Salvini é o chefe da Liga, partido totalitário de direita. Tornou-se o homem mais poderoso na política italiana e é o ponta de lança dos cruzados de Trump para fazer rebentar a União Europeia. É ele, Salvini, quem lidera a engrenagem que inclui o partido de Le Pen e outras direitas extremas da Europa com a ambição de quebrar o eixo europeísta encabeçado pela França de Macron e pela Alemanha de Merkel, no qual Portugal e Espanha têm participação crescente.

As eleições italianas de há ano e meio foram um vendaval político que varreu o sistema tradicional e que deixou humilhados os partidos antes principais. As forças antissistema ganharam maioria absoluta, embora num quadro confuso. O partido Cinco Estrelas, formação ambígua inventada pelo cómico Beppe Grillo e, entretanto, encabeçada pelo jovem napolitano Di Maio, inexperiente na política, mas muito hábil a falar aos insatisfeitos, irrompeu como um ciclone, foi o mais votado, conseguiu 11 milhões de votos (32,6%) e 227 deputados. Mas, apesar de o Cinco Estrelas ser o partido mais votado, despontou uma outra liderança política, a de Salvini, do partido Liga.

É facto que a Liga de Salvini teve apenas 17,3% dos votos, pouco mais que metade do alcançado pelo Cinco Estrelas, mas apareceu nas negociações para formar governo apoiado por 37% dos votos - porque juntou vários pequenos partidos e também convenceu a Força Itália de Berlusconi, fragilizada por ter colapsado de 30% para apenas 14% dos votos.

As negociações entre Salvini e Di Maio, na primavera do ano passado, foram complicadas, enfrentaram vários momentos de rompimento, tanto era o que os separava, mas, ao fim de 83 dias, quando já se falava em repetição de eleições, arranjaram um compromisso: escolheram um independente com a  bênção das duas partes, sem história política. Foi assim que o professor de Direito Privado Giuseppe Conte chegou a primeiro-ministro de um governo em que eles, Salvini e Di Maio, ambos com o posto de vice, repartiam o poder.

Para esse governo que agora tem fim anunciado, Di Maio escolheu tutelar o desenvolvimento económico, à espera de colher os frutos eleitorais da distribuição de fundos. Enganou-se, porque Salvini, dotado para fazer da política uma técnica de poder, ao escolher os assuntos de segurança, tornou-se, o mandante no governo.

A democracia italiana já tinha sofrido a corrosão das suas bases com o populismo antipolítico de Berlusconi, que alcançou um pico através da gestão do poder mediático.

Salvini escolheu avançar por essa via aberta por Berlusconi, optou por fazê-lo com mais afinada estratégia política e com recurso à habilidade verbal com grande carga de violência. Tem sido um encantador de serpentes e tem somado apoios. É o político mais popular em Itália - as sondagens dão-lhe à volta de 40% de adesões - através de uma prática assente na sedução do povo que se sente desprotegido pelos sistemas políticos de até agora. Salvini recorre a bodes expiatórios: atira culpas para o sistema europeu, para os migrantes, para o Euro. Usa retórica violenta contra estes alvos, embora muito do discurso de Salvini vá contra os valores tradicionais da Itália democrática, a começar pela criminosa proibição de apoio aos migrantes em desespero no Mediterrâneo

É neste cenário que Salvini decide dar o golpe para conseguir o poder absoluto. Com a intenção de, a partir da chefia do governo de Itália, liderar a implosão do sistema da União Europeia, missão para a qual conta com apoios férteis e díspares, seja da gente de Trump, assim como do aparelho de Putin, que tem ligação privilegiada a Marine Le Pen.

A cotação alta nas sondagens deu confiança a Salvini para, em pleno agosto de praia na política, ao mesmo tempo que fazia selfies com o filho em motos de água da polícia que tutela, romper com o parceiro de coligação (Liga e Cinco Estrelas têm passado os últimos dias a trocar provocações) e tratar de desencadear a queda do governo, de que ainda faz parte. Começou por anunciar uma moção de censura, que foi travada até à discussão com o primeiro-ministro Conte, no Senado italiano, agendada para esta terça-feira.

Salvini passou ao ataque legitimado pelo resultado das eleições europeias há três meses: a Liga duplicou o número de votos, o Cinco Estrelas perdeu metade dos 11 milhões de eleitores.

A jogada de Salvini passa pela convocação de eleições semi-plebiscitárias já em outubro próximo. Salvini sabe que as sondagens o colocam no caminho do autoritário poder absoluto que reivindica - a Itália está assim em fase de pobreza de cultura política, dispõe-se a aceitar um homem providencial com todos os poderes políticos e até judiciários.

Neste momento, tanto o líder do cinco estrelas, Di Maio, como o primeiro-ministro Conte já nem falam com o todo-poderoso chefe da Liga e vice primeiro-ministro Salvini. Tudo cortado entre eles.

Salvini aposta em eleições que o entronizem já em outubro mas, entretanto, surgiu uma possível reviravolta na ação: a formação de uma frente republicana anti-Salvini, capaz de conduzir à instalação do que já está a ser chamado de governo Ursula, por ser a expressão da mesma maioria pró-europeia que levou à eleição de Ursula von Leyen para a presidência da Comissão Europeia.

Essa possibilidade está a avançar com potencial para tomar o comando do governo de Itália através da junção dos 113 deputados de centro-esquerda (104 do Partido Democrático) aos 227 do Cinco Estrelas. Este cenário conjuga 340 deputados, o que faz maioria absoluta num parlamento com 617 lugares.

O presidente da República, Sergio Mattarella é, conforme a tradição no cargo em Itália, um democrata absoluto. Imagina-se que ele gostará de ver formar-se uma alternativa que estanque a inquietante e tormentosa deriva autoritária de Itália com Salvini. Mas, como grande democrata que é, não deixará de se interrogar sobre a bondade de uma manobra palaciana que colocaria o debilitado partido Cinco Estrelas (teve 32,6% nas eleições de março do ano passado, mas, agora, as sondagens dão-lhe apenas 15%) a conduzir a camaleónica mudança de parceiro de governo, com o centro-esquerda a substituir a direita extrema.

É facto que esta maioria seria formada em nome de um valor maior, o da recusa da deriva autoritária. Mas contem uma ameaça máxima: a de aprofundar a fratura entre o povo e a elite que governa.

Parece mais ambicioso optar pelo corajoso recurso a eleições antecipadas. O risco de triunfo da via autoritária é muito grande. Haja a audácia de explicar com eficácia aos cidadãos o que está em causa.

Por agora, o divórcio é inevitável na atual fraturada coligação de governo em Itália. O que vem a seguir é ainda muita incerteza. Imaginar um governo do Cinco Estrelas com a esquerda moderada encabeçada pelo Partido Democrata tem muito de exercício de fantasia: que programa detalhado poderia ter esse "governo Ursula" sobre questões complexas como as da imigração, a política económica e industrial, da justiça e das relações internacionais? A frente anti-Salvini não basta para formar uma aliança positiva para governar Itália com estabilidade mesmo que apenas temporária.

Tudo é possível no modo italiano de fazer política. É um estilo que já vem de há três décadas, com o colapso de partidos antes fulcrais como o Democracia Cristã, o PCI e até o PSI. Com crises permanentes.

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