Os empreendedores – melhor, os startupers – da 2.ª década do século XXI são muito diferentes daqueles que faziam uma nova empresa nas décadas anteriores, sobretudo os dos anos 90 e 80. Poderíamos especular que resulta dos ensinamentos anteriores, da experiência, de learning lessons, mas, na realidade, não é bem assim. Sobretudo, porque a maior parte destes startupers é demasiado novo para ter sequer memória da aventura yuppie dos anos 80 e mesmo da febre dotcom/nova economia dos anos 90.

Este artigo resulta de uma conversa numa noite de verão. Falava-se sobre a moda de ter uma startup. E de como, para muitos jovens empreendedores, mais do que ter um negócio e encontrar um caminho de realização, lançar uma startup é, também, uma forma de vida, um sentimento de pertença a uma comunidade e até um prolongamento da doce liberdade da adolescência quando tudo é ao mesmo tempo possível e impossível. Muitos podem ser contagiados pelo efeito ‘moda’, mas, na realidade, esse é um problema menor. O tempo passará e como todas as coreografias que não passaram disso mesmo, se esse for o caso, será substituída por outra coisa qualquer. Interessa mais o que fica, a mudança profunda. E uma das mudanças profundas destes anos em que o capitalismo mostrou as suas maiores forças e as suas terríveis fraquezas, é que nunca foi tão barato financiar novas ideias e colocar novas empresas no mercado.

O modo de vida de um verdadeiro empreendedor/startuper não é muito diferente de um miúdo de 18 ou 20 anos acabado de chegar à universidade. É verdade que alguns têm mesmo 18 ou 20 anos, mas vamos deter o nosso olhar sobre os mais maduros. Terão entre 25 e 35 anos, muitos com um doutoramento em áreas de grande complexidade e talvez já com uma ou duas experiências prévias em startups que não conseguiram ter sucesso. Mas eles continuam. Recusam entrar no pipeline das grandes empresas, fato e gravata, secretária, gabinete, carro de serviço. Vivem em apartamentos de renda dividida, comem hamburguers, adiam famílias o mais que podem. (a família, sendo uma escolha, traz o vínculo a uma prisão económica de que querem escapar).

Estes miúdos já são gente crescida. Não são caloiros, não são estagiários. Trabalham, por decisão própria, mais horas do que algum patrão lhes poderia algum dia exigir (e obter). Menos de 12 horas é para meninos. Fins de semana, feriados, férias … há quem não domine exactamente o conceito. Desde que saíram de casa dos pais que não conhecem outras companhias de aviação que não as low cost e outros hóteis que não os hostels ou os apartamentos arrendados a dividir por quatro, cinco, seis. Nada disso os perturba. Vivem num regime de escravatura moderna, mas são felizes. São escravos do tempo que não têm, das horas sem fim a desenvolver produtos, do compromisso multi-funções que os torna CEOs, programadores, cientistas, marketeers, helpdesks, moço de entregas, motorista. O que for preciso. São felizes.

Para alguns, um dia as coisas correm bem. O que é correr bem? É conseguir um investimento. É poder dizer à tribo de startupers ‘nós levantámos um milhão’. Levantaram de onde? Do banco? Não, de um ou de vários investidores que, vencidos pitchs, roadshows, prototipagens e alguma sorte ‘social’ decidiram investir naquela ideia, naquele projecto, naquela equipa.

Com um milhão, a vida muda, certo? Errado. Na maior parte dos casos não muda quase nada. Continuam a viver no mesmo apartamento arrendado, a comer os mesmos hamburgers e pizzas, a viajar nas mesmas low cost e a não ter o mesmo ordenado. Leram bem. A maioria destes startupers não tem ordenado atribuído, muitos vivem meses a fio sem qualquer tipo de rendimento, fazendo esticar a corda de poupanças, pequenos prémios de incentivo e afins. Quando o ‘big money’ chega, há euforia pela validação e pelo oxigénio, mas é uma euforia cautelosa. O dinheiro não é para gastar. Não vão a correr para um escritório maior e não vão contratar gente por aí além. Se calhar nem vão contratar. O dinheiro é para durar. O dinheiro é para garantir que conseguem perdurar no tempo. Mesmo que a
startup não dispare. Mesmo que não haja a ‘tracção’ necessária.

O importante é não parar. O importante é continuar na corrida. Uma espécie de maratona, garantidamente uma prova de resistência em que o prémio que faz correr se chama liberdade. ‘Something mine’. Ser dono de mim próprio. É esse o bichinho. É essa a diferença. Porque as empresas grandes também caem (caramba, até os bancos caem). Mas sobretudo porque as empresas grandes se assomam como prisões onde todo e qualquer acto de liberdade, criatividade e irreverência será suprimido no instante em que se cruzar a porta de entrada. Pode ser percepção, mas esta percepção está a mudar uma geração. Os filhos dos
yuppies não querem ser cavalheiros e senhoras de fato, gravata e vestido bem comportado. Não querem entrar às 9, sair 12 horas depois e ambicionar ao lugar do chefe, aos favores do chefe, ao aumento que poderá ser atribuído se-fizer-tudo-bem. Adiam os quatro filhos, o cão e a casa de praia para mais tarde. Têm tempo.

Os filhos dos yuppies querem ser cool, querem poder ir trabalhar de chinelo e calções e sobretudo querem ser livres. Alguns querem tão desesperadamente ser livres que estão dispostos a escravizar os ditos melhores anos da sua vida em busca do santo graal que os levará a essa liberdade. Outros farão ‘isto’ vida fora, se nada lhes interromper o caminho: mais que dinheiro, estatuto, qualidade de vida, querem um propósito. Querem mudar o mundo e, já se sabe, hoje é nas empresas que se muda o mundo.

Na plateia, em filas VIP, os donos do dinheiro assistem de forma privilegiada ao que se passa neste palco. Têm tantos actores, tantas narrativas diferentes, tantos efeitos especiais possíveis. Só têm de escolher, em função do seu perfil de investimento, da sua ganância ou generosidade e, também para alguns, do seu propósito. Mas nunca foi tão barato comprar ideias e criar novas empresas. Sem ter responsabilidade sobre equipas, salários, valores futuros. Vivendo para o presente e para um futuro a não mais que três anos. E podendo diversificar apostas em quantos actores e narrativas a carteira entender acomodar.

O mundo anda hoje mais rápido do que nunca e os startupers são a sua grande alavanca. Não param de crescer e não param de correr. Empregar cinco doutorados numa área de ponta não custaria a um investidor menos de meio milhão por ano. Trabalhariam certamente muito e bem, mas ainda assim menos e pior do que para eles próprios. O mesmo meio milhão é sinónimo de ‘levantar dinheiro’ para dois ou três anos, sem outros encargos. Se a ideia vencer, o investidor tem tudo a ganhar; se perder, não perde mais do que investiu.

No conceito americano, uma startup é uma empresa de rápido crescimento. Uma boa ideia, um negócio a crescer rápido e para vender rápido. Uma startup à portuguesa é outra coisa. Uma boa ideia, mas em muitos casos, também um longo calvário. Até que alguém acredite no projecto, até que todo o dinheiro gasto mostre evidências que vai ser um bom negócio. Quem fala com empreendedores regularmente, ouve demasiadas vezes a mesma história. Os investidores à procura de dinheiro rápido e fácil, os bancos à procura de dinheiro seguro e os incentivos que consomem horas e horas, muitas vezes em exercícios de pura especulação.

Ainda assim, cá fora, são invejados. Pelas grandes empresas, subitamente menos sexy. E por todos os que também decidem abrir um qualquer negócio e que em vez de terem uma empresa dizem que também têm uma startup. Uns e outros preocupam-se com a liturgia. Tentam fazer parte da religião, copiam-lhes os tiques, perseguem-lhes o estilo.

Nunca leram as aventuras de Tom Sawyer. E só por isso não sabem que para fazer de pintar o muro uma experiência, é preciso acreditar – ou fazer acreditar – que pintar o muro é ‘a’ experiência.

Rute Sousa Vasco é jornalista e directora de conteúdos do SAPO. Escreveu dois livros, "A sorte dá muito trabalho" e "Banco bom, banco mau". Gosta de política, de discussões acaloradas sobre por onde vai o mundo e de conhecer novas ideias. É também sócia de uma  empresa que acredita no poder das boas histórias, justamente chamada True Stories. Costumam dizer-lhe que foi empreendedora antes de tempo e por isso aprendeu mais cedo que ser patrão é mais trabalho e menos conhaque. É mãe do Miguel e da Margarida, os seus interesses maiores na vida. Entre os outros contam-se alguns prazeres da cozinha, escrever, ler e pensar.