1.

Na escrita de Agustina Bessa-Luís.

Como se não existisse um segundo salto ou a oportunidade de um segundo salto. E daí, isto: a frase concentrada; a frase de substância espessa, de várias camadas. Olhamos para ela e não vemos o fundo, impossível ver a parte de trás da frase porque não há transparência; das palavras não caminhamos para outro lado. Primeiro, elas obrigam-nos a parar, desaceleram a velocidade de leitura; com a exacta ironia de quem atrasa o outro, as palavras dizem: mais devagar! Presta atenção!

2.

Mas nem sempre é assim. Travamos tanto mais violentamente quanto mais rápido antes avançávamos. Porque só pára quem antes se movimentava; impossível parar o já parado. Como se Agustina Bessa-Luís dissesse, para si própria: vai ao teu ritmo leitor que, quando menos esperares, o livro te exigirá outra velocidade.

E há mesmo quem tropece.

3.

Em suma, aquilo a que vulgarmente se chama aforismos são frases, afinal, de um outro tempo; frases como que religiosas, no sentido em que saem do século, do ritmo temporal normal.

Diz Sören em Estados eróticos imediatos...: “A desgraça dela é a de não conhecer nada de superior a um ser humano”. Eis, transpondo, a desgraça possível de um leitor: a de não ser capaz de ler uma frase que exige um ritmo distinto do ritmo habitual da cidade. Ler não é continuar na cidade, ler é sair dela; sair de uma civilização para entrar noutra.

Ver alguém, no metro de Lisboa, com um livro de Agustina na mão, lembra “aquele pastor que, chegando a ministro, levou para a corte o seu cajado” (A Quinta Essência); ou, invertendo a sentença, lembra o rei que, mesmo a trabalhar no campo, sujo de terra, mantém a coroa na cabeça.

4.

“... você acredita em tudo! Assim não dá gosto falar”, diz uma das personagens de um conto de Agustina. Céptica, a escritora, tem gosto em ouvir e em escrever.

Há personagens, mas as personagens são muitas vezes frases com circunstâncias; frases em circunstâncias. Trata-se de um velho instinto Grego; esse instinto de pensar que os homens se revelam não tanto pelos actos heróicos, mas pelo que conseguem dizer nos momentos de aflição ou de êxtase; ou ainda nos momentos de neutro tédio. O que diz quem salva; o que diz quem é resgatado; o que diz quem trai; o que diz quem é traído; o que diz quem mata no momento em que mata; o que diz quem morre no momento em que se despede. Medimos o carácter de um homem (de uma personagem) pelo espírito que revela em cada circunstância; isto é: pelo que diz. Um herói só é verdadeiramente herói se actuar e se falar como tal.

Mas ainda importa isto, que é revelador de grande minúcia literária e que se constitui como um dos mais importantes diagnósticos do nosso tempo: o que diz quem sem entusiasmo repete um hábito, uma acção sem sentido? Eis o herói neutro, aquele que mais espaço ocupa na cidade actual. Como pode um entediado dizer coisas admiráveis? Eis o que muitas páginas revelam, surpreendendo-nos.

Admiramos assim as personagens destes romances não pelo que elas fazem, mas pelo o que elas prometem fazer verbalmente; não as julgamos pelos crimes, mas pela qualidade dos discursos de perdão ou, pelo contrário, de ausência de arrependimento. Como se disséssemos, plenos de compreensão: sim, é verdade, traíste e mataste, mas depois disseste coisas admiráveis. Ou então: sempre foste um bom homem, sim, mas nem uma das tuas frases me fez pensar.

Estamos, pois, numa moral que dos actos passa para a linguagem, e é esta ironia (ou até cinismo) que encanta. Quem escreve estes romances não tem ilusões sobre o mundo que rodeia o humano e sobre o mundo que o humano é. Tudo é vulgar, se a linguagem não o salvar.

Grandíssima Agustina!