Morreu Mário Soares. Sim, afinal, não era imortal mas relembro que aquela tartaruga que ele montou, na visita às Seychelles, já faleceu há muito tempo.

Tinha dez anos a primeira vez que ouvi falar em Mário Soares. Estávamos nos últimos dias de Abril de 1974 , entrei na cozinha e a minha mãe estava a dizer ao meu pai: ”O Mário vai chegar de Paris!” Nunca mais me esqueci, porque pensei que ia ter um irmão.  

Recordo com saudade aquele célebre debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, (lembro-me que me deixaram ficar a jogar master-mind até mais tarde) no dia seguinte, na Escola Eugénio dos Santos fui para a rua em todas as aulas, porque sempre que um professor dizia alguma coisa, eu dizia –“olhe que não, olhe que não.”

Foram bons tempos. Deixei de saber de cor as estações de Caminho de Ferro de Benguela o que foi um alívio porque sempre tive a perfeita noção de que aquilo não me ia servir para nada. Munhango - Calenga - Cavingi - era como ter de decorar o plantel do União da Madeira. Só por isso, Mário Soares merecia para sempre um lugar quentinho no meu coração.

Soares ficou como o ódio de estimação dos, na altura, chamados retornados e que, por incrível que pareça, ainda hoje existem. Eu pensei que retornados era um conceito passageiro. Mas não. São aquelas pessoas que em 2017 ainda têm girafas de madeira na sala, um autocolante da Penelope no carro e que no ano de 2597 ainda hão de comprar, no Natal, aqueles livros com fotos de Lourenço Marques em 1970.

De Mário Soares recordo bem esses tempos pós revolução, porque era impossível evitar ouvi-lo, e os últimos tempos, quando da vinda da Troika, porque não queria deixar de o ouvir. Soares desde novo tinha aquele defeito dos velhotes que é, dizer o que pensa. Claro que, aos oitenta anos o problema com o facto de ele dizer o que pensava é que, normalmente, nesta idade, espera-se que saiam coisas do género: “esta juventude está perdida”, “no tempo do Salazar  é que era” ou “a sopa está fria!”. Que chatice, o raio do velhote, em vez de se queixar do tempo e das articulações queria pôr-nos a pensar. Para algumas pessoas um tipo com oitenta e muitos anos bem podia guardar as suas opiniões para mais tarde. Tem tanto tempo.

Confesso que o que mais me decepcionou em Soares foram os seus últimos anos no Conselho de Estado. Por exemplo, vi Mário Soares abandonar o Conselho de Estado do pós Troika a meio, como se aquilo não servisse para nada. Discordei dessa postura. Mário Soares, que já não tinha muito a perder, podia ter aproveitado o Conselho de Estado para dar um tiro no Cavaco. Uma pessoa não pode ter a fama de ser o "Pai da Democracia" e não fazer o que é necessário por ela. Ainda para mais, Mário Soares era o único que podia entrar armado no Palácio de Belém porque, mesmo que apitasse à entrada, ninguém teria coragem de fazer um revista ao "Pai da Democracia" com medo de ficar para sempre com fama de fascista.

Para terminar, porque tudo termina, acima de tudo, o que mais sobressai em Mário Soares é o ar de bem estar, e estar bem, que sempre o caracterizou e tantos invejam. Um dom que assenta na mais complicada das simplicidades: um enorme gosto pela vida.

Sugestões do autor

  1. Um livro de 2016 para o inverno de 2017 – Bandolim - Adília Lopes – como sempre há gatos, janelas e memórias. Chega perfeitamente.
  2. Para abanar o que quiser temos no dia 14 de Janeiro (Sábado), no Lux Frágil (em Lisboa), Joe Goddard (Hot Chip / The 2 Bears) – fica a faixa
  3. Depois de um ano que se diz ter sido péssimo nada como recordar no site da Space.com "The Most Amazing Space Discoveris in 2016" – foi um grande ano para quem gosta mais de espaço e menos de pessoas