Desde muito pequena que férias de Verão sempre foram sinónimo de praia. Existe mesmo prova em vídeo nos arquivos lá de casa de mim, uma bebé num carrinho, à sombra na praia às 7h30 da manhã, para inspirar a maresia e o iodo que fazia bem à saúde, diziam.

Os verões em Beja são quentes, aquele quente de 40 e tal graus e aquele sol que tosta a pele a partir das nove da manhã. Talvez seja por isso que tanta gente do Alentejo vai para o Algarve passar férias. A minha família não é excepção e, desde que me lembro, a praia faz parte das minhas férias.

Toda a algazarra de fazer malas, arrumar o carro e pegar na família toda para irmos para o Algarve e passar um mês a jogar à bola, dar passeios na areia e nadar no mar era uma constante todos os anos. Quando estávamos em Beja, as noites quentes de Verão convidavam a passeios sem rumo, cafés em esplanadas e conversas até tarde. Assim se passavam os meus verões, até que em Setembro começava a escola e mais um ano começava.

Até que chegou 2008. Em Setembro desse ano, foi-me diagnosticada uma leucemia linfoblástica aguda. Apareceu como que caída do nada, mas mudou tudo. A partir daí, a minha vida e da minha família deram uma volta de 180 graus. Trocou-se Beja por Lisboa, casa pelo IPO, e a vida diária de uma rapariga normal de 16 anos… bem, pela vida de uma rapariga de 16 anos com cancro. O meu dia-a-dia era agora num hospital. Os tratamentos sucederam-se, os efeitos secundários também e, de repente, o sistema imunitário não era forte o suficiente e o mundo exterior era um lugar perigoso.

Quando chegou o Verão, não houve algazarra de malas, nem viagens até ao Algarve, nem praia, nem noites quentes na rua. Não podia entrar no mar. Não podia pisar areia. Não podia apanhar sol.

Pensando bem, quando se está internado ou em casa, saindo apenas para os tratamentos, as estações passam sem que haja grandes diferenças. Apenas os cuidados mudam, porque, ora se protege contra o frio, ora contra o calor. Contra o vento e chuva ou contra o sol. De resto, os dias vão passando. Arranjam-se hobbies diferentes, adequados às limitações que nos são impostas.

Esses verões foram diferentes de todos os outros, mas parecidos ao resto do ano. Casa – hospital; hospital – casa. Tratamentos e internamentos mais ou menos prolongados, consoante as análises ditavam. Poucas idas a Beja, muito tempo em Lisboa, e saídas à rua só de máscara, o que era uma experiência desagradável por si só. Por vezes era difícil conter a frustração. Aos 16 anos, ver os meus amigos a irem de férias juntos, a irem passear, divertirem-se, e a noção de que, estivesse eu saudável, teria ido também... As saudades de um verão normal, sem preocupações, sem limitações, sem a rotina de análises, esperas e quimioterapia, que me deixava sem vontade de fazer nada.

Esses verões foram estações recheadas de momentos que não vivi, e isso nem sempre foi fácil. Esses verões foram também roubados à minha família, que também abdicou da sua vida normal para cuidar de mim e viu tudo o que acontecia sem poder fazer muito. Acho que lhes custou mais verem-me a não poder fazer as coisas do que  lhes custou a eles não as fazerem. As famílias são assim.

Mas o ser humano tem tendência a prosperar na adversidade, e uma pessoa adapta-se às realidades novas. Não havia praia nem mar, nem noites quentes, mas havia outros hobbies a descobrir, que se podiam fazer dentro de casa e não incluíam esforço físico. A criatividade floresce num ambiente assim. Embora as saudades estivessem sempre lá, os verões foram preenchidos com outras actividades, outras experiências, à volta do que era agora a minha nova realidade do dia-a-dia. Era uma novidade para mim, depois passou a ser o status quo das minhas férias.

Os anos passaram, os tratamentos continuaram, o protocolo foi seguindo. Voltei para a minha cidade e retomei muito timidamente a minha vida, sempre com um pé atrás, “não fosse o diabo tecê-las”. Voltaram os passeios à noite, mas apenas de carro. E as idas ao Algarve, mas a praia só de longe. Nessa altura, tinha a visão e o olfacto para matar as saudades. O que já era alguma coisa. Nestas situações-limite, uma pessoa aprende bastante a relativizar. Cada pequena melhoria já é uma vitória enorme. Cada coisa que corre bem é motivo de celebrar. E as coisas que damos por garantidas, que sempre fizeram parte da nossa vida, e que perdemos por um motivo ou outro, tesouros inestimáveis.

Quase onze anos se passaram desde o meu diagnóstico, e muitos verões se passaram desde aí. Verões iguais aos de que me lembro, verões diferentes, e até melhores do que me lembro. Agora já não há limitações, o mundo exterior é tão perigoso para mim como para qualquer outra pessoa, e essa normalidade é uma lufada de ar fresco à qual já me voltei a habituar.

No entanto, nunca me vou esquecer do fim de tarde em que desci as escadas da praia, descalcei os chinelos e pus os pés na areia e andei até à beira-mar. A água não estava fria. O sol já não estava quente. Foram talvez dez minutos que lá estive. Mas foi nesse momento que ganhei as minhas férias de volta. E nunca mais as larguei.


Sobre a Acreditar:

A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio a todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional e social. Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família. Momentos difíceis tornam-se possíveis de viver quando nos unimos.