Em tempos trabalhei num jornal que nunca chegou a sair. Foram feitos alguns números zero e a manchete do número um estava definida: "Portugal S.A. na falência". O artigo tratava o país como se fosse uma empresa e especialistas em diversas áreas analisavam à lupa cada "departamento", da contabilidade à logística, do marketing às vendas, das compras ao atendimento ao cliente, por aí fora.
Estávamos em 2009, se a memória não me falha, ainda ninguém falava em resgate financeiro, muito menos na troika e no pedido de intervenção externa anunciado a 6 de Abril de 2011, a partir de São Bento, por José Sócrates. O título do artigo de primeira página, no entanto, antecipava a falência desta empresa que é o país.
Um dos problemas identificados era o dos recursos humanos, não exactamente por serem escassos - nesta altura, havia 675.279 funcionários públicos na Administração Central do Estado, na Administração Local e na Administração Regional, de acordo com dados do Observatório do Emprego Público -, mas pela sua ineficiência, tantas vezes condicionada ou potenciada pela falta de meios.
Lembro-me que havia quem escrevesse, nomeando os serviços públicos em causa, que ficava mais barato ao Estado pagar os salários a esses trabalhadores para ficarem em casa do que para irem trabalhar (os ganhos com a poupava em electricidade, água e outros bens consumíveis, custos de manutenção e outros eram superiores aos ganhos obtidos com o funcionamento dos serviços).
Veio a crise, a troika um memorando cheio de imposições (o que fazer e o que não fazer) e 76,4 mil milhões de euros. Passaram mais de 13 anos e, no final de Junho de 2024, Portugal tinha 749.678 funcionários públicos e trabalhadores do Estado e um bolo de 22,2 mil milhões de euros, desta vez dinheiro da União Europeia para um Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Afinal, o que mudou?
Ontem, ao acompanhar as audições de diversas entidades na Comissão de Saúde a propósito das falhas do INEM e da sua possível relação com a morte de 11 pessoas, que levou o Ministério Público a abrir sete inquéritos, um dos quais já arquivado, não pude deixar de me espantar.
Um resumo em 28 frases:
"Um instituto público como o INEM sente dificuldade quando qualquer documento ou solicitação que implica aumento de despesa tem de passar por vários gabinetes e demora a aplicar medidas. Há que dar autonomia a instituições públicas, auditadas regularmente, mas sem afectar a eficiência de processos", presidente do INEM, Sérgio Dias Janeiro.
"Sinto que tenho condições para continuar", idem.
"Situação trás alguns dilemas éticos. Há um linha muito ténue entre o direito à greve e o dever de socorro", ibidem.
"O estado da frota do INEM, no mínimo, está degradado. Há viaturas com 600 mil quilómetros que deviam ser abatidas, mas a alternativa é não ter meios de socorro", ibidem.
"Se não executarmos a despesa, perdemos verba", ibidem.
"INEM não avança em termos tecnológicos há alguns anos", ibidem.
"Cada profissional do INEM pode fazer 150 horas extraordinárias por ano e normalmente atinge isso em Fevereiro", ibidem.
"Hoje estamos mais próximos na revisão de carreira, mais distantes na valorização salarial, não suficientemente distantes para interromper negociações, que se retomam a 11 Dezembro", Rui Lázaro, presiente do Presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pre-Hospitalar (STEPH).
"Houve gestão danosa no anterior executivo, que prolongou e renovou ajustes directos nestes oito anos para serviços que tem de manter em permanência", idem.
"O dinheiro pode ser melhor aproveitado. É preciso reorganizar a gestão financeira", ibidem.
"Já estivemos nesta mesma comissão de Saúde há vários anos a falar sobre os esmo problemas. E nada mudou", coordenador da Comissão de Trabalhadores do INEM, Rui Gonçalves
"Em 2021 tínhamos 933 técnicos de emergência pré-hospitalar e este ano temos 858, apesar de concursos", idem.
"Em Setembro foram feitas 28 mil horas extraordinárias, sem contar com as que são feitas acima do limite autorizado e não são pagas", ibidem.
"A associação já reuniu com secretários Estado, ministro, grupos parlamentares, mas os problemas mantêm-se [...] Precisamos que da Comissão [de Saúde] saiam decisões", Luís Canaria, Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (ANTEPH)
"90% do serviço é feito por bombeiros e Cruz Vermelha", idem.
"19 mil P1 (situações de risco de vida imediato) ficaram sem resposta do INEM, o que para nós é falha inegável do sistema e que tem de ser auditada", ibidem.
"900€ para início [de carreira] de um técnico de emergência pré-hospitalar do INEM é francamente baixo", ibidem.
"Sistemas informáticos e software estão perigosamente desactualizados", presidente do conselho directivo da Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Médica (ANTEM), Paulo Paço
"Formação de operacionais é insuficiente e negligente", idem.
"INEM é incapaz de prever recursos em função de eventos [jogos, concertos, manifestações]", ibidem.
"É preciso repor as verbas que foram retiradas do INEM", ibidem.
"Todos os inquéritos em curso que envolveram o INEM de alguma forma até hoje não ficámos a saber nada", ibidem.
"A origem deste problema, como já dissemos diversas vezes, já alertámos aqui, inclusive na anterior legislatura e com anterior elenco directivo do INEM, esta situação não é de agora", ibidem.
"O Orçamento do Estado não tem um impacto directo na ofrma como o INEM é financiado, como sabemos vem de uma fatia dos seguros", ibidem.
"O INEM tem, grosso modo, um orçamento de cerca de 160 milhões de euros anuais", ibidem.
"O CODU [Centro de Orientação de Doentes Urgentes] hoje em dia não funciona", ibidem.
"Em 2008 quando saí do INEM para ir trabalhar no serviço de ambulâncias do Reino Unido foi porque tentei remar contra a maré, vim a esta casa várias vezes, sozinho, para tentar dar andamento a esta questão e, pura e simplesmente, fui sempre ignorado", ibidem.
"Espero que nunca tenham de testemunhar, como a senhora ministra já testemunhou, quando teve o acidente de viação na A8 e mandaram os meio para a A10, o quanto o sistema integrado de emergência médica em Portugal está a funcionar mal", ibidem.
Hoje está em causa o INEM, mas podia ser outra instituição, basta percorrer as audições das diversas comissões parlamentares, sejam elas permanentes ou eventuais, sobre socorro e emergência médica, falta de habitação, falência da banca, queda de uma ponte, corrupção ou outra coisa qualquer.
O estado do INEM é o reflexo do país que temos, dos líderes que temos, dos políticos que temos. Não tenho a menor dúvida de que se apontasse aleatoriamente para uma instituição pública, um instituto, um observatório, uma direcção-geral, fosse um organismo central, local ou regional, o espanto viria se o seu funcionamento fosse escorreito, quando essa devia ser a regra e não a excepção.
Em tudo isto, a Assembleia da República tem um papel e não pode lavar as mãos como Pôncio Pilatos, porque a sua responsabilidade não é andar a reboque dos acontecimentos, é fiscalizar a actuação dos governos e legislar. As perguntas que os deputados fazem agora, em comissões abertas ou fechadas, exigem uma resposta aos portugueses que os elegeram.
Quando sigo uma audição ou um debate parlamentar lembro-me sempre desta lengalenga (que continua indefinidamente) e percebo porque é que não passamos disto:
O senhor é parvo
parvo é o senhor
senhor dos passos
paços do concelho
conselho de ministros
ministro da Guerra
Guerra Junqueiro
junqueiro dos mares
mar da China
China Xangai
Xangai xeque
xeque-mate
mate quem?
mate o senhor
o senhor é parvo
parvo é o senhor...
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