
Nos últimos onze meses, a coroa esteve na cabeça do homem de Espinho: Luís Montenegro. Contudo, ironia das ironias, a coroa de chefe do executivo revelou-se uma coroa de espinhos. Algo que é cada vez mais evidente, olhando não só para a atual legislatura como para a passada. Reparem como António Costa parece um homem muito mais feliz neste momento, nas novas funções de presidente do Conselho Europeu. Eu sei que não é popular defender políticos no nosso país, mas uma coisa tem de ser dita: ser primeiro-ministro em Portugal é como aceitar, de livre vontade, uma coroa de espinhos. Um cargo onde todos te culpam por tudo, onde o escrutínio é total e onde a recompensa é... um salário alto para os padrões nacionais, mas baixo para a magnitude da responsabilidade — e ridiculamente baixo se comparado a cargos de topo no setor privado. Há sempre alguém pronto a apontar os espinhos, mas quase ninguém (de valor e com visão) disposto a carregar a coroa.
E se olharmos bem, não é só o primeiro-ministro que a usa. Cada português carrega a sua própria versão. Vivemos num país que encanta os ricos do mundo — sol, segurança, gastronomia, cultura, história e muito mais — mas onde os habitantes ganham cronicamente abaixo da média europeia. A habitação é o caso mais gritante: preços impraticáveis e uma bolha que não estoura porque há sempre alguém pronto a comprar. É um paradoxo cruel: somos pobres no país que os ricos escolheriam para serem felizes.
O problema, claro, não é exclusivo de Portugal. Podemos ir ainda mais fundo: a maior parte da população dos países desenvolvidos vive com uma coroa de espinhos. Somos herdeiros do maior avanço tecnológico e científico da história da humanidade, mas os frutos parecem estar reservados aos 1% mais ricos. A maioria? Trabalha mais, ganha menos e ainda é acusada de viver acima das suas possibilidades. Cresce o ressentimento (legítimo) que é depois instrumentalizado por populistas com soluções simples para problemas complexos: cortar a cabeça à democracia porque o chapéu não assenta bem.
E aqui voltamos ao ponto: as eleições de 18 de maio. Portugal vai a votos, envolto num cenário paradoxal de desgaste e desilusão geral, contrastando com indicadores animadores como o equilíbrio fiscal e os níveis máximos de empregabilidade. PS e PSD (ou melhor, coligação PSD/CDS… vulgo AD… vulgo não ADN), os dois maiores partidos, apresentam programas com medidas pontuais acertadas, mas, na minha opinião, nenhuma visão coerente e ambiciosa para o país, como se exige. Os partidos mais pequenos (com assento parlamentar, aos quais, acrescento o Volt e o JPP) demonstram o seu valor, trazendo pontos de vista e ideias interessantes para o debate público, mas temo que não consigam captar o eleitor comum. As razões variam de partido para partido, mas passam um pouco por falta de uma comunicação eficiente, de meios (para chegar a todos os extratos da população ou para criar programas mais abrangentes) ou simplesmente por algo tão fútil como a ausência de carisma do líder partidário.
Já o Chega prefere despir a democracia da coroa de espinhos para mergulhar de cabeça num mar de silvas. Dores garantidas, cortes profundos e um futuro que, se não formos cuidadosos, pode ficar mesmo emaranhado. O partido, como é sabido, gira em volta do seu líder (que não vou nomear, porque temo que ele tenha um orgasmo cada vez que lê ou ouve o próprio nome em público). Esta dependência, conjugada com um nível menos intenso do desespero da população, em relação a outros países (devido a uma variedade de fatores), parece atrasar os números da extrema-direita em Portugal. Espero que não seja só um atraso, mas que passemos à frente, por completo, esta fase da política mundial, dispensando estes espinhos autoimpostos. Os sinais estão à vista de todos, com promessas de “autoridade” e comentários constantes acerca de uma “Terceira República podre”. Talvez tomem a própria podridão como sendo sistémica, mas não é! A Terceira República e os valores de Abril são uma excelente base (tomara a tantos países…) para construir uma sociedade melhor do que a que temos hoje (que em si, já é uma conquista assinalável). Vale notar, porém, que nem todos os sinais são tão claros: o programa do Chega inclui a necessidade de garantir que a “inibição da libido” é constitucional. Que é como quem diz: a Constituição deve permitir castração! Palavras mansas e eufemismos, que ocultam intenções grotescas, na tentativa de tentar os Silvas e empurra-los para as silvas.
No meio de tudo isto, ressalvo que vi algumas ideias de qualidade levantadas pelos partidos: utilizar automaticamente imóveis devolutos do Estado (esta medida já defendida pelo atual governo), um parque público de habitação mais significativo, a herança social defendida pelo Livre (partido cujas ideias particularmente aprecio), a redução da carga de trabalho com uma semana de quatro dias (para dar mais tempo à família e vida em comunidade sem pôr em causa a produtividade) e novas formas de taxar os ultrarricos. Medidas que não fazendo parte de uma grande visão para o país, podem sempre ser aproveitadas. É por isso que importa apresentar ideias concretas. Aqui ficam mais algumas, que poderiam aliviar muitos espinhos e até, quem sabe, resultar numa verdadeira coroa reluzente na cabeça de cada português:
- Georgismo à portuguesa: um ISVT (Imposto Sobre o Valor da Terra) que desincentive o desperdício urbano e alivie o IRS e IVA, como defendi em artigo oportuno. Se tivermos coragem, podemos manter equilibradas as contas públicas e estimular a economia. O solo não se produz, nem se multiplica. Taxá-lo é só justo.
- Habitação pública e luxo responsável: mantendo o objetivo claro de um parque público correspondente a 10% do total de fogos. Abrangente a todo o território nacional. E para complementar, exigir a cada novo empreendimento de luxo, 20% do número de fogos em regime de habitação acessível. Se querem construir para os milionários, que também contribuam para os Silvas. Rácio sujeito a refinamento, como é natural.
- Contra monopólios, concorrência faz falta e o Estado também: o caso da CP é paradigmático. O Estado deve estar presente, mas não sozinho. Não devem existir monopólios. No entanto, multiplicam-se monopólios e cartéis (agora, maioritariamente de índole privada). Já nas telecomunicações, aprendemos que o mercado não é mágico e só funciona sob pressão real. Não acho descabido termos um Estado interventivo quando o mercado converge. Se não tivesse aparecido a Digi, penso que a solução passava por voltar a haver uma empresa pública de telecomunicações, com políticas pró-consumidor. E noutros setores, como os serviços digitais (sistemas operativos, browsers, cloud, etc.) se a concorrência falhar, o Estado não pode ser refém. Tem de agir. Corajosamente contra os gigantes do Silicon Valley. Com iniciativas próprias (como a LLM Amália), em projetos conjuntos europeus ou optando por serviços de código aberto.
- Aposta séria no setor social e cooperativo: fomentar soluções de código aberto (utilizá-las sempre que possível nas instituições públicas), apoiar organizações sem fins lucrativos, dar prioridade a modelos económicos que funcionem com base em valores, não apenas lucro. Uma sociedade que reconheça o valor de quem cuida, ensina e constrói em comunidade. Imagine-se, num exemplo simples, termos todos os computadores das escolas com Linux e aproveitar o que se poupa para apoiar associações sem fins lucrativos ou de investigação no nosso país.
- Reforma da noção de religião institucionalizada: se uma organização quer esse estatuto, que prove que serve o bem comum, proporcionalmente ao património que detém. Ou seja, comprove que apoia direta ou indiretamente instituições de solidariedade social. É justo. A Igreja Católica provavelmente cumpriria (se calhar já cumpre), outras talvez não. Assim não se protegeriam organizações com intenções duvidosas que se fazem passar por religiões, dando ainda mais meios ao setor social.
- Voluntariado nas escolas: dar aos jovens a experiência de contribuir para a comunidade, enquadrado na disciplina de Cidadania. Não é apenas uma questão de solidariedade: é uma lição de cidadania, realização pessoal e pertença. O mais difícil costuma ser começar…
- Mais democracia e descentralização: os cravos não crescem só em Lisboa e o país lentamente apercebe-se disso mesmo. A centralização não é só física (na capital), mas ao nível das nomeações. Será que tantos cargos deviam ser definidos por nomeação do governo? Eu acho que sempre que possível, deve existir democracia dentro de cada instituição. Dou um exemplo que, para mim, é claro: as administrações hospitalares. Cada partido, quando está no governo, faz questão de mudar todas as administrações hospitalares. Com certeza, não será para nomear amigos e compadres… A meu ver, tal como as direções das escolas, as administrações hospitalares deviam ser eleitas localmente para mandatos estáveis. Ao governo basta ter o Ministério e a direção executiva do SNS para colocar em prática a sua visão para a saúde.
- Equilíbrio nos meios da justiça: em Portugal, a justiça continua a ser uma maratona desigual. Um arguido ou autor abastado pode contratar equipas inteiras de advogados, multiplicar requerimentos, anexar centenas de documentos, explorar cada recurso e, no limite, empurrar os processos até à (inevitável) prescrição. Tudo legal, claro. Mas profundamente injusto. A proposta é simples: para além das custas normais, estabelecer-se-iam tetos indicativos de despesa judicial, mediante a complexidade do caso. A partir de certo montante, cada euro gasto implicaria a entrega de igual quantia ao tribunal, para reforço da capacidade do juiz (assistentes, peritos, recursos técnicos). Este valor seria reembolsado caso a parte tenha razão no processo, tal como já sucede com outras despesas. Além disso, sempre que haja indícios de sub-declaração de custos, o juiz poderia fixar esse montante adicional de forma fundamentada. O objetivo não é punir quem se defende bem, é impedir que a justiça seja sufocada por quem pode pagar para a empatar.
- Ajustar os salários dos políticos: em Portugal, os salários da classe política são definidos em função do vencimento do Presidente da República. Na minha opinião, o salário do Presidente da República devia ser definido em função do salário médio (ou talvez o mediano) do nosso país. Isto abria a porta a aumentos dos vencimentos dos políticos, mas sempre justificados por maiores salários para os cidadãos. O rácio deve garantir que se Portugal atingir o nível de vencimentos dos países mais ricos da Europa, os nossos políticos aufiram valores semelhantes aos políticos desses países.
Estejam ou não de acordo com estas ideias, penso que é unânime que Portugal precisa de quem aceite usar a coroa de espinhos com dignidade. E precisa, sobretudo, de quem a torne menos dolorosa para os outros.
É hora de resistir a tentações e escolher quem consegue arrancar espinhos, sem destruir a própria coroa!
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