Lembro a surpresa e o encanto que foi ler Levantado do Chão, o enlevo da revelação daquele mundo, daquela gente e daquela linguagem, o sabor de cada página.
Em tempos, eu conhecia José Saramago apenas de nome, entre outros intelectuais de que se falava lá em casa. Integravam eles, corajosamente, o movimento a que então se chamava «A Oposição», abrangendo todos os que, não se conformando com a ditadura, resistiam e se batiam, com os escassos meios ao seu alcance, e no meio duma censura hostil, por aquilo que seria um mundo melhor, mais livre, mais igual, mais habitável: numa palavra, mais feliz. Na altura, para mim, Saramago era um poeta (sobretudo) ombro a ombro com outros, que se encontravam nas livrarias e nos cafés da Baixa.
Vim a conhecê-lo pessoalmente só muito mais tarde em momentos de intensa e esbravejante movimentação política. Não pude deixar de admirar a sua disponibilidade, o seu apego aos princípios, a sua vontade de equidade e de justiça, e a sua prontidão. Era extremamente interventivo e tomava sempre a palavra, em meio dos assuntos mais intrincados. Dizia o que pensava, mostrava-se franco e aberto.
Respeitado por amigos e camaradas, era uma voz que contava, sobrepondo-se a tantas vozes que então se avolumavam. Mas o Manual de Pintura e Caligrafia em que se pressentia ter apostado muito de si, não foi um sucesso. Nem os tempos estavam para isso, nem ele tinha encontrado ainda o seu rumo de escrita.
Os percalços da vida (comprovando que nos destinos há males que vêm por bem e bens que vêm por mal) acabaram por remetê-lo para o Alentejo, perto do Lavre, onde se deixou ficar, trabalhando, trabalhando sempre, em contacto com aquela magnífica gente.
E sai dali um romance que produz a estupefacção de todos os que o conheciam, obtém críticas entusiásticas e rapidamente se divulga e multiplica. Era um Saramago renascido que tínhamos pela frente. Aquelas falas, aquela maneira de dizer (de escrever), o embalo daquela cadência, expunham, como nascido do nada, um enorme escritor, breve reconhecido e admirado em todo o mundo.
Depois vieram o excepcional Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, por muitos considerado a sua obra-prima e toda uma bibliografia de altíssima qualidade e repercussão internacional, de que a atribuição do prémio Nobel foi um expoente.
Foi uma honra tê-lo conhecido e com ele convivido, em várias e diversas andanças. Notei que sempre encorajou e animou fraternalmente os jovens autores. Posso assegurar que foi com alguma comoção que assisti à reposição das suas obras e marquei com a minha pobre caligrafia, a pedido da Editora, a capa de A Viagem do Elefante. Homenagem sentida de um admirador antigo.
Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel
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