O título deste texto parece óbvio, quase redundante, mas casos como «PSP sodomiza sem-abrigo com bastão. Colegas filmam a cena e riem-se» mostram que, na realidade, as vítimas podem temer as autoridades, e com razão. Quando um agente da PSP viola uma pessoa em situação de extrema vulnerabilidade, e quando colegas assistem, filmam e riem, estamos perante a incompatibilidade destes integrarem a instituição responsável por proteger a comunidade, tal como o Tribunal da Relação de Lisboa imputa os agentes de se «distanciaram, em muito, do que são os seus deveres e atribuição».

Impacto na vítimas

Este caso tem várias nuances e ângulos que merecem reflexão. Da minha parte, detenho-me no impacto sobre as vítimas de violência sexual. Uma pessoa que tenha sofrido violência sexual — seja quem for, mas sobretudo alguém socialmente fragilizado — precisa de garantias de que, ao procurar ajuda, não será exposta a novos perigos. Denunciar é um ato de coragem e um risco real; por isso mesmo, deve ser recebido com segurança e respeito. Mas como pode uma vítima sentir-se protegida quando sabe que há agentes capazes de cometer exatamente o crime que deveriam combater? Que alguns não só violam, como acham graça e filmam a humilhação alheia?

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Este cenário não afasta apenas quem já sofreu violência sexual; afasta também, potencialmente, futuras vítimas. Sem incorrer no erro de generalizar — não é disso que se trata — é impossível ignorar o impacto devastador destes casos. Cada notícia de abuso sexual cometido por agentes policiais grava na memória coletiva uma dúvida corrosiva: e se o agente que me ouvir for como aquele que violou? Se as vítimas não estão seguras em casa e nos espaços públicos, não podemos permitir que também deixem de se sentir seguras junto das autoridades.

Que futuro?

O problema ultrapassa, naturalmente, a confiança na polícia: atinge o próprio direito das vítimas a serem ouvidas, respeitadas e protegidas. Para que alguém se sinta minimamente seguro ao relatar uma violação, tem de saber que encontrará profissionais íntegros, preparados e emocionalmente capazes de acolher o sofrimento humano — não indivíduos que desumanizam e torturam.

Este caso é também uma oportunidade de aprendizagem e um apelo urgente à mudança. Precisamos de entidades que reforcem o seu compromisso para que não haja lugar para quem viola, humilha e abusa do poder instituído. Precisamos de um corpo policial que recorra a agentes especializados, com formação rigorosa em direitos humanos, violência sexual e intervenção com pessoas em situação de vulnerabilidade. E precisamos de mecanismos independentes, transparentes e eficazes para investigar, afastar e punir quem desonra a função pública e ameaça a segurança da população.

Só assim as vítimas poderão pensar: posso pedir ajuda; estou protegida; estas pessoas não são como os abusadores; existem para me defender.

Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro sobre prevenção do abuso sexual de crianças, e do romance “Neblina”.