A visita inesperada do vírus SARS-CoV-2 a Portugal estragou completamente o brilharete orçamental que andávamos a preparar cuidadosamente há cinco anos. Vá lá, que ainda deu para mostrar um valor positivo nas contas públicas de 0,1% em 2019, mas logo a seguir foi a catástrofe. O saldo orçamental de 2020, nos cálculos do próprio Governo no Orçamento do Estado, em vez de ser positivo em 0,2% do produto, como se antecipava, caiu para -7,3%, muito pior que os -4,4% que existam quando este Executivo chegou ao poder, em 2015. A dívida pública, que fora morosamente reduzida em onze pontos percentuais até 117,7% do produto em 2019, deve ter atingido em 2020 um novo máximo histórico de 134,8%.

A primeira coisa a dizer é que isto não é o fim do mundo. Afinal, esta situação financeira é praticamente igual há que tínhamos há sete anos. Em 2014 o défice foi 7,4% do produto e a dívida atingiu nesse ano o maior pico até então, 134,1%. Dificilmente podíamos encontrar valores mais parecidos com os de 2020.

No entanto, estes números, em si, são uma surpresa. Portugal teve durante a pandemia uma queda económica de 7,6% num único ano, algo que não acontecia por cá desde 1921, há precisamente cem anos. Como pode o resultado orçamental desse desastre ser apenas regressar à situação que tínhamos no final do último programa de ajustamento? Claro que é um agravamento muito forte do desequilíbrio em poucos meses, mas nada de comparável com o que se esperaria de tal devastação sanitária e económica. Isto exige uma explicação.

1. Os pobres pagaram a crise

O elemento mais notório deste desequilíbrio orçamental, e também o mais inesperado, é que ele realmente é muito baixo em relação ao que devia ser. De facto, quando perguntamos quem pagará esta crise, temos de começar por dizer que foram os pobres e os mais atingidos pelo choque da pandemia quem mais a suportou.

O Governo português, na linha dos seus parceiros, foi rápido a intervir perante o terrível efeito da pandemia, e no sentido certo. Perante uma perturbação deste tipo o que há a fazer é suportar o rendimento das famílias, adiar os seus encargos, ajudar as empresas encerradas e colocar dinheiro no bolso dos cidadãos, para evitar uma espiral depressiva que destrua todo o aparelho produtivo. Foi isso que foi feito e é de louvar. Infelizmente, como tem sido apanágio da nossa Administração, prometeu-se mais do que se fez, e fez-se pouco, tarde e mal.

Os anúncios dos programas e medidas multiplicaram-se, numa profusão de pequenas ajudas de curta duração. Isso significou uma enxurrada de regras, mecanismos e exigências, que mudavam continuamente, e que uma burocracia atenta mas morosa fazia questão de emperrar. Para lá das moratórias, eminentemente suspensivas, o chamado lay-off foi o único mecanismo com algum fôlego, mas mesmo esse foi limitado no âmbito e acabou rapidamente, sendo eventualmente substituído por clones.

Pior, politicamente influenciado pelo impacto mediático como sempre, o foco manteve-se limitado às classes mais visíveis e reivindicativas da sociedade, esquecendo as ocultas e marginais, em geral as mais atingidas. Ao contrário de muitos outros países, por cá praticamente nada se ouviu sobre o apoio de trabalhadores ocasionais, negócios informais, imigrantes, mendigos, vendedores ambulantes e outros casos que, não só já eram os mais pobres, mas estiveram entre os mais afetados.

Assim, tem de se dizer que o défice deveria ter sido muito maior do que foi, se se tivesse querido evitar que os mais afetados pagassem a crise. O problema fica bem claro ao considerar, não os anúncios de verbas, mas os valores realmente gastos (números medidos em contabilidade pública, e publicados na estimativa da Direção Geral do Orçamento para a execução de 2020). Aí destaca-se a queda de 31% nos Subsídios do Estado face àquilo que Orçamento suplementar previa gastar; nas Transferências correntes, que incluem pensões e outros apoios às famílias, a queda foi menor, 1,8%, mas significativa. No total da despesa pública, a evolução é ainda mais estranha: acabou por se gastar, não só 6,8% menos do que aquilo que previa o Orçamento Suplementar de Junho, mas até se ficou 2,5% abaixo do estabelecido no Orçamento original do ano de Dezembro de 2019. Afinal o tal aumento do défice ficou a dever-se exclusivamente à queda de receitas, porque as despesas até foram inferiores ao que se dizia que iam ser antes da epidemia COVID. Ou seja, na linha aliás das já clássicas cativações, foram muito mais as vozes que as nozes nas medidas de apoio à economia. Não podem restar dúvidas que o Estado português se mostrou demasiado parcimonioso num momento em que o país mais precisava da sua ajuda.

Isto são, esperemos, águas passadas. Para os que sobreviverem à peste, aquilo que dominará a atenção nos próximos anos será, de novo, a situação orçamental, que se dizia estar resolvida após longo esforço, mas voltou à primeira linha das preocupações. Lá vamos nós ter de pagar mais um buraco do Orçamento que, na estimativa preliminar, como se disse, é igual ao que tínhamos quando a troika se foi embora em 2014. Como devemos enfrentar o problema? Existem duas respostas a esta questão, aliás bastante diferentes: aquilo que devia ser, e aquilo que realmente será.

2. Como se devia pagar a crise

A escolha recomendável seria não regressar ao caminho dos últimos anos. À primeira vista esta opção é estranha, porque a verdade é que a receita recente teve sucesso. Mas isso é esquecer o elemento ausente dessa linha: o crescimento.

A melhor forma de eliminar um desequilíbrio nas contas públicas é apostar fortemente na dinâmica de desenvolvimento. Com a economia a crescer, não só as receitas dos impostos florescem e se reduzem as necessidades de despesas de apoio à sociedade mas, subindo o nível da atividade, os valores do défice e da dívida caem em percentagem do produto. Assim, para um país endividado não há solução mais eficaz, e mais agradável, que fomentar a dinâmica produtiva.

Ora esse foi precisamente o aspeto ausente da receita dos últimos anos. Nos 80 trimestres desde o início deste milénio, de 2001 ao fim de 2020, só em cinco deles crescemos mais de 3% ao ano e em nenhum mais de 4%; mas nos 80 trimestres anteriores, do início de 1981 ao fim do ano 2000, crescemos acima de 3% ao ano em mais de metade, 43 trimestres, e mais de 4% em 27 deles, um terço dos 80. Por outro lado, se compararmos a dinâmica recente com a dos nossos parceiros, vemos que o crescimento português nos cinco anos, do fim de 2014 ao fim de 2019, ficou em 18º lugar nos 27. Muitos celebraram o facto, porque crescemos mais que a média europeia e muito mais que nos anos anteriores da terrível crise. Mas a verdade é que a taxa conseguida foi medíocre e nesse período fomos ultrapassados em nível de vida pela Estónia e Lituânia e ameaçados de perto pela Eslováquia e Hungria. Se continuarmos pela mesma via nos próximos cinco anos ficaremos irremediavelmente na cauda da Europa.

A razão por que o crescimento foi tão fraco é fácil de descrever. O motivo principal é, evidentemente a descapitalização da economia que nos assola há uma geração. O Estado, as empresas e as famílias estão endividados, a banca está frágil, a poupança e o investimento estão em mínimos históricos. Sem capital não há desenvolvimento. Mas o mais preocupante é que este aspeto decisivo não figura nas discussões correntes da sociedade.

Ninguém fala disto. A estratégia de desenvolvimento dos últimos anos baseou-se na promoção do consumo, e a alegada consolidação orçamental não implicou qualquer reforma estrutural do aparelho público. Em vez disso, o sucesso centrou-se na tributação feroz de toda atividade produtiva, levando a carga fiscal a níveis nunca vistos entre nós. Ao mesmo tempo baixavam-se alguns impostos mais visíveis para se poder falar em alívio. Do lado das despesas, mantinham-se pensões e salários públicos, negando a existência de austeridade, enquanto se cortava furiosamente em gastos de funcionamento e investimento. Assim, até o aparelho público se descapitalizou, como se viu nas fortes carências de serviços durante a pandemia.

Basta esta breve descrição para se entender que a linha seguida no país é precisamente a oposta ao fomento produtivo. Favorece-se o consumo degradando o aparelho económico e social. Sinal disto, o investimento líquido das administrações públicas é negativo desde 2012 e até o investimento líquido de toda a economia foi negativo do fim de 2011 a meados de 2018. Isto significa que aquilo que se investe não chega sequer para compensar o que se degrada nos equipamentos com a atividade quotidiana. Assim, como pode haver crescimento decente?

3. Como se vai pagar

A razão deste desajustamento entre as necessidades do desenvolvimento e as estratégias nacionais não se deveu, antes de mais, à incompetência dos ministros ou a uma maldade ideológica dos partidos no poder. Os motivos da orientação têm raízes profundas na realidade nacional, que lhes permitirão certamente resistir até ao terrível choque do vírus. Por isso, tudo indica que a linha recente será a que se vai seguir nos próximos anos. Já se começam, aliás, a ouvir as vozes recomendando a criação de novos impostos para tapar o buraco da pandemia. A receita do estrangulamento do crescimento vai perdurar.

A política portuguesa está há mais de uma geração dominada por certos grupos sociais, que capturaram a seu favor os dinheiros públicos. A influência desses interesses é tal que obrigam todos os Governos, que quiserem manter-se no poder, a operar sem tocar nesses pilares fundamentais.

É muito importante dizer que esses grupos não são parasitas, não são corruptos, não são malévolos. São profissionais competentes, válidos e produtivos que, por isso mesmo, se acham com direito a mais do que têm. Se fossem delinquentes teriam algum pudor nas suas exigências; precisamente porque se sentem legitimados, as suas imposições são muito mais desbragadas. Todos conhecemos esses grupos, porque eles dominam as notícias: professores, médicos, funcionários, pensionistas, câmaras, bancos, construtoras, advogados, sindicalistas, etc., etc. Não são, nem de perto, as classes mais necessitadas da sociedade, mas estão sempre a passar por vítimas e a exigir mais do que têm. Qualquer ministro que se atreva a beliscar os seus benefícios está perdido.

Esta linha é, aliás, a origem da segunda razão da falta de desenvolvimento nacional, a par da referida descapitalização: um enorme desequilíbrio no mercado de trabalho entre os sectores protegidos e precários. Algumas fatias da nossa força laboral, em todos os sectores, conseguiram negociar para si condições leoninas blindando, não só os seus empregos, mas fortes regalias. Isso é feito em nome dos “direitos dos trabalhadores”, mas que são, realmente, os direitos de alguns trabalhadores, porque uma larga fatia, sobretudo de jovens, não lhe têm acesso, precisamente porque os mais velhos ocuparam os lugares.

Isto, que acontece no mercado de trabalho, é também verdade na despesa pública, que há trinta anos ocupa mais de 40% do produto nacional, e há vinte está quase ininterruptamente acima dos 45%, alimentando os tais poderosos grupos que nem a troika conseguiu desalojar. A obra notável dos cinco anos anteriores à pandemia foi, não tanto conseguir equilibrar as contas públicas, mas fazê-lo sem afrontar esses interesses instalados. Isso foi feito, como se disse, oprimindo a dinâmica produtiva, degradando o aparelho empresarial e os serviços públicos e contentando-se com um crescimento medíocre. Tudo indica que será esse o caminho que nos espera nos próximos tempos.

O sinal mais evidente disto vê-se numa leitura atenta do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) com que o nosso país se candidata aos famosos fundos milionários da Europa. Os propósitos são lindos e as ideias luminosas. Mas olhando para os projetos concretos vemos que repetem as velhas linhas políticas nacionais. A grande maioria do dinheiro vai ser gasto nas duas formas mais seguras de garantir votos e imagem mediática: construções e funcionários. Mesmo o pouco que aparece nas rubricas de apoio social, promoção do ambiente ou da cultura é, realmente, mais obras e mais burocracias. O investimento produtivo quase não se vê e, suprema ironia, a pequena fatia que se diz ir para capitalizar empresas é dominada pela criação de um novo banco público, como se o nosso desenvolvimento precisasse de dois. É evidente que, apesar de toda a retórica, o PRR vai continuar a linha dirigista, estatista e consumista, agora mascarada de descarbonização e digitalização.

Neste momento só resta uma única dúvida quanto à forma como se vai pagar a crise: saber se os governos dos próximos anos vão continuar ou não a interiorizar a necessidade de cumprir os limites orçamentais europeus. Se seguirmos a primeira alternativa, que é a do período anterior à pandemia, esperam-nos mais anos de tributação e descapitalização, protegendo os interesses instalados e sacrificando o crescimento. Se viermos a esquecer ou descurar a exigência orçamental do equilíbrio, como fizemos tantas vezes no passado, poderemos durante algum tempo combinar crescimento com as benesses, até ao inevitável colapso financeiro que nos entregará a uma nova troika.

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