moutinho (texto), Rui Pereira e Pedro Lapinha (vídeo) e António Pedro Santos (fotos), da agência Lusa ***
SMM // VM
Lusa/Fim
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