Se há país que está geograficamente no olho do furacão, é sem dúvida a Síria. O país atual tornou-se independente logo a seguir à I Guerra Mundial, por decisão dos franceses, que ficaram com o “mandato” sobre o que tinha sido uma província otomana.

O reino libertado da ocupação do Império Otomano tornou-se, pelo menos no papel, uma muito democrática república parlamentar, o que realmente nunca chegou a acontecer. Aliás, basta ver a situação geográfica e política da região para perceber logo que só uma segunda vinda de Cristo, ou de Maomé poderia, eventualmente, trazer paz e estabilidade.

Para começar, tem fronteiras com a Turquia a norte, O Iraque a Leste, a Jordânia a sul, e Israel e o Líbano a sudoeste e duas cidades no Mediterrâneo (entaladas entre a Turquia e o Líbano, onde se encontra uma base marítima russa.)

Depois, a população de cerca de 26 milhões é composta por maioritariamente por sunitas, com minorias alawitas (uma seita shiita), cristãos (ortodoxos e católicos), druzos, ismaelitas, iazidis e judeus.

Como já aqui falei muitas vezes as partilhas feitas por europeus, muitas vezes sem lá porem os pés, criaram várias destas situações inevitavelmente explosivas.

No caso da Síria, as lutas tribais começaram logo em 1946 e duraram até 1970, ano em que o alauwita Hafez al-Assad conseguiu dominar as outras tribos e começou uma longa e violenta ditadura que durou até 2000. Ficou famoso por arrasar a cidade rebelde de Hama, em 1982 – quando digo arrasar quero dizer muito mais do que os israelitas fizeram em Gaza, onde só mataram 70.000 pessoas.

Fora a repressão a céu aberto de cidades e vilas consideradas rebeldes, Hafez mantinha uma polícia “secreta” e todas as forcas militarizadas com poderes absolutos sobre quem lhes apetecia. Aquando da queda do regime, o ano passado, foram encontradas valas comuns com milhares de cadáveres e prisões gigantescas com detidos torturados, amputados e mortos de fome.

Com a morte de Hafez – na cama, pacificamente, acompanhado dos seus – a ditadura passou para o seu segundo filho, Bashar, porque o mais velho tinha morrido num desastre de automóvel. Muito de bom se esperava dele. Vivia em Londres, era oftalmologista e casado com Asma, uma corretora da Bolsa de Valores londrina. Tinham três filhos pequenos. Ao princípio Asma declarou que ia mudar a situação das mulheres no país e os al-Assad pagaram a agências de comunicação para os apresentar como uma família modelo.

Foi sol de pouca dura. O ditador tinha boas relações com os russos e os iranianos; todo o armamento enviado por Teerão para combater os israelitas passava pela Síria, a caminho do Líbano (dominado pelo Hezbolah). Além disso Assad era o maior produtor de Captagon, a anfetamina mais vendida nos países da região.

Todas as manifestações de protesto eram repelidas com a máxima violência e mesmo os não-protestantes arriscavam-se a desaparecer sob a vingança pessoal dos minions de Assad.

Contudo, houve um inimigo que ele não conseguiu derrotar: o Isis, ou Daesh, que chegou a controlar várias regiões semidesérticas do país e usava métodos ainda mais brutais contra as tribos dispersas pelo Iraque. Foram precisos os americanos, os russos e os curdos para acabarem com aquele horror de proporções bíblicas.

O povo do Síria e parte do Iraque usou toda a sua força para fugir ao Isis, que tinha métodos muito criativos de matar os “infiéis”, inclusive armas químicas, defenestrações, amputações, enforcamentos e outras barbaridades que eu não sei descrever. (Como é que se chama quando uma pessoa é colocada numa jaula e queimada viva?)

Finalmente, ao fim de cinquenta anos do regime al-Assad, criaram-se as condições para que ele fosse deposto. O que aconteceu, em traços gerais, é que os israelitas, benzam-nos Jeová, conseguiram, por métodos que não vamos falar, debilitar o Hezbolah no Líbano (os pagers armadilhados, lembram-se?), diminuir a operacionalidade do Hamas e, a ginja no pudim, intimidar o Irão com bombardeamentos estratégicos. Assad viu-se enfraquecido e, aproveitando a oportunidade (com ajuda israelita, não confirmo nem nego) de o derrotar tornou-se possível.

Todos os grupos que durante 50 anos não desistiram, juntaram-se sob a direção de um ex-comandante do Daesh. Ahmed al-Shara e tomaram Damasco em três dias – enquanto a família Assad foi salva pelos russos, que os voaram para Moscovo. Com milhões de valores acumulados na Suíça, a simpática família, mais os serviçais, passaram a viver na capital russa, que parece que continua sem sentir os efeitos da invasão da Ucrânia.

Pensando bem, deve ser mais agradável viver em Moscovo do que nas cidades norte-americanas, cheias de agentes do ICE... Quanto a Ahmed al-Shara, cortou o cabelo, comprou fatos, camisas e gravatas e apresenta-se agora como um democrata cheio de boa vontade em unir as muitas tribos da Síria. Abandonou as suas raízes jiadistas, inclusive as ligações ao Daesh e prometeu controlar os extremistas muçulmanos das suas tropas contra as minorias consideradas heréticas.

Para já conseguiu que os Estados Unidos, a Europa e os Estados árabes, acabassem com as sanções que tinham imposto a Hassad e começassem a dar alguns apoios financeiros. O massacre de milhares de civis alawitas que as suas forças armadas fizeram em Março, foram tomados como a justa vingança contra a ditadura.

Mas mais recentemente os seus soldados começaram a mal-tratar e fuzilar civis indiscriminadamente. O líder espiritual dos drusos propõe que a região deles, Sweida, forme um estado independente. E os curdos reduziram as negociações para fazer parte do novo governo e proibiram os funcionários de Damasco de entrar na sua zona.

Para a maioria da população, estes e outros massacres, devidamente documentados, demonstram que o que está a acontecer é uma nova ditadura e que só mudam os perpetradores. Aliás, as forças de Damasco têm filmado as atrocidades, que andam pela internet com comentários de regozijo. As notícias falam em pelo menos dois mil drusos fuzilados.

Claro que os drusos já começaram a revidar, liquidando as tropas governamentais apanhadas em emboscadas.

As promessas de Ahmed al-Sahara parecem cada vez mais distantes. Um grupo de jornalistas no The New York Times tem percorrido a Síria e recolheu depoimentos, vídeos e outra provas de que realmente a situação está a ficar igual à Síria da ditadura. Ou pior, uma vez que agora são vários os grupos que se defrontam.

Uma democracia não se faz por decreto nem com desconfiança de todas as partes. A Síria, depois de uma ditadura de 50 anos, agora vive uma anarquia sem fim à vista.

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