Os israelitas matam os árabes; os muçulmanos querem eliminar os judeus; os russos negam a existência dos ucranianos  - isto para citar apenas dois dos muitos conflitos sangrentos que nos entram casa adentro no noticiário, entre muitos outros que nem merecem exposição mediática. Poderiam ser roteiros de filmes épicos passados noutras eras, em que tribos rivais se destruiam por motivos que agora consideramos imorais ou fúteis. No entanto, estão a acontecer. Aconteceram sempre, se formos ver a História.

Os especialistas, politólogos e historiadores, encontram razões concretas para as guerras. O Poder seria o mais prevalecente, mas a palavra não inclui meramente um sentimento individual de egoísmo. Colectivamente, Poder significa bens materiais, rotas comerciais, direitos políticos, vantagens concretas e sociais.

Contudo, os antropólogos e os sociólogos são capazes de ultrapassar as razões concretas, que variaram ao longo da História, em constantes que sempre surgem por trás da ferocidade: a religião, a cultura e a raça. (Raça só há uma, a humana, mas o termo etnia, que vem da Idade Média, só aparece no Dicionário de Oxford em 1953! Considera-se que raça é a aparência física e a etnia, a origem cultural. Mas raça continua a ser usada correntemente em vez de etnia, sobretudo pejorativamente e, para simplificar a história, vamos utilizar raça tanto como aparência como cultura.)

Em geral, a religião aparece à cabeça dos motivos pelos quais as pessoas se matam (e torturam, violam, e todas as maldades possíveis). Pode parecer ilógico que as pessoas se matem nesta vida, por terem ideias diferentes quanto à próxima, mas a lógica não é definitivamente, o motor da História. A religião é um factor cultural muito forte, que leva as tribos a desdenhar e mesmo detestar tribos com outros hábitos culturais. (Vou usar tribo como sinónimo de sociedade, uma vez que a diferença é basicamente de dimensão e as sociedades de hoje comportam-se como as tribos de antigamente.)

Todos conhecemos, pelo menos, as principais guerras religiosas que assolaram a Europa - para só ficar pela Europa, senão isto nunca mais acabava. Houve, notoriamente, a rivalidade bélica entre cristãos e muçulmanos, que dominaram o Continente e o Norte de África durante séculos, desde que nasceu a religião muçulmana, no século VII. A religião cristã (Católica Apostólica Romana) serviu de justificação para incontáveis guerras, invasões, saques e massacres. Mesmo entre eles, os cristãos não deixaram de se brutalizar, quer individualmente, com a Inquisição, quer colectivamente, com a liquidação de minorias como os gnosticistas ou os paulicianos.

Quando surgiu a grande cisão dentro do catolicismo romano, com Lutero e Calvino, foi um fartar vilanagem. As novas fés, “protestantes”, deram origem a massacres de populações inteiras, como os Huguenotes. E novas fés cristãs nascidas por motivos muito pouco religiosos, como o Anglicanismo que veio do desejo do rei Henrique VIII de Inglaterra se divorciar de Catarina de Aragão e casar com Ana Bolena.

Este caso é interessante, porque mostra como a religião foi apenas uma desculpa para outros interesses. Catarina de Aragão era filha do rei de Espanha, Fernando II, o maior contribuinte para o papa Alexandre VI, que portanto não podia permitir a desfeita dela ser rejeitada por Henrique VIII. Não obtendo a anulação do casamento (a Igreja não admite o divórcio), o rei resolveu as coisas da maneira mais prática: fundou uma nova religião “protestante” que dura até hoje. Durante cerca de dois séculos os ingleses mataram-se aos milhares, conforme fossem “papistas” ou “anglicanos”. Uma das filhas de Henrique, Maria, era católica e a outra Isabel I, protestante. Maria acabou com a cabeça decepada e Isabel tornou-se a primeira rainha do Império Inglês.

A religião, só por si, já é uma grande causa de morte, mas os seus efeitos multiplicam-se quando se mistura com raça e cultura. Há um debate nunca concluído que é o de saber se a religião determina a cultura de uma tribo, ou se é a cultura que cria a religião. Haverá razões culturais para as igrejas cristãs não católicas terem mais implantação nos países nórdicos e a católica no Sul da Europa - isso é indiscutível. Mas até que ponto se identifica cultura com religião, permanece um debate em aberto. O facto é que, depois de séculos de hostilidade, as igrejas cristãs têm hoje um convívio pacífico. O mesmo não acontece entre cristãos e muçulmanos e, sobretudo, entre muçulmanos e judeus.

Ser judeu é uma religião ou uma raça?

Nos Estados Unidos, fui casado com uma judia, muito pouco ortodoxa - são os judeus cujas práticas religiosas são nulas, como acontece com os católicos; celebram as principais festas e vão ao templo ou igreja uma vez por ano, ou para casar e “baptizar”. Perguntei-lhe se era uma raça ou uma religião? “É uma religião, porque há judeus de todos os matizes, louros, escuros, até negros”, respondeu-me. Então se é uma religião, porque é que tem uma identidade tão forte e uma cumplicidade que ultrapassa muitas vezes a nacionalidade? Um católico não se identifica como católico (a não ser que a religião seja o tema da conversa), mas os judeus fazem questão em alegar que o são, quando isso lhes traz vantagens. Por exemplo, quando eu fazia compras ou marcações ao telefone e usava o apelido dela, o tratamento era completamente diferente. Este é o âmago da questão.

A resposta (ambígua) que ela me deu à segunda questão, pode ser encontrada aqui , uma página oficial dos próprios judeus. São tudo ao mesmo tempo: uma religião e uma cultura, que pode ter qualquer nacionalidade - mas essa nacionalidade não elimina a sua “qualidade” de judeus. Coloquei “qualidade” entre aspas, porque não é possível definir precisamente o que são, embora seja evidente que o são. Para quem não leu o link atrás, há uma parte no final que vale a pena destacar: diz que qualquer pessoa se pode converter e tornar-se judeu. Assim sendo, seria uma religião. Mas o facto é que eles não estão nada interessados em converter os “gentios”. A única situação em que lhes interessa essa conversão é quando uma mulher gentia casa com um judeu; se ela não se converter, os filhos não serão judeus. Para eles, o judaísmo é transmitido pela mãe, porque, segundo dizem com um certo senso comum, “o pai nunca se tem a certeza quem é”( temos provérbio idêntico) . Mas então, se se transmite geneticamente, será uma raça e não uma religião, não é verdade?

Esta ambiguidade tem-os servido muito bem. É o caso dos sefarditas portugueses. Uma lei de 2013 (43/2013) permite que os descendentes dos judeus expulsos de Portugal em 1496 possam adquirir a nacionalidade portuguesa. Até que ponto é que uma pessoa cujos tataravós saíram de Portugal há 527 anos pode ser considerada portuguesa? É uma pessoa que não viveu em Portugal, nunca viveu e talvez até nem consiga localizar o país num mapa. Não fala a nossa língua, não conhece a nossa história nem sabe se vivemos bem ou mal. Pode inferir-se que essa pessoa pretende a nacionalidade porque isso lhe traz algum tipo de vantagem.

Desde que saiu a lei, houve mais de 80.000 pedidos de naturalização e foram concedidos 32.000. Por acaso, soube-se que um desses casos é Roman Abramovich, o famoso oligarca russo que mora em Londres. Embora seja de origem asquenaze (um ramo separado do sefardita), Abramovich diz ter descoberto antepassados sefarditas na comunidade judaica de Hamburgo, e assim naturalizou-se português em 2021. Além disso é russo, israelita e lituano.

A questão é até que distância na História se pode recuar para ter certos direitos? Para efeitos práticos - muitas vezes pecuniários, relacionados com propriedades imóveis e móveis - tem de haver um limite. Este problema tem-se levantado nos países do Leste da Europa, em que certas propriedades foram confiscadas pelos nazis, depois nacionalizadas pelos comunistas e vendidas ou dadas a uma família. Tudo operações legais, uma vez que os nazis eram a autoridade na altura, assim como o governo comunista subsequente. Até que ponto é que a família despojada pelos nazis tem direito a reaver uma propriedade entretanto comprada legalmente por outra família?

Estou a desviar-me do tema. E o tema é a relação entre três valores essenciais ao ser humano, individual ou colectivamente, que são a religião, a raça e a cultura - isto a propósito da história do momento, a guerra entre Israel e o Hamas. (A invasão da Ucrânia, que levanta alguns problemas iguais e outros diferentes, fica para depois…)

Muito se tem escrito sobre a situação que, por razões que me escapam, divide grosso modo a “esquerda” e a “direita”. Divide até os judeus, uma vez que há alguns que se declararam contra o gueto da faixa de Gaza, contra mais de cinquenta anos de despojamento dos palestinianos e contra as manobras para impedir a formação de um Estado palestiniano.

A situação é tão surreal, que existe em Israel uma corrente ultra-ortodoxa de judeus que também não reconhecem o Estado, porque ainda não surgiu o Messias verdadeiro e que graças a isso não cumprem o serviço militar nem pagam impostos! Mas vamos ignorar essa franja tresloucada, senão fica impossível concluir alguma coisa.

Então, estamos perante uma guerra religiosa, uma guerra racial, ou as duas coisas?

Uma coisa é certa: não podemos afirmar nem uma razão nem outra.

Podemos falar de interesses geoestratégicos, da vontade imensa do Irão em se tornar uma potência regional, dos Estados Unidos envolvidos numa situação política global que envolve pelo menos três inimigos - China, Rússia e Irão -, do direito à sobrevivência dos israelitas, que edificaram um Estado moderno onde não havia nada, do direito dos palestinianos a terem um país, da brutalidade inenarrável do Hamas, da impossibilidade de resgatar 150 reféns sem matar toda a gente, da indiferença dos riquíssimos estados árabes perante a miséria dos outros, da questão bizantina que separa sunitas e xiitas.

Podemos falar de tudo o que quisermos menos que a religião mata e a raça esfola. Seria politicamente incorreto.