Antes de entrar na ordem do dia, não posso deixar de introduzir um àparte: nunca percebi porque é que Trump tinha – e ainda deve ter – tantos adeptos em Portugal. 

As razões que o levaram a concorrer e, surpreendentemente, a ganhar as eleições de 2016, fazem sentido nos Estados Unidos e foram esmiuçadas até à exaustão por incontáveis analistas de todas as especialidades, desde a psiquiatria à sociologia. A actuação do Homem Mais Poderoso do Mundo tem, evidentemente, reflexos no mundo inteiro, inclusive aqui neste canto periférico da Europa. Mas, em termos ideológicos, que é certamente a motivação dos trumpistas portugueses, não consigo encontrar uma relação qualidade/preço. Tirando de parte o seu feitio, impossível de ignorar, não há uma filosofia política definível na sua actuação. Um autocrata, um pretendente a ditador, sem dúvida; mas na prática o sistema de “checks and balances” cortou-lhe as vazas e, apesar do grande estrondo, as suas iniciativas mais proclamadas falharam estrondosamente. Não conseguiu vencer a guerra comercial com a China; não construiu as infraestruturas que prometeu; não acabou o famigerado muro na fronteira mexicana que iria impedir os drogados e “dealers”, bandidos e inúteis do Sul de entrar no país; não reverteu a inevitável decadência industrial do país; e, em vez de tornar a América “great”, transformou-a num país isolado no cenário mundial e irremediavelmente dividido no palco nacional. E ainda deixou alastrar uma epidemia de proporções bíblicas que provocou desemprego e miséria a níveis só comparáveis à grande depressão de 1929.

Então, o que gostarão esses portugueses nele? Será o laranja monocromático do cabelo e da pele? A gravata vermelha (“Made in China”, como se vê numa foto) pendurada até à braguilha? A escultural e totalmente obscura Melania, uma imigrante do Leste europeu, bem-sucedida? O temperamento volúvel e exaltado que levou a uma rotação de secretários de Estado e assessores que daria para quatro ou cinco mandatos? A emoção diária, constante, dos tweets que despediam pessoas, liquidavam carreiras e mudavam políticas em 140 caracteres?

Bem, a questão está ultrapassada, portanto vamos à ordem do dia, que são outras duas perguntas: como é que Trump, um homem que aldrabou tudo na vida, desde as notas na universidade aos negócios, falidos e/ou desonestos, conseguiu criar um movimento de massas? E como é que esse movimento ganhou uma vida própria tão forte que continuará nos próximos anos a ter um peso considerável no eleitorado?

Para não entrar em grandes divagações económicas e sociais, parece evidente que Trump, tal como os novos autocratas do século XXI, foi buscar o desencanto dos desfavorecidos pelo “establishment” das elites que decidem por eles, mas nunca a favor deles. A democracia, que famosamente é “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras” (Winston Churchill, 1947) evoluiu da vontade da maioria para o domínio duma minoria – minoria essa que luta entre si pelo poder, mas une-se para mantê-lo.

O que é interessante – e extremamente assustador – é que, quando aparece um indivíduo carismático que promete acabar com o jogo das elites, as massas seguem-no alegremente, sem sequer pensar na contradição evidente: ao tornar-se líder, ele também passa a fazer parte das elites dominantes e certamente não trará alívio algum aos desfavorecidos da vida. 

Foi o que aconteceu com Trump. Mas com uma originalidade ainda mais assustadora; ao contrário dos autocratas do passado, a dinâmica que ele despertou não morre com ele. O trumpismo tornou-se um movimento autónomo, ganhou peso eleitoral e força social. Mesmo que Trump seja impugnado (“Impeached”) e não possa voltar a candidatar-se, a besta cega que ele criou continua viva e disposta a tudo. (Ainda ontem vi um seguidor afirmar que a solução para o país será uma nova cessação dos Estados do Sul. Não o disse aos gritos e a esbracejar; falou pausadamente, reflectindo uma opinião certamente partilhada por muitos dos vários gangues de supremacistas brancos que nestes quatro anos proliferaram como a peste.)

Falando agora de coisas práticas, outra razão para a sobrevivência do trumpismo é uma parte das tais “elites” ter constatado que o sistema funciona, tencionando dar-lhe oxigénio. Mitch MacConnell, Ted Cruz, entre outros, já estão a negociar uma espécie de vida clandestina do trumpismo. E, 147 parlamentares republicanos votaram a favor da impugnação das eleições, após a invasão do Senado. Porque têm medo da retaliação dos seus eleitorados, diz-se. Mas talvez medo não seja a palavra certa; será mais esperança – a esperança de poderem cavalgar o trumpismo a seu favor. Não interessa se o trumpismo carece de coerência ideológica, ou se tem soluções brutais para os desfavorecidos (pobres, negros, imigrantes, desempregados de sectores industriais moribundos, etc); o que importa é que os trumpistas lhes darão votos nos seus círculos eleitorais e, se um deles for o candidato apropriado, nas próximas eleições nacionais.

Joe Biden não ganhou a presidência por ser particularmente atraente; quem lhe deu a vitória foram os eleitores que estavam fartos do trumpismo, ou assustados com as desgraças que ele provocou e continuaria a provocar. O voto Biden foi um voto anti-Trump, e bem podem os comentadores afirmar que o “sistema” sofreu uma séria ameaça, mas sobreviveu. Resta saber se será possível consertar tudo o que foi quebrado, desde as decisões ambientais à credibilidade de eleições democráticas. O sistema sobreviveu, mas o prognóstico ainda é reservado.

Ouvir agora Biden, um completo anti-Trump, é como um bálsamo macio  numa ferida ardente. O tom de voz conciliador, o bom senso das propostas, a promessa duma volta à política “normal” – com antagonismo, mas sem histeria.

Logo no primeiro dia da sua tomada de posse como Presidente, na quinta-feira, assinou 17 decretos-lei que eliminam ou contrariam as decisões mais descabeladas do seu antecessor. Entre elas, deu a possibilidade de cidadania aos 11 milhões de miúdos que imigraram para os Estados Unidos pela mão dos pais. Estavam provisoriamente protegidos de expulsão por um decreto-lei de Obama, o DACA (Deferred Action for Childhood Arrival), que Trump suspendeu e pretendia eliminar. Também extinguiu a proibição de entrada no país de cidadãos de vários países muçulmanos, como o Irão, Líbia, Somália, Síria e Iémen. Assinou a reentrada do país nos Acordos de Paris e na Organização Mundial de Saúde. Acabou com a construção do muro na fronteira com o México. Proibiu o oleoduto que traria petróleo do Canadá (“Keystone pipeline) através de terras virgens. 

Segundo os especialistas, Biden tem seis crises pela frente: a pandemia, as mudanças climáticas, a desigualdade social crescente, o racismo, o estatuto internacional do país e a debilidade do sistema democrático.

A pandemia mereceu uma atenção especial, até porque se descobriu que a administração Trump não tinha, afinal, nenhum plano de combate a nível nacional. Entre outras acções, Biden criou o cargo de representante federal para a pandemia em cada um dos cinquenta Estados; pôs em marcha o chamado “Federal Defense Act” (que permite mobilizar as indústrias para produzirem meios adequados de combate à crise sanitária) e prometeu vacinar 100 milhões de pessoas, no prazo de 100 dias. Também prolongou as moratórias de dívidas, rendas de casa, hipotecas, crédito estudantil, e  ainda vai levar ao Congresso um pacote gigantesco de recuperação económica.

A lista de decisões é extensa e tem como ponto comum o bom senso; atitudes que seriam de esperar de um Governo coerente e que não foram tomadas por Trump.

Será que o bom-senso é suficiente para desbaratar o trumpismo? Não parece, uma vez que o sucesso de Trump foi precisamente a falta de bom senso e, pelo menos até às eleições, funcionou muito bem. Prognósticos? Só em 2024.

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