Não há forma de escapar à torrente de notícias relacionadas com os abusos sexuais no contexto da igreja. O início desta semana, por exemplo, foi pautado pela apresentação do relatório da Comissão Independente. Como era expectável, a publicação deste documento gerou dezenas de notícias, umas com testemunhos horrendos, outras com números, declarações oficiais dos representantes da ICAR, opiniões, etc. Não há como fugir à mediatização e, mais importante, as vítimas não têm descanso e são frequentemente confrontadas com a possibilidade de retraumatização.

Foi assim que muitas vítimas viveram 2022, um ano pautado por uma constante mediatização de notícias relacionadas com os abusos sexuais na igreja. Logo no arranque da Comissão Independente houve uma exposição enorme devido à validação de 102 testemunhos, tudo em menos de uma semana. O resto do ano não foi diferente, e era frequente haver comunicados e novas notícias relacionadas com estes temas.

Tenha o crime ocorrido na igreja ou noutro contexto, para uma vítima de violência sexual estes momentos mediáticos podem ser particularmente dolorosos. Vários dos homens sobreviventes de abuso sexual que são apoiados pela Quebrar o Silêncio relataram isso mesmo. Fosse nas sessões de psicologia ou nos grupos de ajuda mútua, o sentimento era este: os homens acusavam uma sensação de asfixia e falta de espaço relativamente ao assunto. Não tinham como fugir. Mesmo quando as vítimas decidiam não ler ou ver mais notícias, o tema era tão inescapável que era motivo de conversa por colegas no trabalho ou mesmo nas suas próprias casas.

Como consequência, os homens sobreviventes viram a intensificação de algumas das consequências geradas pelo trauma do abuso sexual, como o aumento dos pensamentos e memórias indesejadas do abuso, flashbacks, aumento da ansiedade, angústia e tristeza, entre outras. Esta é a outra face desta realidade: as notícias têm um impacto no bem-estar psicológico e emocional das vítimas deste tipo de violência sexual, impacto esse que por vezes é ignorado.

Como em tudo na vida, é preciso encontrar um equilíbrio, mas onde está a linha que o define? A resposta não é fácil. Sabemos que a violência sexual é crime comummente noticiado nos diferentes órgãos da comunicação social, algo que é fundamental para informar o público sobre este tema. No entanto, é preciso refletir sobre o impacto que as notícias podem ter nas vítimas, para que possamos encontrar o equilíbrio entre informar e não ser danoso para as muitas vítimas que estão em silêncio.

Voltando às notícias da atualidade, sabemos que foram desocultadas 4815 vítimas de violência sexual no contexto da igreja desde 1950. Não me canso de repetir que quando falamos de números e estatísticas não nos podemos esquecer de que estamos a falar de pessoas. Estes números representam homens e mulheres que fazem parte do nosso quotidiano. São os nossos amigos com quem saímos e vamos ao cinema, são os nossos familiares com quem partilhamos uma refeição e vamos de férias, são os nossos colegas de trabalho com quem passamos oito ou mais horas por dia. São homens e mulheres cujo passado foi marcado por uma experiência traumática, mas que vivem e sofrem em silêncio.

A maioria das vítimas não partilha a sua história de abuso por vergonha, por medo da reação das outras pessoas, entre muitos outros motivos, e nestes momentos mediáticos acabam por lidar com tudo isto em segredo. Assim, também seria importante que as notícias, além de informarem, pudessem incluir, em nota de rodapé, os contactos das associações de apoio especializado para vítimas de violência sexual. A inclusão destes contactos, como já se faz com temas como o suicídio, é fundamental para que as vítimas, que desconhecem estas respostas, tenham oportunidade de dar o primeiro passo para procurarem ajuda, quando se sentirem preparadas.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

UMAR EIR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.