O Brasil está perante um escândalo sem precedentes. Os números são assustadores, todos eles. Da quantidade de políticos envolvidos ao volume de dinheiro movimentado por uma gigantesca quadrilha que vem assaltando os cofres públicos de forma destemida há mais de 30 anos, segundo afirmou em depoimento Emílio Odebrecht, um dos donos da empresa que tem o seu nome e também pai de Marcelo Odebrecht, o grande maestro do suborno.
Tamanho do império
Com negócios em 27 países, a Odebrecht é um verdadeiro império que atua em mais de 12 diferentes áreas que vão da construção civil ao setor petroquímico. Estradas, refinarias, portos e aeroportos fazem parte do seu portfólio de megaconstruções e de gestão. Mas alto lá, não é só no Brasil! Com negócios em 27 países, está presente em toda a América Latina, nos EUA, Ásia, África e aqui na Europa, sim, aqui em Portugal. O grupo, que começou com a construção de pontes e estradas, expandiu-se para obras grandiosas pelo pior dos caminhos. No depoimento de Emílio Odebrecht é possível perceber que qual o tipo de gestão que está impregnada no ADN da empresa: “O que nós temos no Brasil (o suborno) não é um negócio de cinco, dez anos. Nós estamos falando de 30 anos atrás. Tudo o que está acontecendo era um negócio institucionalizado. Era uma coisa normal”. Emílio, assim como grande parte dos seus ex-executivos, trata o tema "suborno" com o descaramento de quem gosta de transgredir. É importante salientar que todo o dinheiro que alimentou este esquema de subornos era dinheiro público, dinheiro desviado de hospitais, escolas, saneamento básico - só para se ter uma ideia, um dos principais centros oncológicos do país, localizado na cidade de São Paulo, Instituto Dr. Arnaldo, que atende pacientes com cancro na rede pública, anunciou que irá reduzir em 50% os seus procedimentos cirúrgicos por falta de dinheiro. Não é dinheiro para a equipa médica, é dinheiro para comprar adesivos, soro, agulhas. Estamos a falar de vidas. Estamos a falar de gente. O Inferno de Dante é parque de diversões diante deste quadro.
O descaramento das artimanhas
Um dos membros do Ministério Público Federal do Brasil - MPF, o promotor Sérgio Bruno Fernandes, que é coordenador do processo Lava Jato em Brasília, ao ouvir os depoimentos de Emílio Odebrecht deu-lhe um autêntico puxão de orelhas ao notar o embaraço de Odebrecht em pronunciar a palavra “propina” [palavra que significa suborno]. Durante o seu depoimento, Emílio contornava a expressão quando se referia ao ato dizendo “colaboração” ou “ajuda”, quando o procurador o interrompeu, tal e qual a um aluno na sala de aula, e disse: “Essa ‘ajuda’ chama-se propina. Só para o senhor saber. Se o senhor pegar no seu carro aqui (em Brasília) com destino a Salvador, for parado numa operação de trânsito e o guarda de trânsito tendo o poder de rebocar seu carro lhe pedir uma ‘ajuda’, o senhor vai achar que isso é uma ajuda ou propina?”. Odebrecht, retirou o sorriso permanente do rosto e aceitou a reprimenda. Continuou o depoimento tentando imprimir um ar de naturalidade ao esquema, dizia que se tratava de doação de campanha, e procurou construir um cenário onde deveria se entender como normal o facto de um político pedir dinheiro para desempenhar as suas funções públicas a favor de alguém. Nesse ponto o procurador deu-lhe outra reprimenda: “eu vou mostrar ao senhor o que diz o código penal: ‘solicitar’, não precisa nem receber, (mesmo que uma pessoa venha a) solicitar e receba um não na cara, (ela) já praticou o crime”.
Lobos em pele de cordeiro
Emílio é aquele tipo de pessoa com quem qualquer um de nós passaria horas a ouvir as suas histórias. É afável, sorridente, de gestos suaves e semblante tranquilo. Carrega aquela aura de quem nunca soube o que é ter de escolher qual a conta pagar no mês, e quais as que ficarão para o próximo - realidade de mais de 13 milhões de brasileiros desempregados depois da crise em que o país mergulhou. Você comprar-lhe-ia um carro usado e aceitaria o seu convite para um final de semana em sua casa de praia. É sedutor, inteligente e rico. Mas usou tudo isto para o mal. O departamento de "subornos" da empresa liderada pelo seu filho Marcelo Odebrecht - outro de aparência inofensiva, que afina a voz ao final de frases longas -, segundo informações de um dos delatores, movimentou 3,3 mil milhões de dólares entre 2006 e 2014. São números que impressionam, mas ainda minúsculos diante do salto na faturação que a empresa criada pelo pai de Emílio, Norberto Odebrecht, apresentou: entre 2002 e 2015: a receita do grupo foi de “meros” 13,2 mil milhões de dólares para 132,5 mil milhões de dólares. Isso mesmo, 10 vezes mais ‘mil milhões’ nas contas obscuras daquele grupo afável.
Faltou vergonha na cara
Dados do Tribunal de Contas da União surpreendem qualquer empreendedor que está há anos na fila de um empréstimo subsidiado com juros baixos no Banco Nacional de Desenvolvimento Social - BNDES. Segundo o levantamento, num período de dez anos, entre 2005 e 2014, de todo dinheiro que a instituição destinou para o financiamento de projetos no exterior, mais de 80% ficaram nas mãos da Odebrecht. Dez anos de liderança no acesso ao dinheiro fácil e barato, para permitir que os seus executivos façam o que estamos a ver: transformar a corrupção num modelo de negócio. E todos lucraram muito com isso. Construíram mansões, compraram apartamentos de cobertura caríssimos, barcos, carros desportivos, imóveis e colocaram dinheiro no exterior. Têm de tudo, menos vergonha na cara. Talvez esta seja mais uma condição básica na análise dos recursos humanos da Odebrecht quando um executivo se candidatava para lá trabalhar: não ter vergonha na cara.
Reino da tramóia
No depoimento de Henrique Valadares, ex-vice presidente da Odebrecht, é possível perceber um pouco do quanto a empresa investia no ilícito. Segundo este responsável, um outro executivo do grupo, que era responsável pelo pagamento de subornos, tinha solicitado uma reunião para informar que o caixa estava “short”, com poucos recursos para poder honrar os pagamentos de subornos acordados. Segundo ele, a chamada 'caixa 2' que era possível gerar, não estava a ser suficiente para “atender a demanda” [responder aos pedidos]. Valadares diz que nesse momento Marcelo Odebrecht, presente na reunião, teria alertado: “olha, realmente, esse é um problema crítico. Eu quero que vocês, cada um de vocês, pelo menos para atender às suas demandas, gerem nos contratos de vocês, pelo menos o mínimo para atender a essas demandas. Da forma mais segura, a mais discreta possível para alimentar esse caixa 2.” Marcelo dava aval para que os seus subordinados extorquissem mais dinheiro público nas suas obras. De que forma? Solicitando verbas adicionais aos contratos em andamento. E para que essas verbas fossem aprovados pelos gestores que controlavam o dinheiro público: mais subornos. No esquema da Odebrecht, ainda segundo Valadares, superfaturar uma obra era tarefa simples: “Se você combina com um holandês (ele se referia a uma hipotética empresa estrangeira) que ele vai cobrar um preço mais alto como se estivesse escavando argila extremamente dura, difícil de ser dragada, mas na verdade irá perfurar areia, aquilo vai dar um aumento na medição e na fatura dele, enorme. E você pode combinar com ele que essa diferença seria repassada lá fora (noutro país). Você paga em euros e ele devolve em euros, lá fora”.
Vender a alma, o diabo não compraria
Um dos ex-executivos que já foi responsável pelas operações da Odebrecht em Portugal, Humberto Mascarenhas Silva, quando voltou ao Brasil tornou-se chefe do Departamento de Operações Estruturadas, nome dado à área responsável pelo dinheiro ilícito. No seu depoimento afirma que Marcelo Odebrecht estimulava que os seus executivos aumentassem ao máximo o valor das obras e para isso oferecia um bónus milionário em troca. Silva explica: “Você quer que o mundo se acabe! Você quer atingir aquela meta para você colocar no seu bolso o seu milhão. Então, se fazia qualquer coisa que se pudesse fazer para atingir o objetivo”. Em outra parte do depoimento, ele diz que os executivos, por essa prática recorrente, já tinham “prazer em ‘comprar’ alguém”.
Criar dificuldade para vender dificuldade
Outro delator, o ex-executivo Carlos Fadigas, afirmou que o atual presidente do Senado Federal, Senador Eunício Oliveira, PMDB (partido do governo), tinha retirado de uma medida provisória que gerava incentivos tributários aos produtores de etanol, uma emenda que tinha sido inserida a pedido da Odebrecht. Segundo relato do delator, Marcelo Odebrecht tentou, numa troca de emails, entender o motivo daquela atitude. Na mensagem Marcelo pergunta ao ex-executivo Cláudio Filho, o que o senador ganharia com isso, ao que Cláudio responde: “o de sempre”. Quando o procurador pede para que Fadigas explique o que isso significa, ele informa: “criou a dificuldade para cobrar dinheiro para não obstruir”. O procurador pergunta se foi pago e ele responde que “sim, o senador foi um dos políticos que receberam dinheiro com a aprovação da medida provisória 613”. A defesa do senador nega.
Suborno engarrafado
Olívio Rodrigues, outro ex-executivo, na sua delação afirma que houve um acordo entre a Odebrecht e a cervejeira Itaipava para gerar caixa com dinheiro desviado de impostos. Para isso a cervejeira teria feito, segundo relato de dois ex-executivos, um esquema que falsificava as informações da quantidade de litros produzida na fábrica. Dessa forma a empresa produzia e comercializava uma grande quantidade de cerveja sem pagar impostos, o que alimentaria a sua 'caixa 2'. Esse dinheiro ilícito era depois repassado a um doleiro, que pagava os acordos da Odebrecht com políticos no Brasil. A empreiteira, por sua vez, devolvia o dinheiro à Itaipava através de um Banco de Antigua, nas Caraíbas. Na sua delação, Luiz Eduardo Soares afirma que após muita discussão sobre a taxa de câmbio, houve um encontro no aeroporto Santos Dumont, onde o acordo foi fechado com uma taxa de conversão. O esquema desabou em 2008 quando a Receita Federal brasileira percebeu que existia algo de errado na quantidade de cerveja declarada e mudou a forma de medir a quantidade de bebida produzida. O grupo Petrópolis, que produz a cerveja Itaipava, nega o esquema.
Dinheiro para Cuba com aval de Lula
Os 632 milhões de dólares que o BNDES investiu em Cuba foram um dos capítulos da delação de Emílio Odebrecht. Ele explica que esteva na Venezuela com Hugo Chaves e que teria recebido o pedido de ajuda para viabilizar a obra do Porto de Mariel, em Cuba. Chaves teria alegado que seria muito importante para Cuba. Emílio sabia onde se estava a meter e pediu a Chaves, fazendo uso da boa relação que tinham, que falasse com Lula sobre isso, solicitando a participação do governo brasileiro no projeto, pois ele próprio não gostaria de tomar tal iniciativa. Pouco tempo depois, Lula convocou Emílio para uma reunião e disse que recebera um telefonema de Chaves a relatar o encontro e que daria apoio ao projeto. Nesse ponto do depoimento, o procurador pergunta se Lula teve alguma ingerência no BNDES para aprovação da verba e Emílio diz categoricamente que sim: “Eu não tenho dúvida nenhuma. Eu diria que o BNDES jamais… e nós próprios nem levaríamos um assunto de financiamento ao BNDES para Cuba. Não estava dentro do nosso plano, nem das diretrizes do BNDES”. O procurador insiste perguntando se numa situação normal o BNDES aprovaria aquilo. “Não. Nem a Odebrecht nem o BNDES numa condição normal entrariam num projeto desse. Não tenho dúvida quanto a isso.” Emílio, que desenvolveu o talento de fazer humor com dinheiro desviado de hospitais, escolas e segurança pública, ainda diz que não seria fácil encontrar garantias num país como Cuba: “se fosse botar como garantia o charuto, ia levar uns 50 anos… (e riu-se)”. Lembrando mais uma vez que esse dinheiro poderia ter sido investido, também, na recuperação das péssimas estradas brasileiras que ligam as plantações de soja no interior do país aos principais portos.
Os próximos passos dos processos
Os processos dos 76 políticos com foro privilegiado, incluindo deputados federais, senadores, ministros e governadores, foram transformados em inquéritos. Outros 200 casos que não possuem foro privilegiado, foram encaminhados pelo ministro do STF para instâncias inferiores e nestes casos ainda não foram solicitadas aberturas de inquérito. Caberá aos juízes que os receberem, decidir pelo inquérito ou arquivamento de cada caso. Os casos envolvendo deputados estaduais ou autarcas, foram enviados aos Tribunais de Justiça dos Estados ou Tribunais Regionais Federais. Já aqueles que não têm foro privilegiado, caso do ex-presidente Lula, esses foram encaminhados para tribunais da Primeira Instância Estadual ou Federal, onde está a temida caneta do juiz Sérgio Moro, na cidade de Curitiba. A defesa de Lula arrolou mais de 80 testemunhas para serem ouvidas em apenas um dos processos. O juiz Sérgio Moro aceitou o pedido da defesa, mas determinou que Lula esteja presente em todas elas.
Agora terão início as investigações com o objetivo de agrupar provas que ratifiquem as acusações feitas pelos delatores. Os investigadores deverão ouvir políticos e demais testemunhas em quase 400 depoimentos, documentos que comprovem a negociação de votos de parlamentares em determinados projetos, filmagens que registrem a entrada dos acusados em locais de recebimento dos subornos. Caso os investigadores não juntem provas, os inquéritos serão arquivados. Com provas, os procuradores do Ministério Público acusam formalmente os investigados e os juízes de cada instância decidem se aceitam ou não a denúncia. Quando aceites, os acusados passam a ser considerados réus nas ações penais e vão a julgamento. O veredicto será dado pelos ministros, desembargadores ou juízes, conforme o foro, e são eles que decidem se absolvem ou condenam e quais crimes e o tipo de penas.
Quanto vale o show
Corrupção é quando um funcionário público recebe qualquer tipo de vantagem para a prática de um ato como, por exemplo, falsificar uma licitação, fazer contratos acima de valores razoáveis etc. Caixa dois é a omissão na prestação de contas eleitoral, de qualquer doação feita para a campanha. Mas quando essa doação é feita com dinheiro da corrupção, o político envolvido responde pelos dois crimes.
Os inquéritos oscilam entre os crimes de corrupção ativa e passiva, branqueamento de dinheiro, falsidade ideológica eleitoral. No Brasil, as penas mais pesadas são de corrupção, de dois a até 12 anos de prisão, e branqueamento de dinheiro, até dez anos de reclusão. Caixa dois tem uma pena mais branda: máximo de cinco anos. Lembrando que dos 98 investigados no momento, 30 deles respondem pelo crime de caixa dois - é quase um período sabático.
Vale a pena destacar que não foi denunciado apenas o ex-presidente Lula. Há muitos mais envolvidos, quase toda a classe política brasileira, de Fernando Henrique Cardoso a Serra, de Aécio a Collor, de Renan a Alckmin. Políticos de destaque de quase todos os partidos. É um verdadeiro mar de lama - para dizer pouco.
Parece que o Palhaço Tiririca, eleito deputado federal com 1,3 milhão de votos, não aparece na lista das delações. Dos 513 parlamentares, Tiririca está entre os nove que participaram de todas as seções daquela casa, embora nunca tenha feito um único discurso. Quando o melhor político de um país é um palhaço que teve dificuldades em provar que foi alfabetizado, algo está muito, mas está muito fora da ordem.
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