Temos relato do que aconteceu no fim de semana na costa junto ao tacão da bota geográfica de Itália. Uma velha traineira toda em madeira, com 20 metros de comprimento, tinha zarpado na quinta-feira de Esmirna, na Turquia, rumo a um lugar na terra da União Europeia. A Grécia seria o destino mais próximo, mas os passadores traficantes de pessoas desesperadas recomendam, e cobram por isso, um destino mais dentro da Europa. O preço habitual: uns 2.500 euros por pessoa. Os passadores prometem o desembarque no sul de Itália. 

Na alta madrugada da última quarta-feira, deste fevereiro, aquela traineira com existência já muito esgotada zarpou de Esmirna com mais do que sobrelotação, ao todo 177 pessoas. Gente do Afeganistão, do Paquistão, do Irão, da Síria, da Palestina e da Somália. Uns aspiravam escapar à guerra, outros à miséria. Menos homens do que o costume. A bordo, quase paridade de género e muitas crianças. O Mediterrâneo oriental tem estado tempestuoso, levantado por ventos do deserto. Esta viagem enfrentou vários adamastores. Mesmo assim, no sábado conseguiram ter Itália à vista. Mas o mar, junto às falésias e areais da Calábria estava de tempestade, correntes cruzadas fortíssimas e ondas altas. A velha traineira embateu num recife e não aguentou, o casco partiu-se. As 177 vidas que iam a bordo, crianças e um bebé incluídos, ficaram à mercê do mar de temporal, a escassos 150 metros da praia. Mergulharam no inferno.

Sabe-se que um avião da patrulha naval italiana deu o alerta para uma embarcação em emergência, à deriva. Duas lanchas da guarda costeira saíram, uma de Taranto e outra de Crotone, para buscas, mas chegaram quando já era demasiado tarde. Há quem acuse esse socorro de ter hesitado e demorado demasiado

Houve quem, a lutar com o mar de tempestade, tenha conseguido nadar até ao areal. Muitos dos embarcados sucumbiram engolidos pelo mar. 

Ao longo da madrugada e da manhã de domingo o Mediterrâneo costeiro devolveu a terra 61 corpos.

As autoridades meteram cada um desses corpos num saco funerário, com uma etiqueta com número de código como identificação para a morgue.

Eram pessoas, tinham histórias. Agora, muitas sem nome, apenas uma etiqueta.

Há histórias de sobreviventes. Um menino com 12 anos conseguiu ter força para nadar até à praia. Contou aos tradutores que tinha perdido toda a gente dele, os pais, os quatro irmãos e mais três parentes.

Desta vez não há corpos à vista, como aconteceu com Aylan em 2015.

Sabemos que a multiplicação de imagens de violência e morte, leva à banalização e gera indiferenças. Às vezes surgem imagens que rompem a monotonia. É o que aconteceu naquele setembro de 2015 quando todos vimos o pequeno Aylan Curdi, menino sírio, migrante, vestido como uma nossa criança, tombado morto na solidão de uma praia turca, quando tentava chegar com a família à Europa da esperança.

Agora, na Calábria, os corpos destes náufragos estão invisíveis, dentro de sacos.

São 61 dos 177 que tinham embarcado. Há desaparecidos que o mar ainda não devolveu.

Não se nota que desta vez haja a comoção que se propagou com a imagem de Aylan e que fez abrir políticas de acolhimento.

Todos aqueles 177 que embarcaram não podem ser considerados clandestinos. É gente que aspirava um futuro que pudesse levantar esperança. 

Demasiadas vezes essa procura da esperança está a ser uma via para o naufrágio fatal.

O Mediterrâneo passou a ter uma linha de cruzeiros do tráfico de seres humanos com vista para a Europa.

Essa migração está a crescer muito. Só nos primeiros dois meses deste ano a polícia italiana de fronteira identificou 13067 chegados. No mesmo período do ano passado tinham sido 5273.

Não sabemos quantas vidas ficaram perdidas, invisíveis, naufragadas no alto mar. São mortos que não existem, desaparecem.

Esta realidade ficou mais crítica com a nova legislação italiana contra o salvamento marítimo. É algo de vergonhoso: o governo de Roma proíbe aos navios de socorro das ONG recolherem náufragos de mais do que um navio.  Se detetarem gente em aflição numa outra embarcação não a podem socorrer enquanto não deixarem os primeiros em terra. E cada navio das ONG só tem acesso a um porto que lhe é atribuído pelas autoridades.

O travão político ao socorro é uma desumanidade.

As vidas perdidas no Mediterrâneo sucedem-se e não é por causa de um desastre natural, é porque o problema político não é enfrentado. É um problema muito complexo, é verdade. Mas a política serve para tratar os problemas.

Ninguém pode dizer que desconhece esta urgência.

Os corpos, deitados no areal uns ao lado dos outros, dentro de sacos brancos, estão invisíveis.

Evidenciam-nos que é necessário tratar a questão crítica da migração, designadamente pelo mar. É gente que se dispõe a tudo para deixar a terra de miséria e chegar à Europa da esperança. A Turquia é um dos entrepostos para a travessia marítima. A Líbia e a Tunísia são outros dois dos mais usados. 

É sabido que é preciso agir em várias frentes. Há que desmantelar as redes de tráfico de seres humanos. É preciso harmonizar políticas com os países que são origem das vagas migratórias. É sabido que o apoio ao desenvolvimento dos países do sul é uma tarefa colossal – mas tem de ser tratada.

O que importa decidir de imediato é o levantamento de restrições ao socorro. Aliás, há que reforçar os meios de socorro de quem se mete ao mar.

Ou é o naufrágio de todos nós.