Fique em casa — mas não na nossa

Pedro Soares Botelho
Pedro Soares Botelho

“Fique em casa” — durante semanas, foi esta a mensagem: ficar em casa. Na habitação. Confinamento, distanciamento, afastamento social. Longe. Isolado. “Mantenha a distância”, dizem-nos agora as autoridades.

As pessoas celebram na rua — ide para casa; as pessoas manifestam-se na rua — recolham-se ao domicílio.

Fique em casa.

Todavia, o distanciamento social não é distanciamento da sociedade. E essa, para o bem e para o mal, continua pejada dos seus problemas, que se agudizam nas crises como esta. “Fique em casa”, pedem, mesmo a quem não a tem; mesmo a quem dela tem de sair para a manter.

A pandemia pôs em evidência a falta e a inadequação das casas dos portugueses; a pandemia sublinhou o desequilíbrio entre quem é “essencial” e quem tem o essencial. Entrar no comboio das cinco na Linha de Sintra sempre foi uma boa síntese destas certezas, agora postas a descoberto.

Esta madrugada, mais umas quantas pessoas perderam a “casa”. O tecto, mesmo que momentâneo. Às 5:00 da manhã, seguranças privados entraram dentro de um edifício onde funcionava um centro de apoio a carenciados. O espaço, um infantário abandonado há mais de um ano, fora ocupado pela Seara — Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara.

Quando ocuparam o edifício, os voluntários não sabiam quem eram os proprietários do imóvel, mas mais tarde descobriram que foi vendido a uma empresa de imobiliário e depois em parcelas a três pessoas que vivem no estrangeiro.

Os voluntários enviaram correios eletrónicos a várias entidades, entre as quais a Câmara Municipal de Lisboa e a PSP, a informar de que iriam ocupar o espaço e os motivos. Hoje, foram alvo de um despejo.

A Seara foi criada por um grupo de pessoas que ocupou este antigo infantário abandonado e o transformou num centro de apoio e ajuda a pessoas carenciadas, incluindo sem-abrigo.

Ao longo do dia, o impasse manteve-se. De um lado, os voluntários; do outro, a PSP, que eles mesmos chamaram, para denunciar o despejo madrugador. Várias pessoas ficaram feridas, incluindo três agentes da PSP, na sequência de uma tentativa de entrada.

A informação foi confirmada à agência Lusa por Bernardo Alvares, um dos voluntários da Seara, que explicou que algumas pessoas “que pertenciam ao coletivo que estava a gerir o espaço” tentaram entrar no edifício, mas que o fizeram “de forma pacífica”.

O voluntário acrescentou que viu duas pessoas ficarem feridas por causa de “uma investida” da polícia quando estavam a tentar entrar no edifício. Essas duas pessoas, segundo Bernardo Alvares, “seguiram numa ambulância” para uma unidade de saúde. As pessoas começaram, entretanto, a sair do centro de apoio e “estão a ser identificadas” pela PSP, acrescentou o voluntário.

Questionado sobre quanto tempo é que estas pessoas pretendem continuar a manifestar-se contra o despejo que decorreu na madrugada de hoje, Bernardo Alvares referiu que se gerou “uma manifestação espontânea” e, por isso, vão continuar no local.

Já contactado pela Lusa, o porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, o comissário Artur Serafim, referiu que três agentes ficaram feridos, assim como, pelo menos, outras duas pessoas, mas foram todos “assistidos no local”.

A polícia explicou que algumas pessoas “descobriram uma entrada lateral” do edifício e “forçaram a entrada” para abrir as portas às restantes pessoas que aguardavam no exterior. Porém, o voluntário contactado pela Lusa disse, no entanto, que tal não aconteceu.

Os feridos, explicou a PSP, resultaram da tentativa de entrada no edifício e da ação da polícia para o impedir.

Os elementos destacados vão continuar “a aguardar no local”, porque este “vai ser um jogo de paciência”, considerou o porta-voz da polícia.

Já se sabe que três pessoas vão permanecer no centro, depois de terem chegado a um entendimento com os proprietários do edifício. Segundo fonte da PSP, as três pessoas vão poder continuar no Seara, após um acordo, sendo que o acesso ao edifício ficará “vedado a outros”.

O espaço está a ser usado desde 9 de maio. Ainda a semana passada, a Lusa contava a sua história e deixava os apelos. Em declarações à agência, Inês Silva, uma das voluntárias do centro, contava que cerca de meia centena de “vizinhas e vizinhos” do bairro de Arroios que já se dedicavam a ajudar na sequência dos efeitos da pandemia por covid-19, juntaram-se e ocuparam um antigo infantário.

“Este grupo de pessoas que já participava em iniciativas solidárias percebeu que era preciso estender o apoio e então surgiu a ideia de criar um centro de dia que pudesse apoiar as necessidades das pessoas, que se agravaram com a quarentena”, disse.

“Como não conseguimos chegar à fala com os proprietários, entrámos no espaço, mas enviámos email a várias entidades, entre as quais a Câmara Municipal de Lisboa e a PSP, a informar de que iríamos ocupar o espaço e os motivos”, contou.

Por isso, contou Inês Silva, o grupo ocupou o espaço, limpou-o e aproveitou mesas e cadeiras que estavam no interior. “O edifício do antigo Centro Escolar Dr. Salgueiro de Almeida, no Largo de Santa Bárbara, em Arroios, estava abandonado desde 2018. Como estava abandonado há pouco tempo, o espaço, que é muito grande, estava em muito bom estado. Tem salas amplas, ginásio e balneários”, explicava.

A ideia do grupo era criar um centro de apoio diurno à população de rua, mas a ajuda alargou-se a todos os que precisam.

“Com o esforço de todos, a Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara abriu portas a 9 de maio. Está aberto todos os dias das 13:00 às 16:00 para que as pessoas em situação de sem-abrigo, pobreza ou precariedade possam ter acesso a vários serviços”, disse.

Inês Silva contava que as pessoas podiam usar o espaço para descansar, comer, jogar, fazer as suas refeições. “As pessoas podem ir buscar as suas refeições às cantinas solidárias e podem vir comer aqui. Podem carregar telemóveis, o espaço tem internet, tem casas de banho, podem lavar e secar roupa pois temos máquinas”, referia.

No entanto, a voluntária salientava também que no espaço eram cumpridas todas as regras de segurança e higiene impostas pela Direção-Geral da Saúde.

“Nós somos cerca de 50 pessoas, mas estamos divididos em grupos, nunca estamos no mesmo espaço ao mesmo tempo. Normalmente são quatro voluntários por dia. Um está na entrada a distribuir máscaras e álcool-gel, outro está nas máquinas de lavar e secar e os outros acompanham as pessoas para ver se precisam de alguma coisa, se estão bem”,

Recebiam, diariamente, cerca de três a quatro dezenas de pessoas.

“As salas do edifício são muito grandes, o que permite o cumprimento da distância social”, dizia na altura.

A compaixão não é um património político, meramente humano; da humanidade que falta aos homens, mesmo quando as televisões cantam que estamos todos juntos, no mesmo barco, a caminho do “tudo bem” prometido.

Mas o barco não é o mesmo. Nunca foi. Nem o oceano será idêntico: se para uns são só carneirinhos nas ondas, e, para outros, são maremotos completos.

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