Mas antes de abordar especificamente esta questão, é necessário fazer um pouco de contextualização. A maioria dos casos de violência sexual contra homens e rapazes ocorre na infância e pré-adolescência (apesar de também haver casos em idade adulta, mas essa é uma conversa para outra ocasião). Nesta idade sabemos que não se trata de um crime de género, mas à medida que estes rapazes crescem e a socialização acontece, o seu processo sofre com as questões de género.

Sabemos que os papéis estereotipados associados à socialização e educação masculina reforçam mitos como o de que o homem tem de ser sempre forte, que não pode chorar e não pode exibir os seus sentimentos. Sabemos que há crenças que reforçam ideias erradas, como por exemplo, a de que “os homens não podem ser vítimas violência sexual” ou que “os homens só podem ser agressores, nunca vítimas”. Sabemos também que nos casos em que um rapaz partilha com a família que foi abusado sexualmente lhe é, depois, exigido que se comporte de forma hiper masculinizada para provar que não é homossexual, nomeadamente por parte dos pais, especialmente pela figura paterna. E sabemos que à medida que um rapaz cresce vai diminuindo a probabilidade de partilhar que foi vítima de violência sexual.

Quando normalmente estes rapazes chegam à Quebrar o Silêncio, são já homens adultos, passaram anos e anos a sofrer em silêncio e a socialização está mais do que solidificada.

Repensar como educamos os rapazes

Antes de mais quero esclarecer que não estou a promover que se eduquem rapazes “fracos”, não é disso que se trata. Mostrar vulnerabilidade não é uma fraqueza e é preciso deixar isso bem claro. Num dos grupos de ajuda mútua para homens vítimas de violência sexual, um dos participantes disse-me: “é na vulnerabilidade que encontro a minha força”. É importante compreender que a vulnerabilidade não é um “monstro” do qual os homens têm de fugir e que irá destruir a forma como lidam com a sua própria masculinidade. Mas, quando se educam os rapazes reforçando ideias como “homem é que é homem não chora, aguenta forte”, ou se falar dos seus sentimentos e emoções está “a comportar-se como uma menina”, estamos a limitar o seu desenvolvimento e a negar-lhes parte da sua natureza. Por isso é natural que abordemos o tema das masculinidades. Todas estas questões são naturalmente transportadas e vividas pelos sobreviventes de violência sexual. No apoio que disponibilizamos, se um sobrevivente chorar é comum que de seguida peça desculpa. Isto acontece porque chorar continua a ser visto como uma fraqueza e, por isso, por não ser uma característica digna dos homens, é preciso evitá-lo ao máximo.

E para quem acha que esta forma de educar não é prejudicial para os homens e rapazes, desengane-se. De uma forma transversal, que passa pela alimentação, saúde e bem-estar, é sabido que os homens “são mais propensos a adotar comportamentos de risco (bebem mais, fumam mais e são maiores consumidores de substâncias psicoativas ilegais), que recorrem menos aos serviços de saúde numa lógica preventiva (frequentam menos as consultas médicas, incluindo as consultas de especialidade, realizam exames de diagnóstico com menor frequência, etc.)”. E quando falamos de assuntos mais tabu, como o suicídio, sabemos que a probabilidade de suicídio é superior nos homens, chegando a ser três vezes superior à de uma mulher.

Obstáculos ao apoio para sobreviventes

Se não o soubéssemos pela própria literatura, saberíamos pela nossa experiência no apoio especializado que prestamos. Os próprios homens sobreviventes referem que os valores tradicionais da masculinidade são um dos principais obstáculos à procura de apoio e também no seu processo de recuperação. As ideias de que o homem tem de saber resolver os seus problemas sozinho, sem ajuda, ou que devia ser sempre forte e saber defender-se, promovem fortes sentimentos de culpa que o impedem de progredir.

A própria ideia de vítima, alguém choroso, fraco e debilitado, também vai contra as ideias do que é ser homem. Os mitos e crenças de “que os homens não podem ser vítimas de violência sexual” reforçam noções estereotipadas sobre os papéis de género. Sabemos que os sentimentos de vergonha e a auto-culpabilização, nomeadamente quando são resultado de um processo complexo de manipulação por parte do abusador, têm um peso enorme no silenciamento dos homens sobreviventes. No entanto, em idade adulta, a forma como estes homens se avaliam e se julgam é o resultado de toda uma socialização na qual os estereótipos da masculinidade tradicional foram sendo reforçados.

Por isso precisamos de conversar sobre masculinidades de forma natural e sem receios. Porque não existe só uma forma de masculinidade; há várias e cada homem encontra a sua. É preciso que, cada vez mais, se aceite que um homem pode chorar e pode procurar ajuda se assim sentir que é necessário.


Se foi vítima de violência sexual e precisar de apoio contacte a associação Quebrar o Silêncio - apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Contactos: apoio@quebrarosilencio.pt | 910 846 589

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