No Inverno de 2007, foi feito o lançamento do livro “As Metamorfoses” de Agustina Bessa-Luís, (2005) que resulta daquilo que ela própria refere como um “feliz encontro com Graça Morais”, onde eu esperava, ingénua, ainda encontrá-la, ouvi-la. Porém tal não aconteceu. E é desde então que regularmente sinto saudades da minha autora de cabeceira. Saudades do hábito, feito vício, de ir comparar o último livro de Agustina para continuar aquilo que ela deixava sempre inacabado para continuar no seguinte, para me rir com o seu olhar mordaz e certeiro sobre o nosso tempo, para brincar às escondidas com as personagens e a narradora, para ter vontade de ir ler ou reler Musil, Shakespeare, ou Dostoiévski empurrada pelas alusões que ajudam a costurar os seus romances.

Fui, portanto, matando as saudades com releituras sempre refrescantes de romances que já conhecia, ou aproveitando para ir lendo outros, antigos, que ainda se encontravam aqui e ali, em alfarrabistas. Não acabei ainda a peregrinação pela obra de Agustina Bessa-Luís, mas confesso que é um desígnio de vida. Se o tempo a isso me der permissão.

Não se trata de vir a dizer que se conhece a totalidade da obra de Agustina, pois que nunca se conhece a totalidade da obra de um génio, que se define precisamente pela impossibilidade de ser aprisionada numa leitura unívoca e sempre parcial. Mas ler, divulgar, dialogar com ela e sobre ela é deixá-la florescer em toda a sua grandeza. Um trabalho não apenas de uma vida, mas de gerações.

São várias as facetas da autora da Ronda da Noite (2006) que me fascinam e me aguçam o prazer da leitura, desde os muito citados aforismos, à derisão e autoderisão, à técnica narrativa labiríntica, ao fresco que nos dá do mundo feminino (o que não a torna feminista), à caracterização da região duriense e do Porto, à apropriação de figuras reais para lhes desenhar biografias únicas ou à utilização do real para transfigurá-lo em ficção. Cada um destes e outros aspectos merece atenção cuidada, sensibilidade e estudo para que não continuemos a falar de Agustina com carradas de senso comum e uma baixeza que tanto a arreliava.

Há, porém, outras abordagens menos divulgadas que merecem ser relembradas e desenvolvidas. Quem lê Agustina não pode deixar de sentir a presença constante do mundo da tragédia clássica e shakespeariana, como se se tratasse do pano de fundo da sua ficção. Mais do que pano de fundo, diria que é a essência mesmo dessa ficção. Foi Silvina Rodrigues Lopes quem primeiro abriu as portas desta perspectiva, no ensaio Agustina Bessa-Luís As Hipóteses do Romance, (publicado em 1992) afirmando que: "A obra de Agustina Bessa-Luís situa-se na linha que desde Proust e Virgínia Wolf divergiu anarquicamente em muitas direcções para tocar e dar espessura verbal ao fundo inominável em que assenta a nossa linguagem; para encontrar formas que captem a energia vital de todas as metamorfoses, a origem para sempre perdida que se repete no instante já dividido, e por conseguinte trágico.” A vasta obra de A. B.-L., apesar da inúmera quantidade de títulos, constitui um universo relativamente fechado, com temas, perfis de personagens e discurso recorrentes, a ponto de nos sugerir um círculo sempre em renovação, o que é corroborado pelas suas palavras ou citações, como, por exemplo, em A Quinta Essência (1999): “Numa história em que as charadas não são resolvidas nem os mistérios são compreendidos, só podemos dizer, como Cao Xueqin, no fim de cada capítulo d’O Sonho no Pavilhão Vermelho: «Quem quiser saber o que se segue, não tem senão que remeter-se às explicações da próxima narração».”, consciente de que este adiamento seria eterno.

Estamos perante uma obra romanesca que se foi construindo num percurso de modernidade, dialógico, que nos obriga a ler e reler, em busca desse sentido do trágico que encontramos na sua obra. Sentido que a própria autora sabia não ter nas suas mãos, como verdade descoberta em qualquer momento de epifania, mas a descobrir. Sempre. Se há coisa que não lhe faltava era a lucidez (e de si também). Senão vejamos o início, por exemplo, de Jóia de Família (2001), primeiro de uma trilogia a que chamou “Princípio da Incerteza”: “Não se escreve melhor porque se escreveu muito. Às vezes, vou surpreender nas páginas antigas assinadas pelo meu punho um tom perfeito em que a imaginação ronda como uma madrinha incapaz de envelhecer e de perder a razão. (…) Mas, se há um progresso na arte de escrever, ele deriva de um solitário voto de castidade talvez. De reduzir a um simples detalhe o coração humano, fora das suas obrigações de palpitações e de vida.” Reflectir assim, quase nos leva a dizer, com a ironia que tanto lhe era cara, que ficam no desemprego os exegetas da sua obra.

Mas ousemos participar nas leituras infinitas que a obra de Agustina Bessa-Luís merece, sem a triste e ingénua convicção de que vamos em descoberta de “intenções”, que certamente, muitas vezes, nem a própria conhecia (releia-se a epígrafe que escolhi), mas construindo as nossas interpretações, apropriando-nos dos textos, fazendo deles parte de nós, como se deve fazer sempre com a obra dos grandes autores.

Ora se “há um progresso”, naturalmente, a questão que queremos realçar aqui, a do trágico sentido da vida, está presente desde o início até ao fim. Como se de cada vez que Agustina escrevia um romance, o fizesse com o mesmo objectivo de sempre, consciente de que inalcançável, mas aquele que a perseguia como escritora, o de encontrar o que está para lá do tempo, “como se o tempo não passasse os costumes não mudassem” (in, Jóia de Família). Por ser e saber inalcançável lhe chamamos horizonte. Outros poderão chamar outra coisa, de acordo com crenças ou visões do mundo diferentes.

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