Parece-me inglória a tentativa de argumentar contra uma maioria da generalidade da sociedade, maioria essa que se queixa de intransigência da parte de quem participa e tão avidamente defende a PRAXE quando, na realidade, a intransigência vem justamente de si, de quem vê de fora e não se preocupa em entender tal fenómeno. São claros os exemplos de desinformação prestados quase diariamente pelos meios de comunicação social que, mesmo quando parecem estar a dar as duas faces da mesma moeda, conseguem toldar a visão de quem pouco ou nada sabe para o lado mais conveniente: o anti-praxe.
O problema começa na etimologia da palavra - que o SAPO24 soube explicar melhor que muitos, no artigo que publicaram sobre o tema -, PRAXE refere-se ao conjunto de práticas, usos e costumes consagrados pela tradição que regulam o comportamento dos estudantes em contexto social; configura, por exemplo, a forma de uso do traje académico e a utilização da capa consoante o contexto em que se está inserido. Imagine-se que vamos ter uma aula na faculdade presidida por um professor catedrático: a forma correta de utilizar a capa será corrida sem dobras pelos ombros, em sinal de respeito (a menos que o dito professor nos transmita que podemos assistir à sua aula de uma forma mais descontraída, caso no qual devemos aceder à vontade/permissão do mesmo). Há então que distinguir PRAXE de Gozo ao Caloiro (que será uma praxe, isto é, uma prática regulada pelo código acima mencionado). O Gozo é apenas uma ínfima parte de um todo que se estende a muitos outros domínios e que transcende quem a si está vinculado. Mesmo não me parecendo necessário referir: a vinculação à PRAXE é absolutamente opcional. O acolhimento aos caloiros é feito numa ótica de tentativa de preparação para o que a universidade vai ser (daí, frequentemente serem denominados de “bichos”, fazendo alusão à falta de preparação que os estudantes vão sentir ao ingressar no ensino superior), preparação esta que envolve incutir valores, transmitir uma ou outra dica sobre como lidar com os professores.
Isto para dizer que quem tenta encontrar alguma relação de sinonímia entre praxe e integração está a bater à porta errada. Se a integração acaba por ser uma consequências das várias praxes (leia-se, aqui, "práticas") consagradas por uma tradição antiga? Sim, provavelmente; e ainda bem. Ainda assim, em lado algum é atualmente transmitido que a PRAXE/as praxes é/são para a integração. Insistindo: se a integração é uma consequência das atividades que se têm em conjunto com uma comunidade de pares (sim, pares, não foi um maneirismo), melhor ainda.
Outros argumentos há contra a PRAXE, como a hierarquia, ou a humilhação. Se a hierarquia é algo necessário? Julgo que não, mas novamente é facílimo acusar "organismos" (notem, por favor, as aspas) de fascismo por terem uma hierarquia e um traje comum - traje esse que não implica uma vinculação à PRAXE, mas que se nos apresenta como direito do estudante universitário e por ela é codificado. E, engraçado, a hierarquia existe sensivelmente para um propósito de organização de atividades. Mais que isto, se procurarmos entender a hierarquia de um ponto de visto histórico, encontramos dados que sugerem que esta tem origem na nomenclatura que se dava aos estudantes de anos diferentes (segundanista, terceiranista, quartanista, quintanista, …). Servia um propósito de distinção mais simples e também de possibilidade de proteção: mais especificamente, um estudante que estivesse dois anos acima de outro podia cancelar uma mobilização, sobrepor uma ordem, proteger um caloiro de uma trupe (assunto pelo qual poderia enveredar mas não me parece de grande pertinência para a questão central; de forma sucinta, uma trupe é um conjunto de estudantes trajados de forma a que quase estivessem inidentificáveis e que, à noite, procuram sancionar caloiros que circulem sem proteção e se encontrem em incumprimento de alguma norma).
Em relação à dita humilhação pública, penso antes que é uma forma de diversão socialmente não-aceite; e, como não aceite que é, torna-se mais fácil apelidá-la de humilhação causada por uma pressão de pares. Este é daqueles casos em que só quem viveu compreende, pois, por muito que algumas brincadeiras sejam sugeridas, a parte em que estas se dinamizam ora com pinturas ou com missões imaginativas é muitas vezes fruto dos próprios caloiros que, reitero, entram e saem pelo próprio pé. Cultiva-se – cada vez mais, por sinal – que, se alguém decidir a) não participar nas Atividades de Gozo ao Caloiro ou b) deixar de participar nessas mesmas atividades, não será marginalizado por colegas de faculdade que optem por um caminho diferente. Aqui deviam entrar as chamadas "Alternativas à PRAXE", para que os estudantes possam não ser submetidos a fatores externos de pressão e conseguir uma integração saudável na vida universitária - desta forma, a vinculação à PRAXE será mesmo voluntária.
Claro está, como em tudo, existem maus exemplos dos domínios deste fenómeno que, infelizmente, são os que mais vêm a público e acabam por chocar a população. Surpresa das surpresas: também chocam quem se encontra vinculado à PRAXE, também nós repudiamos atos que culminem no atentado à integridade física e psicológica. Aliás, acho que, muito sinceramente, até repudiamos esses actos mais do que a maioria da sociedade, porque nos afeta diretamente. É-nos custoso ouvir falar do incidente do Meco, das mutilações dos animais que - segundo sabemos - ocorriam no norte do país. Deixa-nos tristes saber que existem estudantes com dificuldades de integração por não terem seguido todos aqueles que se vincularam à PRAXE, saber que existem estudantes que são vítimas de violência física e psicológica noutras faculdades por causa de pessoas que não se regem por valores humanos e que, exatamente como pintam nas generalizações abusivas tão características dos meios de comunicação social, descontam nos outros as suas frustrações individuais. Será preciso dizer que condenamos tudo isto? Será necessário dizer que somos contra qualquer forma de violência?
Como dizia, no início desta opinião, torna-se frustrante tentar batalhar com os maus exemplos, especialmente quando um fenómeno tão frequentemente visto como um todo é, exatamente pelos maus exemplos (leia-se, também, práticas diferentes e incorretas), um algo fragmentado. Existe, de momento e no meu conhecimento, uma tentativa de unificação da Academia de Lisboa, que envolve esforço conjunto de um número de faculdades. Tem-se em vista, num futuro mais ou menos próximo, a formalização de um código coeso comum. Evidentemente, esta junção de faculdades, comissões, não é tão fácil quanto parece quando aqui a menciono; é necessário remontar às origens escritas e avaliar de que forma é que o que se aplicava antigamente ainda é legítimo de aplicar nos dias de hoje, visto que a sociedade evoluiu (toma-se como exemplo primeiro o código de 1957, da Universidade de Coimbra, e os escritos da mesma altura que tentavam desmontar o assunto).
Os estudantes estão a tentar recuperar; os ideais interventivos e de mostra de descontentamento estão a voltar à tona; também o aprumo e o decoro se encontram agora de volta. Infelizmente, muitos de nós estiveram adormecidos e só agora começámos a tentar mudar as coisas. Mais que estudantes, somos cidadãos de um país e devemos ter um papel ativo na vida política e social do mesmo, sobretudo quando temos em nossa posse elementos que nos permitem ter uma voz; quanto mais não seja fazer uso do nosso número e da nossa capacidade de satirizar certos aspetos do nosso quotidiano.
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