A “nossa” Birmânia” do século XVI, e Burma britânica no século XIX, tornou-se independente em 1948 e, em 1989 mudou o nome para Myanmar. Desde o golpe do general Ne Win, em 1962, que a situação política tem sido uma sucessão de brutalidades e compromissos instáveis. As forças armadas, Tatmadaw, controlam completamente o país, tanto política como economicamente. Os generais estão presentes no aparelho do Estado e dirigem as empresas estatais e privadas. Na constituição, imposta pelos militares, o exército controla os serviços de segurança, escolhe vários ministros, inclusive o da Defesa, um quarto dos deputados, e tem direito de veto constitucional.
Esta situação vem de 1962, quando as Tatmadaw derrubaram o governo civil de U Nu. Foram as pressões internacionais que levaram a tropa a inventar esta Constituição, em 2009, por decisão do chamado “Conselho de Estado para a Paz e Desenvolvimento”, presidido pelo general Ne Win. Em 2010 foi eleito o primeiro presidente, o general reformado Thein Sein. Novas eleições, em 2015, deram a vitória ao partido Liga Nacional para a Democracia, dirigido por Aung San Suu Kyi (cujo pai, Aung San fundador da Birmânia moderna, foi assassinado em 1947) mas não a deixaram governar. Escolheu-se então outro dirigente do partido, Wyn Myint, enquanto Aung San Suu Ky ficou reduzida a um cargo equivalente ao de Primeiro-Ministro.
Aung San Suu Ky, que esteve em prisão domiciliar durante 15 anos, tinha-se tornado uma figura mítica tanto no país como no mundo. Tanto, que foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Paz, em 1991. Era o símbolo da resistência pacífica ao poder da Tatmadaw, que não só controlava o país ,como praticava sistematicamente massacres das minorias étnicas não budistas.
Como resultado das eleições de 2015, Aung San Suu Ky fez um acordo com os militares, dando uma aparência democrática ao regime, mas sem interferir nas suas operações. Uma delas, a perseguição e massacre do povo Rohingya, muçulmano, fez as manchetes internacionais e colocou-a numa posição delicada. Confrontada com a situação, negou o genocídio, tornando evidentes as inconsistências do seu convívio com a oligarquia. Houve mesmo um movimento para lhe retirar o Prémio Nobel, que não chegou a concretizar-se.
A 8 de Novembro do ano passado, novas eleições repetiram a vitória avassaladora da Liga Nacional para a Democracia (83% dos 476 assentos parlamentares). Depois de remoer a situação, a Tatmadaw decidiu que não podia ser assim– certamente que as eleições tinham sido irregulares (apesar de os observadores internacionais não terem visto nenhuma fraude).
Assim, esta segunda-feira prenderam Aung San, o Presidente eleito, todos os deputados da Liga, os governadores das províncias, três monges budistas (?!), intelectuais vários e contestatários em geral.
O general Min Aung Hlaing, actual Chefe do Estado Maior, declarou o estado de sítio, alegando que estava a proceder de acordo com a Constituição, uma vez que os resultados eleitorais não podiam ser aqueles... (onde é que acabámos de ver uma situação parecida?) A tropa veio para a rua, a Internet e os telefones foram cortados, não fosse a populaça levar a coisa a mal – dos 54 milhões de birmaneses, 22 têm conta no Facebook.
Ainda assim, milhares vieram para a rua protestar, uma boa desculpa para mais prisões. Os militares alegam que o Presidente continua a presidir e que o Parlamento não foi dissolvido, só suspenso até novas eleições.
A “comunidade internacional”, essa piedosa figura de estilo, já rasgou as vestes, mas numa reunião de emergência na ONU, chineses e russos opuseram-se a represálias imediatas contra os militares. Alguns países estão a considerar aplicar sanções aos generais mais iminentes (as continhas na Suíça...) e mesmo contra o país, mas é de duvidar que tenham algum efeito prático, para lá de aumentar a pobreza constrangedora da população.
Segundo o “The Economist”, Myanmar acaba de recuar uma década. Mas, na verdade, não recuou. O que aconteceu foi apenas mais um episódio de uma situação que existe desde 1962. Pelo caminho, quase um milhão de Rohingya foram expulsos do país, outras minorias sofreram atrocidades, milhares de pessoas foram presas ou desapareceram, uma Prémio Nobel foi sacralizada e depois denunciada, houve eleições e contra-eleições – mas nada mudou.
Aung San Suu Ky tentou fazer um pacto faustiano com o demónio. Já muitos protagonistas históricos tentaram fazer o mesmo – colaborar parcialmente com os maus, a ver se se alivia o sofrimento dos bons. Do mal o menos, digamos. Mas, que se saiba, estes pactos acabam sempre mal, para os protagonistas e para os bons.
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